O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Areias de outro tempo




Por Luiz Fernando Coutinho

O flerte de M. Night Shyamalan com o filme B não é exatamente recente. Seja pelas narrativas que concentram as ações em um mesmo cenário, seja pelo repertório temático, seus filmes tendem a se aproximar, em nosso imaginário, daquele modelo de produção de baixo-orçamento que começou a frutificar nos EUA a partir dos anos 1930. Foi preciso o fracasso de bilheteria do belo Depois da Terra, que custou 130 milhões de dólares, para que Shyamalan depositasse seus esforços em orçamentos e filmes menores: A Visita (5 milhões de dólares), Fragmentado (9 milhões) e Vidro (20 milhões) são obras que reúnem características de filme B menos pelo flerte temático do que por uma relação incontornável de dependência entre a estética e a economia. Nestes filmes, o modo de produção afeta diretamente o estilo, nunca o tornando refém dos números, mas reivindicando do cineasta uma atitude de invenção constante face às limitações financeiras.

Tempo, o último filme de Shyamalan, teve como orçamento um montante de 18 milhões de dólares. Trata-se, como sempre, de um filme familiar: o cineasta, inspirado em lembranças com seu pai, decide adaptar uma HQ que recebeu de presente de suas filhas. Ishana, uma delas, trabalhou como diretora de segunda unidade; Saleka, a outra filha, compôs a canção dos créditos. A linha narrativa não poderia ser mais simples: uma família viaja para um resort paradisíaco e se vê presa, junto a outras pessoas, em uma praia rochosa onde a experiência do tempo é acelerada – onde, portanto, minutos equivalem a meses e horas equivalem a anos.

Estruturado em torno de três locações – a praia, o resort e a van que faz a ponte entre um espaço e outro –, Tempo concede à praia um lugar privilegiado na economia interna do filme. Não apenas passamos mais tempo na praia do que em qualquer outra locação, como também ao cineasta parece importante concentrar neste espaço as ações-motrizes da narrativa, que se sucedem em ritmo alucinante. Uma vez que as personagens pisam na areia, desfilam-se rapidamente as ações de uma dramaturgia compactada em condições de pressão. No interior desta locação única, portanto, os eventos transcorrem de forma vertiginosa. Estamos, neste caso, em terreno familiar: é desta dinâmica da contenção espacial aliada à saturação dramática que os grandes filmes B – os Ulmer, os Lewis, os Karlson – extraíam sua força.

Se um traço característico desses filmes B era a reutilização de cenários de filmes de série A, Shyamalan também faz um trabalho de reciclagem. Porém, mais do que se apropriar de locações já utilizadas, o cineasta se apropria da imaginação iconográfica ou dramatúrgica de filmes do passado: as personagens presas na praia remontam aos burgueses de O Anjo Exterminador; os rochedos sinuosos, por onde o slow-motion se imiscui, remetem à montanha misteriosa de Peter Weir; o efeito “dolly zoom” devém menos de Um Corpo de Cai do que de Tubarão, etc.

Estas influências, no entanto, são aquelas reconhecidas pelo cineasta, e seria preciso dar um passo além e perceber a filiação de Tempo com obras “praianas” do horror escatológico como Zumbi 2 – A volta dos mortos, de Fulci, ou Piranhas 2: Assassinas Voadoras, de Cameron, em que a imagem parece consumida pela podridão “salina” de seus monstros aquáticos – no caso do filme de Shyamalan, dos monstros farmacêuticos. Como os talheres e os cadernos enterrados denunciam, cineastas de outros tempos já pisaram nesta praia.




Tornou-se recorrente, na obra de Shyamalan, perceber nos personagens interpretados pelo cineasta um aceno para sua posição de demiurgo. Em Tempo, o mesmo discurso ressurge; como se, ao conduzir as personagens para a praia e submetê-las a um experimento enquanto as filma, o personagem de Shyamalan funcionasse como um alter ego do diretor. Esta correlação entre personagem e criador, no entanto, ignora o trabalho sobre os pontos de vista no filme. O cineasta, ao contrário de seu personagem, não observa os demais à distância. O ponto de vista da câmera isolada no topo do rochedo, comandada pelo empregado da grande corporação, só aparecerá nos instantes finais da narrativa – até lá, Shyamalan-cineasta prefere o ponto de vista próximo da areia, junto às personagens e por vezes adotando seus pontos de vista (o pai) ou de escuta (a mãe). Sua postura enquanto criador não é a do entomólogo, mas do participante; não é a do nazista, mas do humanista: aquele que, como as vítimas, também se beneficiaria de uma ou outra sessão de terapia para entender sua relação com a passagem do tempo.

Próxima ao chão, a câmera de Shyamalan é um instrumento de produção de elipses. Participando da experiência inexplicável do tempo, as imagens conjuram em seu interior (no plano-sequência) ou em seu encadeamento (na montagem) os grandes saltos temporais marcados na pele dos atores e das atrizes. Em dado momento, a câmera se desvia das personagens, faz uma panorâmica na direção do rochedo, e volta para retomá-las: movimento aparentemente insignificante, ele produz uma elipse na própria continuidade do plano, pois uma vez que a imagem volta a enquadrar as personagens, dias se passaram em seus corpos. Da mesma forma, quando uma personagem desaparece da imagem, não sabemos de que forma vamos encontrá-la quando ela “tornar-se campo” novamente (para empregar a expressão de Noël Burch).

Tempo é uma a travessia espiralar em direção à morte (daí, talvez, a importância dos movimentos circulares de câmera). Neste sentido, Shyamalan emprega os meios para tornar sua narrativa uma progressão do concreto ao abstrato: o breu da noite reduz a profundidade do plano, a catarata de uma das personagens ocasiona o desfoque na imagem, a surdez de outra implica em uma nova experiência de mixagem de som, o corpo esguio de uma mulher se retorce o suficiente para se tornar uma forma abstrata, entre outros.

Se o terceiro ato do filme é tão decepcionante, é porque o “retorno à normalidade” coincide com o abandono desta abstração. Ao amanhecer, Shyamalan pisa no freio e desvia o carro de volta à estrada. A promessa de um novo dia retoma a concretude e o registro inicial, oferecendo às personagens a possibilidade de uma saída. Esta, por sua vez, é entrevista na mensagem decifrada da criança. O segredo rondava todo o filme: estranha semelhança entre os movimentos descritos pela câmera – circulares, verticais, diagonais ou rasantes – e os traços pictográficos da mensagem, como se os primeiros simulassem a escrita dos segundos.

Tempo é um filme de um charme especial, produzido sob as circunstâncias sanitárias da pandemia de SARS-CoV-2, sob as intempéries climáticas da locação e, claro, sob as condições financeiras de produção. Assim, mesmo auxiliado por um storyboard, Shyamalan não impede que o filme seja por vezes mal aparado, acidentado, imperfeito, como se filmado sob pressão. Pequenos desfoques, enquadramentos fugidios, descontinuidade de luz, entre outros, fornecem ao filme uma mácula irresistível, como há muito não se via em Hollywood. Aí, novamente, pisamos nas areias do filme B.

No escape from Hollywood: “Fuga de Los Angeles”, de John Carpenter




Por Hélène Frappat

Snake Plissken (Kurt Russell), herói do último filme de John Carpenter, não é um desconhecido para os outros personagens de Fuga de Los Angeles: todos o encontraram em Fuga de Nova York, no qual ele já tinha o papel de protagonista. Snake Plissken não mudou muito: sempre o mesmo look muito século XX” (em outras palavras, um pouco cafona), o mesmo aspecto de pirata e a mesma pergunta diante de seus perseguidores: “Got a smoke?”. Sinto muito, Snake, mas os Estados Unidos são uma “nação não-fumante”, onde todos os aventureiros que, como você, cometeram crimes morais são deportados para o campo de concentração de Los Angeles. Os velhos heróis estão defasados. Aliás, cada novo encontro marca um lapso antes de reconhecer Snake: “Imaginava você mais alto”.

Snake Plissken não é o único a ter encolhido. Com ele, tudo o que o século XX chamava de Hollywood se estilhaçou: os Estúdios Universal encalharam no Pacífico, Hollywood e Sunset Boulevard estão entregues a gangues rivais e o antigo guia das estrelas (Steve Buscemi) é um delator bancado por Cuervo, invasor sul-americano que se assemelha furiosamente à imagem do Che imortalizada pelo comércio de camisetas (flagrante confirmação da “sentença” godardiana: a Europa tem suvenires[1]/a América tem camisetas). Como um personagem de À beira da loucura dizia já com ironia: “a realidade não é mais o que era”.

Paradoxo: esse claustro cingido por altas barreiras, atrás das quais a milícia americana está de sentinela, é de fato o único lugar no mundo em que resta um pouco de liberdade: liberdade de usar roupas de pele, liberdade de retirar a pele de seu vizinho por múltiplas operações de cirurgia plástica, liberdade do tabaco, do álcool, do sexo e da carne vermelha! Em suma, Hollywood é livre como Sodoma e Gomorra o eram (é o novo presidente dos Estados Unidos, eleito vitaliciamente, quem diz) e John Carpenter toma a liberdade de consagrar-lhe um filme: Fuga de Los Angeles, segundo episódio de uma série inaugurada com Fuga de Nova York em 1981.

De todos os filmes americanos que saíram recentemente, por que só esse me deu um desejo urgente de escrever? Porque Carpenter é sem dúvidas um dos últimos metteurs en scène de Hollywood (um dos últimos espíritos críticos) e porque a violência do filme se enraíza nessa situação evidentemente complexa. Sentimo-lo cindido por um desejo contraditório: a tentação de fugir da indústria do espetáculo cinematográfico (duas vezes ele tentou “escape from...” as duas grandes capitais americanas do cinema) e, ao mesmo tempo, um prazer total e inocente que ele sente ao brincar com os poderes mágicos que a ficção hollywoodiana lhe outorga. Fuga de Los Angeles encena essa dupla posição de Carpenter, e sua complexidade talvez explique o fracasso comercial do filme.




Tão serpentino quanto seu herói Snake, John Carpenter projeta nele o equívoco de sua situação de cineasta. Disso é testemunha uma das molas da narrativa, que retoma identicamente o primeiro episódio nova-iorquino. O problema inicial da intriga é o seguinte: como fazer com que um criminoso anarquista se interesse pelo destino da humanidade e, acessoriamente, pelo do presidente dos Estados Unidos, ao passo que evidentemente “ele está pouco se fodendo”. Em outras palavras, como fazer com que ele participe de uma história da qual ele não tem vontade nem mesmo de ser espectador? Comunicando a essa história uma questão vital, isto é, religando organicamente o herói à ficção que ele se vê obrigado a inventar. No coração do filme, Carpenter instala um engodo secreto e eficaz: Snake deve lutar minuto a minuto contra um vírus mortal que os homens do presidente injetaram em seu corpo para constrangê-lo a desempenhar o papel que escreveram para ele. O herói é vítima de uma lenta dissolução: homem cansado, ele tosse continuamente, tenta retomar o fôlego e pena para seguir o ritmo de uma história, contudo, escrita sob medida. Mas o desenlace revelará a Snake que o vírus era apenas um engodo e que ele lutou, passo a passo, contra uma pura ficção. Os vírus se mostram impotentes e factícios por si sós: um metteur en scène é necessário para produzir a crença que lhes dará vida. É esse o preço para que a ficção se torne uma questão de vida ou morte. Impossível não pensar que Carpenter nos conta sua história: não somente a narrativa oculta de uma doença que também o inquieta, mas sobretudo sua própria relação com as encomendas dos estúdios de Hollywood. Fuga de Los Angeles se revela, nesse sentido, um documentário sobre a maneira como Carpenter — apesar das restrições financeiras e de roteiro que ele confessa lamentar por vezes — consegue habitar e animar suas ficções com a força e a honestidade de uma crença a mil léguas de toda paródia.

Nisso reside a obstinação admirável de John Carpenter: ele substitui sub-repticiamente as necessidades das encomendas e outras programações de Hollywood pela necessidade, muito mais urgente para ele, de sua própria relação com a ficção hollywoodiana, sempre concebida em uma pertença à história do cinema que a precede e a sustenta. Disso é testemunha seu trabalho permanente sobre os gêneros: a vontade de inscrever cada um de seus filmes em um gênero bem definido (ficção científica, suspense, filme gore ou de horror) prova que ele nunca deixou de situar seu trabalho no interior da história do cinema. No início de Fuga de Los Angeles, o travelling que percorre do avesso as letras gigantes de Hollywood nos arrasta por esse mesmo movimento para trás. Carpenter se lembra amorosamente dos filmes que Hollywood produziu: os seus em primeiro lugar, dos quais Kurt Russell parece o ícone, e os da era de ouro. Em um súbito silêncio, Snake Plissken dita a seus adversários as regras do combate: será um duelo, como nos faroestes de Ford. Assalto à 13ª DP já transpunha a intriga de Onde começa o inferno para uma delegacia de Los Angeles atacada por gangues assassinas. Halloween retornava a tempos do cinema ainda mais recuados, ao Nosferatu de Murnau, retorcendo toda a mecânica das posturas e o gestual do vampiro.

Fuga de Los Angeles constitui uma forma de culminação dessa investigação. Carpenter se interessa pela ficção científica porque ela constitui um gênero cinematográfico específico, um jogo cujas regras ele gosta de respeitar, principalmente através do uso dos efeitos especiais. Mas Fuga de Los Angeles não é um filme tradicional de ficção científica, pois não coloca no coração de sua narrativa a distorção entre a época presente e a que o filme antecipa. Ao contrário, ele nos arrasta brutalmente para o que, desde os créditos iniciais (“2013, NOW”), torna-se nosso presente: nós estamos em Los Angeles, em 2013, logo após termos pernoitado em Nova York, em 1997.

Carpenter se serve das armas da ficção científica para reforçar a potência da ficção: Fuga de Los Angeles desdobra uma profusão de efeitos especiais digitais muito mais irreais que os de À beira da loucura (em que eles só aparecem em dois ou três planos) e uma trilha sonora trabalhada graças ao som digital, cuja amplitude e espectro catapultam o espectador para o meio dos recorrentes tremores de um terremoto ininterrupto. Hollywood permanece um imenso estúdio de cinema, onde Peter Fonda surfa no maremoto, ao qual se junta — na crista da onda! — o vermelho sublime e totalmente improvável de um imenso conversível. Apesar da falência dos estúdios Disney — “desde que eles se arruinaram em Paris” —, Hollywood tem belos restos. Esse lugar de caos é de fato o último local em que o cineasta Carpenter tem vontade de fixar sua câmera. A violência do filme, o mal-estar que ele proporciona, provêm de uma tensão permanente entre um desejo de aniquilação (de onde procede o assunto do filme: os Estados Unidos ousarão a “solução final”?) e a audácia eufórica dos que escaparam e dos sobreviventes.




Como Snake, Carpenter tem em mãos toda uma panóplia de brinquedos caros: um plano retomado de Fuga de Nova York nos detalha longamente seus tesouros. O cineasta não dissimula o júbilo infantil que sente manipulando as ferramentas e os artifícios da “mise en scène digital”. Mas esta implica um tal distanciamento em relação à intriga e aos personagens que eles acabam fatalmente por desaparecer. A arma de eleição de que Snake se utiliza é um holograma: ele pode se duplicar e enviar sua imagem a 800 metros de si mesmo, de modo que nem seus adversários nem o espectador saibam mais onde alcançá-lo. Mas, para Carpenter como para Snake, esse semirretrato é ainda a ocasião para uma manipulação. À distância de si mesmo, Snake se retira da ação e deixa a seus perseguidores um último engodo: o controle remoto encarregado de destruir o planeta nos faz finalmente ouvir uma visita guiada de Hollywood, sequência de lugares-comuns entusiasmados em que só faltam os risos pré-gravados.

Uma vez que ele reativa os poderes mágicos da ficção, uma vez que a ficção científica lhe permite multiplicar seus engodos, Carpenter mimetiza a destruição de Hollywood para melhor lhe devolver a vida. Ele segue duas pistas simultaneamente: realizando uma série, programando seus episódios e suas repetições, ele tenta também escapar das programações que fazem os filmes de encomenda. É por isso que ele se serve muito pouco dos meios que os estúdios puseram a sua disposição. A grande cena de combate, além do duelo de faroeste, é ainda uma cena de peplum, alusão irônica aos jogos do circo que Hollywood organiza. Snake, sozinho no meio de um estádio, dispõe de alguns minutos para lançar uma bola em uma cesta de basquete, regra do jogo simplíssima, longe da sofisticação dos combates digitais. Pensei então no que Carpenter diz sobre as transmissões esportivas, últimos espetáculos da televisão americana que ainda o estimulam, pois deixam advir uma experiência e um acontecimento cujo desfecho não é programado.

Na última imagem, Kurt Russell dirige aos espectadores um olhar-câmera com seu olho único. Após ter desligado, graças a sua última bugiganga, todas as energias do planeta, o herói nos deseja “Boas-vindas ao mundo dos humanos!”. Terminados os efeitos especiais, a sofisticação das imagens — retorno aos primeiros tempos do cinema, graças a um controle remoto desviado de seu programa inicial. Mais forte que os incríveis efeitos especiais, Carpenter encena um último milagre, chave do filme inteiro: essa pequena bugiganga simboliza a própria ideia de “entretenimento programado” que resume o funcionamento atual do cinema americano do qual o próprio cineasta depende: “O entretenimento programado conquistou o mundo. Tudo é programado atualmente, desde o estágio da escrita do roteiro até a implementação: quando um filme sai, programou-se quem atuará nele, de que ele falará, qual será o alvo. Mesma coisa em relação ao estilo de produção, com toda essa tecnologia e a cadência que ela impõe” (Entrevista in Cahiers du cinema nº 503). Snake Plissken é um verdadeiro herói, tão vicioso quanto uma serpente, porque ele consegue desprogramar o controle remoto, macguffin da intriga e fonte das armas prodigiosas que lhe foram confiadas. Como ele, Carpenter se mostrou capaz de manter seu controle ao mesmo tempo em que só obedece, finalmente, às puras regras de mise en scène. Nos desenlaces de Fuga de Nova York e Fuga de Los Angeles, um pequeno milagre se opera diante de nossos olhos: à imagem de seu herói Snake, Carpenter é o cineasta que perverte os controles remotos e, serpentino, manipulador, consegue fazê-los rir e cantar. Não é tão surpreendente se nos lembrarmos que ele também escreve a música de seus filmes apenas para manter a primeira e a última palavra!

[1] NdT: A sentença joga com o termo souvenir, “lembrança”, “recordação”, que pode significar também os objetos comprados por turistas como lembrança.

No Escape from Hollywood : Escape from L.A. de John Carpenter foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n° 2, verão de 1997. Tradução: Rafael Zambonelli.

Por que ir chorar no cinema?


Por Judith Cahen

Acabo de ver Roma desolada pela terceira vez... As lágrimas vieram ainda aos olhos, sempre nos mesmos momentos. Momentos pungentes e dolorosos como pequenas facadas que nos damos por vezes a nós mesmos para ter a experiência de nossos corpos em dias de solidão... Por que ir chorar no cinema? Talvez para experimentar esse estranho paradoxo que quer que a solidão seja enfim e curiosamente compartilhada. Para mim, Roma desolada expressa essencialmente esse paradoxo... quando se trata apenas, no fundo, de encontros.

Quando realizei A Cruzada de Anne Buridain, eu não tinha mais solidão. Meu filme devia expressar até a saturação o estado de confusão interior quando nós nos sentimos povoados, atravessados, pelos encontros, muito ocupados pelos outros para saber onde estamos. Eu tentava construir o vazio em mim, em vão.

Roma desolada apareceu-me como um filme, ao mesmo tempo, estranhamente despovoado e cheio de gente... Nele, Roma é mostrada desnudada, desertada, apesar da multidão e da infinidade de encontros sobre os quais nos conta a voz off.

Mas esses encontros não parecem nunca trazer a calma interior. Vincent Dieutre ou, melhor, o narrador, parece ter encontrado tantos corpos, amantes, que não se trata mais de mostrar apenas um deles, como se as carícias acumuladas só tivessem aumentado o sentimento de estar sozinho e desarmado frente à opacidade do mundo.

Não há muitas imagens em Roma desolada. Podemos nos frustrar... a menos que consideremos que essa economia de planos está lá para nos lembrar que há talvez muitos planos hoje, muitas imagens, e que não é fácil ver o mundo simplesmente... Experimentar essa solidão, perdido, sozinho como se trancado no fundo de sua cabeça, num corpo cansado, chapado, não nos permite ver nada além da superfície das coisas. Não uma superfície lisa e clara, mas uma espécie de véu opaco que é só um reflexo mórbido das profundezas que o fazem ser. Esse véu parece se posicionar entre o narrador e o filme, como uma membrana; nunca a voz off coincide exatamente com o que é dado a ver. Como se ela fosse desencorajada por todas as imagens possíveis, que jamais dariam conta do mundo interior que ela exprime.

As imagens da televisão, recorrentes, sem o som de seus slogans publicitários agressivos, terminam por nos dar essa sensação ambivalente de indiferença às imagens e de extrema sensibilidade/fragilidade, à escuta de uma voz que tenta dizer, sem pathos, o cotidiano de uma vida à deriva que se reconhece simultaneamente sem consistência e à beira do mais essencial, na relação mais crua com a própria angústia da existência...

O texto da voz off conta muitas vezes esse sentimento de solidão absoluta que conhecem aqueles que dormem assim com os outros sempre na esperança de se unir durante alguns instantes. “Fazer amor não nos unirá”, simplesmente porque a parte que pode ser partilhada será sempre infinitamente menor que essa dose de solidão interior que acumulamos desde a infância... Contudo, se nada pode ser absolutamente compartilhado, o próprio filme como trabalho, depois como superfície projetada, permite a comunhão.

Pourquoi aller pleurer au cinéma ? – Rome Désolée de Vincent Dieutre foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n° 2, verão de 1997, p. 28. Tradução: Leticia Weber Jarek.

Mesa-redonda: “Para Sempre Mozart”, de Jean-Luc Godard




Por Judith Cahen, Hélène Frappat, Emmanuel Giraud, Julien Husson e Sandrine Rinaldi

Para Sempre Mozart é um “Godard” bem mediano, se o comparamos àquelas obras-primas que todos nós conhecemos. Estranhamente, (quase) ninguém ousou dizê-lo. Sem cair na armadilha do assassinato por ausência – pois nós, pontualmente, falamos bem dele – tivemos vontade de fazer uma mesa-redonda em forma de mensagem para o cineasta. O problema é simples: todas as condições estão reunidas para que a crítica institucional e o meio cinematográfico transformem definitivamente o suíço reclamão em um vovô intocável, seguro de sua infelicidade e de sua solidão de Artista. Mesmo que isso signifique passar por imaturos pretensiosos, nós exigimos da parte de um criador, com quem nos importamos talvez mais do que todos os outros, e porque nós pensamos que ele ainda é capaz, filmes um pouco menos previsíveis, um pouco menos confortáveis. Obras, por que não, “fracassadas”, com a condição de que elas assumam riscos, e redescubram o segredo do teor documental! Isso nos tiraria da acadêmica oposição entre “o Homem e a Obra”, na qual o cineasta, cada vez mais cansado, parece ter se refugiado... Ao trabalhar nossas reticências em relação à Para Sempre Mozart, nós também procuramos o que, na obra de Godard, continua resistindo.

O que pedir, hoje, para Godard?

Judith Cahen: O que se espera ainda de Godard, o que podemos pedir a ele...? Essa questão do teor documental me incomoda. Se pegarmos A chinesa e Aqui e lá, qualquer que seja o ponto de partida, ficcional ou documental, vemos como Godard inscreve o documentário dentro da ficção, e reciprocamente. Ele é documental sobre a sua própria ficção, documental sobre os atores. Me parece que essa força documental é a matéria-prima do seu cinema...

Sandrine Rinaldi: É o que diz Gorin: uma ficção se torna boa a partir do momento em que ela vira documentário e um documentário se torna bom a partir do momento em que ele vira ficção.

Judith Cahen: O que me intriga é a que ponto esse filme mostra pouco das relações – digamos a evolução dessas relações. No oposto dos últimos filmes de Breillat ou de Anne-Marie Miéville, que se batem com toda a ingratidão da relação. Como resultado, não se sabe bem sobre o que ele trabalha. Tem essa história do começo, a relação entre um diretor idoso e seus filhos ou sobrinhos que partem juntos, mas Godard os faz desaparecer muito rápido. Isso se torna a ligação de um velho homem com a obra e o mundo... Não existe verdadeiramente relação com o outro... Dessa ideia de relação, eu passaria à questão da produção, no sentido amplo: no sentido em que Rivette diz que um filme conta sempre a história de sua filmagem. De que história o filme de Godard oferece o testemunho? De sua solidão absoluta diante de seus patrocinadores... Temos a impressão de que, na verdade, não existe encomenda, ninguém diante dele! Ele conta essa história de encomenda autoritária, mas não existe “ponte” de exigência em torno dele!

Emmanuel Giraud: O único momento no qual se sente uma relação é a cena do carro, entre Sylvie e Vitalis, e o carro que não liga...

Judith Cahen: Esse é o meu plano preferido!

Helène Frappat: Tem o plano de Vitalis e da garota na cama também...

Judith Cahen: Tem pontinhas de relações, mas Godard não conta a historia dos laços que se amarram ou se desamarram...

Hélène Frappat: Nunca saberemos por que Vitalis partiu...

Emmanuel Giraud: Não existe relação possível, nem com os jovens que se queixam do combate na Iugoslávia, nem com os produtores. Godard dizia, ainda recentemente, que não existem mais produtores, que eles não têm mais dinheiro, e, portanto, não podem pedir nada, nem exigir... Essa reclamação, a eterna reclamação godardiana, seria sensata se ela levasse verdadeiramente em conta a realidade da produção de hoje. Existem produtores que têm dinheiro: para trabalhar com eles seria preciso que seus filmes dessem dinheiro. E existem produtores sem dinheiro, prontos para produzir seus filmes que dão pouco retorno... Em qualquer lógica econômica, ele não pode pedir aos produtores que tenham dinheiro para os seus filmes que não dão retorno! Ou ele se coloca numa situação de grana e dá um jeito de dar retorno, ou ele sai dessa situação de grana, e tem a possibilidade de fazer filmes com pouca grana. Enquanto que nesse filme, Godard se contenta em dizer: “eu não tenho lugar nesse mundo”.

Hélène Frappat: O mar não tem água suficiente! A insatisfação, inverificável...

Emmanuel Giraud: É isso! É como no filme de Vitalis, definitivamente não tem água suficiente no mar!

Julien Husson: Na verdade, Para Sempre Mozart organiza uma relação com a tristeza atual que é, apesar de tudo, uma relação, mesmo que enviesada, com o mundo... É de uma tristeza incrível, de uma tristeza triste, próxima do cansaço. Pode-se acrescentar a ela os tiques de vovôzinho, essa espécie de culpa perene, bem rígida, e depois esse lado velho anarquista de direita, da ironia fácil, o qual Godard não abandonará nunca. Mas pode-se também se perguntar até que ponto ele faz isso conscientemente, até que ponto ele se afunda nessa triste tristeza de forma totalmente lúcida. O filme se ancora parte na burrice dos jovens pró-Iugoslávia, parte na figura da renúncia (do cineasta) – recuando ao máximo o momento em que a melancolia, que é totalmente diferente da tristeza, virá. Em que alguma coisa verdadeiramente emocionante poderá surgir. Em que a citação de Oliveira (“uma saturação de signos magníficos banhados na luz de sua ausência de explicação”), à qual ele não hesita em voltar, será aceitável. Nesse sentido, existe, como raramente, o sentimento de um trajeto pelo qual um cineasta atravessa (sem verdadeiramente pensar nela) a guerra, antes de resolver (sem entusiasmo) enfrentar a rodagem de um filme.

Sandrine Rinaldi: Eu não acredito que tenha saída, por mais que se conheça Godard há vinte anos: o cinema “aventura sem futuro”, se isso não é melancolia, começa a se tornar nostalgia, isso fica rançoso e fácil... Eu pensei em Ferreri que dizia, nesses últimos tempos, que nos anos 70 era fácil fazer um filme, aconteciam muitas coisas, era fácil ser contra ou a favor de tal filme. Hoje é mais difícil para ele encontrar um tema, é mais difícil criticar, pois ele cai rápido nas críticas mais batidas, sem efeito: a crítica das imagens, a crítica da sociedade... Eu tenho a impressão de que com JLG/JLG – Autorretrato de dezembro, Godard chegou numa espécie de cume, ou de impasse... Com Para Sempre Mozart, eu acho que ele filma muito confortável, muito bem instalado. É complicado na verdade: ele é redundante, não assume riscos e ao mesmo tempo eu sinto que ele tem vontade de fazer outra coisa, sentimos nele um desejo de fazer outra coisa em relação ao seu “público”... É tocante. Ele tenta alguma coisa que quase reata com O demônio das onze horas: o lado aviãozinho “bum!”...

Judith Cahen: Como em A chinesa...

Julien Husson: Com a diferença de que naquele momento era lúdico, inventivo. Hoje é estático, é a estase total.

Judith Cahen: Depois, nos anos 70, tinha essa relação “histérica” com a política, e ele observou isso... Hoje, a única relação com a política que ele pode taxar, são os “jovens” que vão para a Iugoslávia!!!

Emmanuel Giraud: Ele os taxa dizendo: “Vocês vão tomar no cu, vocês são, na verdade, criancinhas que queriam brincar de guerra, vocês não deveriam ter ido mais longe do que o canto de jardim que vocês tinham que ter cultivado!”

Hélène Frappat: Você acredita que ele despreza tanto assim seus personagens?!

Julien Husson: Isso não é desprezo, é ironia. Eu acredito que ele sempre sentiu uma espécie de desinteresse fundamental por aquilo sobre o qual ele finge falar (a política). Mas hoje, ele tem a tendência a se contentar em acumular as garantias da ironia. Por isso, duas em cada três cenas são arquiprevisíveis, existe muito pouca surpresa. No máximo, damos um sorriso amarelo (eu falo da primeira parte do filme), com maior frequência nos entediamos, no sentido mais pejorativo do termo: não somos estimulados.




Judith Cahen: Bom, Sandrine, você sentiu no Godard um desejo de passar para outra coisa, voltemos à nossa questão do começo: a de uma espera e de um pedido a Godard. O que pedimos a ele?

Sandrine Rinaldi: Eu não tenho uma relação com o Godard tão forte quanto vocês. Se eu participo de uma mesa-redonda numa jovem revista de cinema não é para bajulá-lo. E se queremos que ele evite se tornar um “velho babaca”... podemos enfrentar a sua forma de mostrar os jovens com brincos na orelha (isso deixa muito “jovem”, os brincos...) que dizem que preferiam ter ido ver Exterminador do futuro 4. Isso, por exemplo, é totalmente nojento! A demarcação, ou a provocação teria sido mostrar jovens “espertos” que vão ver o último “Godard”! Aí haveria uma relação possível – vocês falavam de relação... Com essa denúncia idiota de Exterminador do Futuro 4 e dos “jovens”, estamos no puro consenso...

Judith Cahen: Se continuássemos o jogo de “o que gostaríamos de pedir a Godard”, eu lhe pediria para fazer um documentário, sobretudo depois de JLG/JLG – Autorretrato de dezembro. Porque se ele escolheu falar da Iugoslávia e do movimento “Sarajevo Capital Cultural” que ele faça as pessoas desse movimento interpretar, que ele integre alguma coisa da experiência deles... Eles não estão todos mortos lá! Que ele faça François Tanguy interpretar, no lugar desse seu Jérome...!!!

Sandrine Rinaldi: Mas ele não se importa com François Tanguy!

Judith Cahen: É isso que é triste! Foi ele quem disse “a ficção sou eu, o documentário são os outros”... Então, se ele está só e amargurado demais, que ele volte a ser um pouco documental!

Hélène Frappat: Como em France/Tour/Détour/Deux/Enfants

Judith Cahen: Nem mesmo lhe pedimos tanto. No limite, que ele seja capaz de ser documental como ele foi com Chantal Goya e seu penteado em Masculino Feminino... a forma como ela reajusta permanentemente o seu corte quadrado... Se ele é capaz de fazer documentário com Chantal Goya, ele pode facilmente fazer com François Tanguy!!!

Sandrine Rinaldi: Eu tenho um projeto de filme para Godard: ele deveria fazer um filme sobre Bardot pedindo votos para o Front National em Vitrolles! Ele retomaria sua atriz de O desprezo e então aí... Isso seria interessante... Ou sobre Dorothée. Ou não, melhor ainda, sobre AB Productions. Ele faria um documentário genial sobre AB Productions!

Emmanuel Giraud: Isso o obrigaria a fazer outra coisa, diferente dessas cenas convencionais nas quais o produtor planeja pegar o dinheiro do caixa da sala de cinema. É uma falta flagrante de caracterização dos personagens. O único momento em que os personagens tentam dar conta de sua situação, eles se contentam em dizer: “Ah, vamos tomar no cu!”

Judith Cahen: Não: “no traseiro!” Eles são bem educados...! (risos)

Emmanuel Giraud: Sente-se que esse é um verdadeiro tema: a relação anal com o mundo e com o outro. (risos) Eu então proponho – pois isso é também a vocação da Lettre du cinéma –: que Godard se ponha em cena, diante de uma sala de cinema, que ele se faça sodomizar pela fila de raros espectadores do seu filme, e que ele diga o que sente!

Hélène Frappat: “Como eu fui enrabado (minha relação com o mundo)”! (risos)

Na guerra como na guerra[1]...

Emmanuel Giraud: Bem. Se o filme é criticável, ele está longe de ser horrível, claro. O ponto de partida sobre a família, essa história de burguesia contemporânea, é interessante.

Julien Husson: O problema da primeira parte sobre a Iugoslávia é a sua afetação de intempestividade, ou de inatualidade. Eu contei mais de 20 referências a autores que são, todos, completamente esquecidos, ou considerados antiquados: isso vai de Malraux à Camus passando por Victor Hugo, Bernanos... A lista habitual...

Sandrine Rinaldi: Então, eles não são tão antiquados!

Judith Cahen: Malraux está na moda! O que você quer dizer?

Julien Husson: Eu quero dizer que essas citações não funcionam, ou então funcionam apenas como uma consolação, um bálsamo sobre uma perna de pau, uma palavra supostamente mágica: me parece que Godard se fecha, se protege atrás dessas velhas referências. Da mesma forma: Mozart, tudo bem, isso atrai os espectadores, mas por que não Dusapin?

Helène Frappat: Ah não, não Dusapin! (risos)

Julien Husson: Ou Luciano Berio, ou Ligeti (existem algumas notas de Ligeti, aliás). Enfim, isso lhe permite não se colocar um pouco em perigo. Ele não se pergunta o que é filmar uma guerra hoje, por exemplo... Isso dito, era o gênio de Tempo de guerra mostrar que a guerra se pensa em categorias. Não existe a guerra de 1850 e a guerra “hoje”! A guerra é a Guerra; mas aqui ela está reduzida à única frase do “pedaço de ferro num pedaço de carne”... E mesmo em relação a isso ele introduz uma dúvida, porque ele faz um casting como pretexto! Correlativamente, pois tudo está ligado, numa espécie de negligência nostálgica de não sabemos o quê, uma memória paralisada sobre algumas posturas arqui-conhecidas, nunca, ou quase nunca ele se preocupa com a interpretação dos seus atores: desse ponto de vista, a sequência absolutamente satisfeita dos atores que falam em “salvar os pobres” (?!) é insuportável.

Judith Cahen: Não sei se compreendi.

Julien Husson: Essa maneira muito batida de proceder não produz nem pensamento, nem prazer. O único efeito é um efeito de acumulação. Por outro lado, Godard recicla mais do que nunca. Existem pelo menos nove referências aos seus próprios filmes nessa primeira parte. O ganho, para nós, bem como para os personagens, é muito pouco, porque só se consegue a restituição de uma moral do sacrifício transformada em derrisão... Tudo isso me parece extremamente afastado do “pequeno Sollers”, como diz Vitalis, e de seu belo texto sobre Marivaux (denominado “a Sarajevo”...).

Sandrine Rinaldi: Sobre a Iugoslávia, Godard não “pensa” nada mais do que Finkielkraut...

Hélène Frappat: Isso não tem nada a ver com Finkielkraut!... Mas efetivamente ele não pensa nada da Iugoslávia... E o problema não é esse: no filme ninguém se interessa em saber quem é sérvio, bósnio ou croata!

Judith Cahen: Sobre a guerra em si ele não pensa nada, mas ele pensa a iniciativa dos intelectuais e artistas que vão a Sarajevo... Nesse ponto ele está próximo de Baudrillard...




Julien Husson: Ele disse a mesma coisa em Aqui e lá

Hélène Frappat: Discordo!

Judith Cahen: Em Aqui e lá, ele perguntava: “qual sentido isso tem para nós, aqui, de lutar lá?” Além do mais, isso concernia os militantes políticos! Aqui ele não critica, absolutamente, as mesmas pessoas.

Julien Husson: Ele tenta apenas criticar a forma contemporânea da intervenção estrangeira; mas no fundo, ele diz a mesma coisa. O que me constrange é que ele faça isso de uma maneira tão desagradável. Estamos muito longe da emoção “mental” de Aqui e lá! Ele se contenta em evocar a última figura datada da passividade, da ilusão de intervenção e da capacidade que as pessoas têm de não assumir o mínimo da responsabilidade que eles tinham que assumir aqui onde elas estão. O material é o mesmo, o tratamento menos interessante...

Hélène Frappat: Mas enfim, essas não são, em absoluto, as mesmas guerras! A guerra da Iugoslávia é, mesmo assim, particularmente confusa.

Julien Husson: A luta na Palestina não era menos, Godard simplesmente levou quatro anos para se dar conta.

Sandrine Rinaldi: Digamos que a guerra mudou e Godard não!

Hélène Frappat: Isso não é Aqui e lá, é um conto dos Grimm! Isso é o que eu mais gosto na primeira parte, o lado conto de fadas.

Judith Cahen: Sim, é o lado João e Maria!

Hélène Frappat: É por isso que eu não senti apenas uma “falta” de teor documental. O que me importa, pelo contrário, é essa forma de escolher a ficção... alguma coisa de ingênuo e bárbaro ao mesmo tempo, do lado do conto de fadas. No limite, não tem mais nem menos documentário do que tinha em Tempo de guerra... Eu gosto da ideia da grande resistência, essa ideia totalmente ingênua na qual três personagens partem mesmo se não sabemos muito em direção a quê. Como em Rivette, eles se posicionam, existe trabalho, eles partem!

Judith Cahen: Sim, mas Godard mostra sobretudo a renúncia, o fracasso.

Hélène Frappat: Ele põe em cena a renúncia... Mas Vitalis, o cineasta, nunca é patético... E os três outros ingênuos, sua partida é inteiramente estilizada! Eu gosto quando eles lavam as suas roupas! Isso acontece numa floresta, é o lado Cachinhos Dourados...

Julien Husson: Sim, enfim, é bem bonita a floresta, mas o que fazer com as cenas em que eles cavam as trincheiras onde eles serão fuzilados?

Hélène Frappat: Ah, nos contos de fadas tem sempre um momento em que eles são massacrados! (risos)

Julien Husson: Aqui não é massacre, é extermínio!

Hélène Frappat: João e Maria termina no forno!

Julien Husson: Eu não consigo ver o lado “era uma vez”. Ele é recheado de referências jornalísticas! Isso me impede completamente de ser “encantado”. Não é porque você faz um personagem dizer “que horror!”, que o horror existe! Tem um verdadeiro mau-humor no começo, nas cenas do carro e da refeição... mas a menina que cava uma trincheira falando da difícil “amizade” com a filosofia não é o horror, é o Godard senil! (risos)

Hélène Frappat: Mas tem também a estilização das estações com a empregadinha, seu rosto na neve: é ao mesmo tempo muito ingênuo e cheio de horror! “E quando o manto de neve tiver recoberto a pradaria, o pai se casará...”

Emmanuel Giraud: Eu acredito que Godard mostra que os personagens vivem num conto de fadas. Quando Rosette é estuprada, Camille e Jerôme, em vez de reagir, só conseguem dizer “Pobre Rosette”. Nesse sentido eles estão verdadeiramente muito longe da realidade. Mas o próprio filme não é um conto de fadas!

“Não sentimos nada, mas dizemos alguma coisa”

Julien Husson: Mesmo assim, em relação aos seus últimos filmes, Godard tentou alguma coisa um pouco diferente. Ele opera muito menos sobre a dissociação nas imagens, entre as imagens... Praticamente não existem intertítulos... é também por isso que ele exagera nas referências... O filme, tendo uma menor densidade que o habitual, dá mais espaço para o significado. As referências são menos musicais, elas não se acumulam em muitas camadas...

Judith Cahen: Eu acho bom que ele tente deixar as citações audíveis, putz!

Julien Husson: Digamos que isso acentua o lado grosseiro. Isso impede de sentir qualquer coisa.

Hélène Frappat: Sim, Djémila, no fim da conversa em árabe, diz “O que é a morte – não sentimos nada, mas dizemos alguma coisa.”

Julien Husson: Isso volta pelo menos duas vezes, porque é dito também na floresta. É uma frase extremamente importante. Eu tenho cada vez mais a sensação de que com essa acumulação pesada de frases com referência, Godard deliberadamente impediu qualquer emoção. Como se fosse preciso passar por ali para chegar no eventual “fim” do filme. Como se o mundo de que fala Godard, que já era abstrato, fosse aqui particularmente abstrato. Se existe uma dimensão de Alto Teor Documental, de ATD no filme, é essa. Eu me explico; a frase “Não sentimos nada, mas dizemos alguma coisa” exprime que não há mais tanto lugar para a surpresa. Há apenas uma reiteração dos discursos, que remete a uma passividade dos personagens, e Godard diz “finalmente, eu vou fazer igual”. Parecido com as pessoas que pensam se engajar indo fazer teatro sabe-se lá onde, na floresta – enfim “Godard”, seria melhor dizer “o filme”. Isso é da ordem da opinião geral... Como se ele quisesse restituir um descolamento em relação ao gesto de pegar o “real” nos braços. Não se sente nada, então se fala, na falta de coisa melhor. Através desse “descolamento”, toda uma camada da representação do real permanece no estado de opinião. Como se fosse preciso passar por isso para fazer a transição para aquilo que se torna importante, e que é uma espécie de resgate para o cineasta no filme, a saber, a filmagem, o momento no qual ele se põe a trabalhar. Existe, mesmo assim, uma relação entre Vitalis e sua atriz, uma relação sádica, de cineasta, mas, bom, é uma relação. Pouco importam os atores, porque nós os encontramos entre os cadáveres, nós os despimos e lhes damos um figurino, o que importa é a relação que vamos poder estabelecer com eles. Bergala falou muito bem de que forma Godard presta homenagem, de passagem, uma única vez, à atriz, que pega o vento e a chuva no...

Judith Cahen: Mas ele pegou uma verdadeira atriz! Se se trata de pegar as pessoas, não nas latas de lixo, mas nas valas comuns, porque não pegar uma atriz que viu isso um pouco mais de perto, uma militante do “Sarajevo Capital Cultural?”

Julien Husson: Mas justamente, ele mostra que essa atriz foi encontrada na lata de lixo... Ele pega os dois que escaparam por acaso da morte. Me parece que está claro quanto à questão da “escolha”... É díficil dizer que isso é “documental”, mas é mais estimulante do que aquilo que precede no filme. Isso é, enfim, da ordem da relação. E nessa parte, existem imagens, se não emocionantes, ao menos um pouco interessantes, os céus, um lado pintura marítima, crepuscular...

Os outros: Claaaaaro... (risos)

Julien Husson: E depois, para supor que há “conto de fadas”, saímos enfim, entramos numa temporalidade mais concreta. No momento do casting, o cineasta diz: “Retomaremos depois das férias”. Esse tempo das férias só chega na filmagem. O cineasta toma seu tempo. Ele permanece sentado o dia inteiro sobre o seu banquinho, antes de se levantar e dizer: “Encontrei”. As coisas têm enfim essa simplicidade sem desperdício, e podem, mesmo assim, surgir um pouquinho. Isso permite a passagem para uma outra parte do filme, certamente muito ruim (os espectadores diante da sala de cinema) e depois, sobretudo, a passagem para o concerto final.




Judith Cahen: Isso quer dizer que o filme é muito mais documentário do que se fala, na medida em que ele mostra que não existem mais muitas possibilidades para uma relação documental com o mundo... É verdade que todas as pessoas que foram para Sarajevo falam do sentimento de que não havia mais realidade em lugar nenhum. Isso é muito bizarro.

Julien Husson: Não existe apreensão. Não se sente nada, mas se fala alguma coisa. É isso, “a Iugoslávia”. Desse ponto de vista, Godard permanece um historiador, tão forte quanto nos anos 70.

Emmanuel Giraud: Eu discordo.

Julien Husson: É assim que eu compreendo a ideia de Biette dos “blocos de mundo”.

Hélène Frappat: Ele não fala de blocos de mundo, ele fala de blocos com o mundo ao redor...

Julien Husson: Sim, mas é isso, era preciso passar por um primeiro “bloco”, com o mundo ao redor, só se pode dizer alguma coisa, à despeito de senti-lo, como uma incontornável aridez; para chegar no segundo bloco, com suas falhas, suas aberturas, os penhascos aos quais se pendurar; isso é difícil, é crepuscular, isso passa, claro, por coisas lamentáveis do Godard, do gênero “os produtores são todos idiotas”, “ os diretores de produção são todos pessoas vulgares e colaboracionistas”, mas apesar de tudo, isso avança.

Emmanuel Giraud: Se isso que diz Julien fosse inteiramente verdade, teríamos muito mais que o fragmento de alguns segundos onde o cara diz “OK, é isso, encontrei”...

Julien Husson: É muito mais que um fragmento, isso começa quando Vitalis está no café! Ele está diante de alguma coisa como, digamos, uma solidão, ele partiu de caminhão, aconteça o que acontecer com Camille nunca mais se falará disso, e a transição é feita assim, de maneira extremamente dura. Ele encontra trivialmente os seus atores num lixão, porque sabemos, desde Hitchcock, que as atrizes são vacas, e que não importa qual fará o serviço.

Judith Cahen: Sim, não importa qual... mesmo assim ela é muito bela.

Julien Husson: Sim, ela está nua, além disso… Lavamos nossos olhos de passagem, mas o importante é que o trabalho vai poder ter lugar.

Emmanuel Giraud: Eu compreendo o que você diz, mas eu não enxergo isso.

Hélène Frappat: Mas as “crianças” no começo também trabalham... Sua resistência é um pouco confusa, um pouco ingênua, escoteira, mas a atriz só faz repeti-la, de maneira mais condensada. É a cena das tomadas, 596, 588, “Não, não, não” depois “Sim”. É a mesma história...

Julien Husson: Mas não, Vitalis não está, de imediato, apaixonado por sua atriz como Jerôme é por Djémila (o que o torna menos exigente). Vitalis não está apenas numa relação de gado, mas de exigência infinta. Ele faz 600 tomadas, se for preciso. É muito diferente.

Sandrine Rinaldi: Essa história de transição muito dura entre as partes me parece justa, mas é também o que dá o limite do filme. Porque isso remete a uma composição muito dialética, tese-antítese-síntese. 1) a tese da opinião, que faz com que nos sintamos obrigados a fazer algo, politicamente, pela Iugoslávia. 2) a resposta “artística” do cineasta, diante dos jovens descerebrados que não sabem trabalhar, e que embarcam num impasse – isso sempre me enoja. 3) a resposta teológica, Deus e tudo mais, com Mozart, na pontuação final, a apoteose, o Espírito sintético... Esse aspecto dialético me parece particularmente nojento.

Julien Husson: Isso não é apenas dialético. É místico também. Tem uma espécie de ascensão, de uma esfera de opinião até a esfera da Arte...

Hélène Frappat: Tem uma espécie de graça, mas isso não é especialmente místico.

Sandrine Rinaldi: Ele procurou fazer alguma coisa mais leve, mais próxima do seu período anos 60 que do seu período anos 80, uma coisa de ritornela, de jogo. Mas, ao mesmo tempo, em vez de encontrar o tom menor, ele faz um filme realmente menor... com sua progressão bem marcada... Como se um cineasta fosse obrigado a fazer 35 minutos em torno da opinião... é tão aberrante quanto ouvir Finkielkraut falar durante 20 minutos... A forma como ele quer, absolutamente, dizer alguma coisa, isso me cansa.

Emmanuel Giraud: Bem. Concedamos a Godard os 20 ou 40 primeiros minutos do filme, porque uma entrada na matéria supõe sempre um preâmbulo e um esforço. Mas se nos minutos seguintes ele se esforça em dizer que, acreditem, a única relação possível com uma atriz é o trabalho, e que para isso é preciso ensaiar bastante... Bom... eu acho que isso é, mesmo assim, um pouco leve... (risos).

Julien Husson: Você caricatura o que eu disse. Eu sustento que a primeira parte é totalmente mal-sucedida. Depois, eu tento apenas compreendê-la. Em seguida, isso é talvez uma questão de expectativa diferente, entre Emmanuel e eu...

Emmanuel Giraud: Eu só peço para ver o trabalho!

Julien Husson: Eu senti um certo prazer em ver como Godard filma uma filmagem, a partir do momento em que eu tomei consciência de que tudo funcionaria por derivação de blocos. Eu não estou dizendo que é “profundo”, ou “leve”, ou sei lá... Depois de tudo, como disse Sandrine, isso teria ganhado se fosse ainda mais “leve”!

Emmanuel Giraud: O trabalho é, mesmo assim, filmado às pressas... O plano das claquetes, eu acho isso verdadeiramente péssimo! Seria melhor mostrar o que existe entre as claquetes...

Julien Husson: Eu pensava mais, evidentemente, no momento em que a atriz está deitada no chão e acaba por sorrir...




Judith Cahen: Mas nesse momento ela não está mais no quadro e, contudo, o cineasta diz “é isso, deu certo”... isso não é nada documental! É isso que não funciona! Ela escapa do plano, ela desce para a areia, a assistente corre atrás dela e, depois, de repente, ela chega ali... infelizmente não é diante da câmera, porque, claro, é sempre assim que a coisa acontece e tudo o mais, neste caso, é simples demais...

Julien Husson: Apesar de a câmera estar fora de campo, ele está bem ali para filmar, e Vitalis poderia dizer: “Essa ficou boa”.

Judith Cahen: Mas a câmera ainda está lá em cima, todo mundo viu!

Emmanuel Giraud: Ela está atrás do vidro!

Julien Husson: Mas não é porque ele encadeia duas sequências que estamos no mesmo espaço-tempo!

Judith Cahen: Eu acho isso uma facilidade.

Julien Husson: Tem um corte entre os dois planos, isso é largamente suficiente. Eu não precisei que me explicassem que o cineasta instalou corretamente sua câmera uma vez que a garota foi embora para baixo...

Emmanuel Giraud: Eu pensei “Bem, eles tem um camcorder e eles seguiram a atriz com isso?!”...

Hélène Frappat: Isso também me constrangeu.

Emmanuel Giraud: É como em Todas as manhãs do mundo, a música barroca está presente ao longo do filme, e os caras, ao longo do filme, me dizem: “É bela essa música, hein?!” Você não consegue nem mesmo escutá-la! (risos) É muito fácil pegar uma bela garota, pôr-lhe um belo vestido vermelho, e opa, te joga na areia, um raio de sol e dizemos: “Isso é muito bonito”.

Julien Husson: A emoção da qual eu te falo nasce depois que Vitalis diz: “Essa ficou boa, ficamos com essa”. É o sorriso que se segue, e a maneira como essa garota olha a assistente, com os olhos que se mexem à toda velocidade.

Judith Cahen: Sim, porque “oh ela fez muitos esforços, estamos aliviados com ela...”

Emmanuel Giraud: Você está se deixando ludibriar, Julien. É como a história do cara que fica fazendo uma careta durante um tempo... Depois de uma hora, esse cara põe, por exemplo, o seu isqueiro aqui sobre essa mesa. Você o filma, e o cara te diz: “Esse isqueiro é belo”. E aí você fica contente, porque você pensa que, pelo menos, alguma coisa aconteceu...

Julien Husson: Ele não diz “Essa garota é bela”. Ele diz “A tomada ficou boa”, e eu não vejo por quê sermos particularmente irônicos diante do fato de que Godard presta atenção no sorriso de uma atriz.

Judith Cahen: Isso é um clichê. A retribuição de uma atriz no final de um percurso desencorajador, sua beleza repentina...

Julien Husson: Godard produz ícones há quinze anos, se é isso o que você está denunciando, é possível denunciá-lo...

Sandrine Rinaldi: O plano do pé na vala me toca mais que aquele da garota que sorri.

Julien husson: Ah, mas eu tenho outros... (risos)

Sandrine Rinaldi: O plano se sustenta o suficiente para que Godard não sinta a necessidade, nesse momento, de designar onde está o sentimento...

O silêncio de Mozart

Julien Husson: Retomemos essa ideia de clareza, de filme “menor”, conduzido por uma trilha sonora menos carregada que o habitual. Pela primeira vez eu tive a impressão de escutá-la. Ao mesmo tempo, Godard se livra muito rápido da música de Mozart. É necessário então olhar isso mais de perto. Ela explode no começo do filme, sobre o título. Depois Godard, pouco reconhecível, joga os subalternos do produtor na Mercedes, e mergulha na grama, sobre um fundo de agitação renoiriana, exatamente no mesmo gesto de goleiro de futebol do assistente pegando em pleno vôo o banquinho de Vitalis, depois que este teria “encontrado”. Sim, mas o quê que foi “encontrado” desde o começo do filme, no instante em que a música de Mozart desapareceu, para voltar só no fim?

Os outros (zombeteiros): Sim, o quê que foi “encontrado”?!

Julien Husson: Eu vou testar uma hipótese. No fim, Vitalis chega, de não se sabe onde, no lugar do concerto. Ele não entra na sala, mas se senta no último degrau da escada que conduz até ela, acende um cigarro, escuta a música, e se cala, batendo o ritmo com uma mão. O último plano apresenta uma partitura, virada pela mão do estagiario de Vitalis (o “idiota” do filme). Nos dois casos, o verbo desaparece, e uma mão dirige, mas como que indiretamente, uma ideia, uma imagem da música de Mozart (nós a escutamos ao longe, nós a deciframos). Em alguns momentos cruciais do filme, me parece que Godard tentou inventar “imagens musicais” que dariam, em toda a extensão de seu silêncio, uma ideia integralmente sensível da música de Mozart, e da sua potência de eternidade. Eu penso nesse plano sublime, quando Jérôme e Camille são presos, sobre o rosto de um velho sérvio muito belo, usando um boné e percorrido por tiques, que Godard faz durar numa espécie de silêncio integral. Eu penso no plano do pé que já evocamos. Eu penso, sobretudo, no plano em que Vitalis e sua irmã tentam ligar o seu carro; de repente Godard, num golpe muito franco, como uma síncope, muda de ponto de vista, e filma o carro de perfil, capô aberto; sobre esse plano, uma música elegíaca vem se colocar muito suavemente, antes de desaparecer e de dar lugar, no espaço de alguns segundos, ao silêncio. Nesse instante, eu tive a sensação de que estávamos totalmente alheios da eterna e muitas vezes analisada “imagem-interstício” inventada por Godard – que estávamos muito longe do “entre” o “não sei o quê e o quase nada” com o qual, como que atrasado em relação a si mesmo, ele aluga os nossos ouvidos na primeira parte. Estamos diante de alguma outra coisa. Eu não sei se isso é “novo”, mas eu sei que isso é o equivalente escolhido, logo cúmplice, que eu nem mesmo pensava encontrar na música de Mozart. Como se a imagem fosse uma membrana e, no lugar de fazer eco, de repercutir um som, o amortecia. É nesses instantes que ele está à altura da frase de Oliveira sobre a “saturação de signos magníficos”. Ele tenta essa coisa impossível: filmar a música (de Mozart), através de cortes, estases, suspensões, no ritmo perfeito do silêncio.

Sandrine Rinaldi: Sim, é apenas a retomada da ideia de que o silêncio depois de Mozart é ainda Mozart...

Julien Husson: Eu me perguntava apenas como Godard perseguiu, construiu esse silêncio.

Judith Cahen: É por isso que ele manteve o título Para Sempre Mozart, apesar do seu filme ser a mistura de pelo menos dois ou três projetos diferentes. Isso não é somente uma coisa de marketing. Fazer um filme “sobre” Mozart, não poderia ser, de forma alguma, filmar “Mozart” durante todo o filme, mas convocar todo um mundo, ainda que ele seja constituído de opiniões, para nos colocar na disposição que nos permitiria escutar alguns segundos de Mozart.

Hélène Frappat: Sim, mas se perde, ainda assim, um pouco da busca incessante que é posta em ação no Carmem de Godard, por exemplo, um filme que não para de fazer perguntas. Em Para Sempre Mozart, não existe, verdadeiramente, enigma, não existe, a rigor, nada para “encontrar” – poderia ser um silêncio...

Sandrine Rinaldi: Godard, quando representa “Mozart”, filma... a partitura... Enfim, isso me parece um pouquinho previsível!

Julien Husson: Eu não sei. Digamos que estamos todos de acordo em lhe pedir mais ATD... Com isso, nos calaremos... (risos)

7 de fevereiro de 1997.

[1]Expressão do século XVII. Em tempo de guerra, os recursos e meios são muito frequentemente limitados e é preciso fazer as tarefas cotidianas com os poucos meios disponíveis. Logo, em casos de situações críticas, é preciso trabalhar com o que se tem disponível e não contar com ajuda exterior.

Table ronde : For Ever Mozart, de Jean-Luc Godard foi originalmente publicada na revista La Lettre du Cinéma n°2, verão de 1997. Tradução: Miguel Haoni.

A Cruzada de Anne Buridan, de Judith Cahen




Por Camille Nevers

Anne Buridan é Judith Cahen, da qual é o primeiro “longa-metragem”, longo de quase uma hora. Anne Buridan (se) coloca algumas questões bizarras, ao menos alguns acham bizarro que ela lhes coloque tais questões. Anne Buridan, à maneira do asno da fábula, cuja indecisão deixava morrer de inanição, parece sujeita a uma confusão mais atual, ao mesmo tempo política e amorosa (e é a inanição que ameaça), que aqueles que a cercam e que ela interroga, munida de uma câmera de vídeo, expressam muito bem, se defendendo algumas vezes, e às vezes às suas próprias custas: “O que é, para você, um ato político?”, “O que você faz com as pessoas que te atraem?”. Anne Buridan, de tempos em tempos, durante reuniões militantes em que o discurso patina, ao longo de seu trabalho de enquete que se converte, rapidamente, em busca pessoal – sua própria cruzada, possui o olhar que se fixa bizarramente, que parece se (nos?) perguntar o que ela está fazendo lá. Anne Buridan é uma personagem cômica; sempre deslocada, no meio dos outros, isso faz do filme um “retrato solitário com grupo”, digamos que na linha dos primeiros Moretti. Anne Buridan é uma garota em todas as suas fases, a fase da infância (as cenas lúdicas em Super 8, atravessadas pelo gore e pelo burlesco, “a criança que eu era me atormenta” na canção final...), a fase adolescente (grupo de amigos, comunidade militante, teoria e confusão, vida solteira...), e a fase de “mulher adulta” – da qual ela foge mais do que qualquer outra coisa (no gineco, com Camille de Casabianca e também da sua posição responsável atrás da câmera...). Anne Buridan é uma garota que se procura interrogando os outros, ao menos que se trate simplesmente do contrário e que ela procure apenas o outro que, no filme, se chama Joël. Anne Buridan, em todo caso, percebe bem que “não estamos no essencial”, tão bem que o efeito cômico, frequentemente hilariante, nasce da decalagem entre a palavra retórica como atitude de fachada, postura e impostura, e o desejo eloquente que sofre tanto para se expressar, deixa sem voz, o medo da passagem ao ato. Anne Buridan pressente, contudo, que o essencial da sua interrogação se dissipa frente a Joël, cujos passos de dança e algumas palavras precisas bastam para expressar uma forma concreta de desejo: e, em primeiro lugar, o desejo da jovem mulher, que o observa, que o filma, que o segue, que fantasia com ele... Anne Buridan e sua cruzada me lembram de uma frase ouvida em A paixão de Ana de Ingmar Bergman – aliás, cruzada e paixão têm percursos próximos; dizia-se ali: “O problema para uma pessoa que crê que existe uma verdade é que ela exige que os outros tenham a mesma fé”. Exigente, engraçada, Anne Buridan sabe desagradar a alguns para agradar a outros, de tal maneira que, e para esses últimos, o filme de Judith Cahen estreará certamente em breve.

La Croisade d’Anne Buridan, de Judith Cahen foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, n° 488, fevereiro de 1995, p. 19. Tradução: Leticia Weber Jarek.

“O que fazer com seus desejos?”: Entrevista com Judith Cahen




“Logo vou fazer trinta anos, não posso perder mais nem um minuto”, repete Anne Buridan todo dia, indo de casa para o trabalho, no filme La révolution sexuelle n’a pas eu lieu (1999). Este foi o segundo longa-metragem escrito, dirigido, produzido e protagonizado por Judith Cahen que, assim como Jean-Claude Biette, tem um verdadeiro “horror à perda de tempo”. Judith saiu da escola lançando um longa (A cruzada de Anne Buridan), abrindo uma produtora (Les Films de la Croisade), integrando o comitê de um prêmio (Georges e Ruta Sadoul) e fundando uma revista (La Lettre du cinéma).

Para o nosso encontro – que oficializou o início da nossa pesquisa sobre a revista – voltamos ao local do crime: o escritório da editora P.O.L. (tentáculo da gigantesca Edições Gallimard) onde, 25 anos antes, o comitê da Lettre fechou contrato com a direção da casa num aperto de mãos, sem papéis nem assinaturas. Na conversa nos debruçamos sobre o louco ano de 1995, o filme, a produtora, o prêmio, a revista. E sobre os sentimentos que alimentavam tudo aquilo.

Como descobrimos, Judith Cahen resolveu o problema do asno de Buridan muito facilmente: ao invés de se deixar consumir pela fome, pela sede ou pela indecisão, Judith desenvolveu o superpoder de ocupar, com um corpo, dois lugares ao mesmo tempo. O cinema e a arte contemporânea, o íntimo e o coletivo, a estética e a política... Mas enfim, não percamos mais um minuto!

Boa leitura.

Miguel Haoni

Vestido sem costura: As perguntas que nós temos para lhe fazer são talvez simples demais, mas as respostas não precisam, necessariamente, ser. Podemos começar pelo início ou fazer como Anne Buridan e partir para o essencial.

Você escreveu que, durante os seus anos de estudo, houve dois momentos importantes: o encontro com a militância política e o encontro com duas pessoas, dois parceiros de trabalho, Julien Husson e Hélène Frappat. Como foram esses encontros ?

Judith Cahen: Então... É engraçado vocês falarem da Hélène, mas antes dela havia Emmanuel Giraud. Hélène chegou depois no bando. No entanto, e aqui vocês têm razão, Julien Husson foi meu companheiro, meu parceiro de trabalho e meu roteirista. Depois encontrei Emmanuel na Femis (Fundação Europeia para as Profissões da Imagem e do Som), ele era estudante de produção, o que é um elemento importante e complicado porque a Femis tinha uma dupla reputação: ao mesmo tempo de difícil acesso e muito desprezada pelo meio, que considerava, na verdade, que o cinema não se aprendia na escola. Mesmo assim, com Emmanuel Giraud formamos uma equipe muito importante pois, juntos, fundamos a produtora Les Films de la Croisade. E Emmanuel costumava dizer nessa época: “você deve ser 100% cineasta para que eu seja 100% produtor”, porque ele não queria ser corroteirista. Porque eu tinha o costume de transformar todos os meus amigos em corroteiristas! E Hélène, ao contrário, se prestou totalmente a isso. Assim escrevemos juntas muitas versões de um roteiro. E, realmente, eu escrevi exatamente isso em algum lugar, mas eu diria que Hélène chegou num segundo momento, eu não a conheci na mesma época.

E a militância política, como ela chegou?

Vocês viram A cruzada de Anne Buridan? Porque, é verdade que se pode ver também, nesse filme, os membros da Lettre ainda avant la lettre. (risos)

Então, eu lhes pergunto isso porque vocês viram que, na Cruzada de Anne Buridan, eu ficcionalizo um grupo político. Ora, esse grupo político, que já era, talvez, mais um grupo em torno de uma revista, era de fato, podemos dizer, o ancestral do ancestral do ancestral da Lettre. Nós rodamos no lugar em que as reuniões costumavam acontecer.... Quer dizer, na ENS (Escola Normal Superior) da Rua d’Ulm, onde, de fato, fazíamos parte de um grupo que se chamava Le couteau entre les dents [A faca entre os dentes] (risos). Estávamos próximos de uma revista que se chamava Les cahiers de résistance, que se tornou, que eu saiba, uma publicação que existe até hoje, a revista Vacarme. Hoje, eu não tenho mais nenhum contato com eles mas, por outro lado, eu estava ligada a esse primeiro grupo. Ora, Hélène os conhecia, mesmo que não tenha sido no mesmo momento que eu.

Dessa maneira, nós tínhamos muitas trocas, porque essa era uma turma de jovens normalistas filósofos e Hélène vinha também daí, mesmo que o nosso encontro tenha acontecido mais tarde e por meio do cinema. Mas foi através deles que eu estabeleci uma certa relação com a política... Mas uma relação, verdadeiramente, de uma jovem elite intelectual, porque a maior parte deles era normalista – eu falo isso para vocês porque é importante –, isso quer dizer que eles tinham um salário. São os estudantes pagos da França. São estudantes de um nível alto mas também muito, muito privilegiados. E tratava-se de uma militância de extrema esquerda, Le couteau entre les dents. Mas de extrema esquerda muito intelectual e, dessa maneira, uma espécie de elite. Eu não era normalista, mas enfim, eu estava na Femis e não tinha direito a uma bolsa, porque o meu pai era engenheiro. Eu falo isso porque é importante, porque foi também o que nos foi censurado depois. Quero dizer, nos criticavam com esse anátema: “jovens burgueses privilegiados”.

E a cinefilia apareceu em que momento do seu percurso?

Muito antes. Eu vim para o cinema um pouco pelo teatro. Eu fazia oficinas, cursos de teatro muito jovem, criança mesmo. Criança, adolescente, nesse momento eu queria ainda ser atriz - o que eu me tornei de certa maneira. Na Femis, eu atuei imediatamente nos meus curtas-metragens. A cinefilia veio na infância com um livro sobre Fellini, um livro imenso que agora eu herdei. Na casa da minha avó, tinha esse grande livro sobre os filmes de Fellini, com fotos extraordinárias. Esse livro me fascinava e eu esperava ter treze anos - que era, de fato, a idade para ver certos filmes. Quer dizer que Satyricon era um filme que eu sonhava em ver quando eu tinha dez, onze anos. Depois, eu o revi e ele envelheceu de certa maneira... Sempre me intrigou o fato de que a Cahiers du cinéma tinha uma relação de desprezo com Fellini. Felizmente, Serge Daney retificou as coisas.

Você escreveu um texto sobre a perversão em Fellini e Buñuel, por que esse tema?

Esse foi o meu projeto de mestrado em cinema. Eu fiz as classes preparatórias literárias em filosofia e não prossegui, porque decidi tentar a prova da Femis. Eu entrei na Sorbonne diretamente na graduação de filosofia e meu projeto de mestrado era sobre a perversidade e o cinema em Buñuel e Fellini. Foi um mestrado que eu deixei inacabado, pois entrei na Femis. (Era uma forma de passar da teoria à prática!)

Mas qual era a ideia?

Eu sou filha de psicanalista. Minha mãe era psicanalista e eu acredito que isso é importante na minha estrutura, eu reivindico, além disso, um percurso de analisanda, importante e também inacabado (risos), como diz Woody Allen, “eternamente inacabado”. Então, eu me interessava pelo cruzamento entre o cinema e a psicanálise. E a perversidade para mim resumia-se simplesmente nesta frase: “o perverso é aquele que considera o outro como um objeto e não como um sujeito.” E o que me interessava era a questão do ator. Além disso, Hélène Frappat dizia com humor que Hitchcock falava: “os atores são gado!” e que os atores são bonecos manipuláveis. Os atores não são brinquedos como os bonecos, mas eles não estão completamente na alteridade. O outro, na vida real, é complicado. Mas, no cinema, pode-se jogar com os atores. Então isso me intrigava muito, eu queria refletir sobre essa relação: saber se, finalmente, todos os cineastas que eram excelentes diretores de atores não eram todos perversos polimorfos. Devo confessar que eu não fui muito longe na minha monografia de mestrado e, além disso, no começo, eu procurei por todos os cantos o que foi escrito sobre, e não havia nada! Não tinha muita coisa de interessante na época sobre a psicanálise e o cinema. Eu encontrei dois ou três textos que poderiam abordar esse problema, mas eram textos clínicos. A literatura psicanalítica é muito interessante para os especialistas, mas muito austera e não é feita para cineastas ou estudantes de cinema. Por outro lado, eu li Meu último suspiro, tudo que eu poderia ler sobre Buñuel e Fellini e seus textos de cineastas e isso me alimentou como cineasta. É por isso que desde que eu entrei na Femis, eu pensava: “veremos mais tarde o que será do meu mestrado — ou então não veremos mais! (risos) Eu mesma vou fazer as coisas!”

E existe sempre uma relação com o prazer nas suas escolhas cinéfilas. Nós vimos um vídeo gravado num festival italiano no qual você falava de Renoir, Lubitsch e Hawks, e eu acho que, quando lemos a mesa-redonda da Lettre du cinéma sobre Parfait amour! (Catherine Breillat, 1996) ou a sua correspondência com Hélène Frappat, há uma certa transparência, uma certa espontaneidade na sua fala. Ou quando você fala do filme de Hervé Le Roux (Reprise, 1997) e diz: “mas nós temos que mostrar esse filme para outras pessoas, para muita gente!”. É uma posição muito sincera e enfática. A militância política é também muito excitante, tem um lado “estamos todos juntos”, um lado mise en scène, um lado teatral, na verdade.

Sim, é verdade. Além disso, eu penso que a minha energia de jovem mulher aspirante a cineasta, e depois cineasta, provocou muito o começo da Lettre. Depois os anos foram mais difíceis, a realidade me pegou.

Na minha cinefilia, alguma coisa mudou. Eu tinha a sensação de que havia os hawksianos e os fordianos, isso produzia afinal uma oposição de sensibilidade. Mas também Bresson e Renoir. Eu pensava: Renoir, Hawks. Ora, isso mudou. Quando fui para o Japão, para a cidade de Kujoyama, onde fui artista residente, eu senti uma necessidade, uma avidez em me reconciliar com a minha cinefilia... Então, eu peguei todos os DVDs da biblioteca e acabei sentindo emoções mais fortes diante dos Bressons. Pickpocket tornou-se um filme que me deixa aos prantos cada vez que eu assisto. Eu me tornei religiosa diante desse filme. Eu mudei um pouco.

Você falou do nascimento da Films de la Croisade, do encontro com Emmanuel Giraud, mas em que momento vocês assumiram a direção do Prêmio Georges e Ruta Sadoul?

Muito rápido. De fato, foi realmente através de Emmanuel Giraud, que tinha uma relação com Yvonne Baby. Ela foi a companheira de Orson Welles, entre outros, e ela era a herdeira do Prêmio Georges e Ruta Sadoul. Era já uma senhora de uma certa idade, Emmanuel ia muito à casa dela e ela lhe falou do Prêmio Georges e Ruta Sadoul, que ela estava cansada de se ocupar disso, e ele lhe disse: “eu posso me encarregar disso com o meu bando!” (risos). Ele conduziu as coisas muito bem e a Lettre realmente nasceu daí.

Num primeiro momento, montamos um dossiê de imprensa para o Prêmio Georges e Ruta Sadoul. A ideia era fazer uma carta com um acompanhamento na qual nós escreveríamos sobre os filmes, uma ferramenta de trabalho para instigar os exibidores da França inteira a pegar filmes difíceis para exibir. Então, a ideia inicial era fazer textos quase publicitários para filmes nada comerciais, e o exercício de estilo baseava-se em produzir textos curtos, simples, leves, nada para universitários. É por isso que, depois, a Lettre du cinéma reivindicou, ao contrário, sua completa ambição como revista cinéfila, a qual não teria mais essa mesma missão.

Imaginem que nós fomos todos para Cannes em 1997. E sobre a pilha dos meus arquivos, tinha essa carta que eu escrevi em maio para Chantal Poupaud: “eis a Lettre du cinéma da qual nós tínhamos te falado. Voltamos de Cannes onde estávamos promovendo-a. Nesse número, você vai encontrar textos em forma de cartas, entre Hélène e eu”. Eu lhe havia apresentado Hélène, porque estávamos escrevendo um roteiro juntas. “No momento, nós estamos de novo mergulhadas no Corpos gloriosos”. Imagine: distribuíamos esse fascículo “promocional” com o projeto da Lettre e o projeto de assinatura. Eu acho que é importante dizer que a Lettre du cinéma nasceu desse pequeno objeto cujo objetivo era a difusão. A ideia, na verdade, era de que os filmes eram mal distribuídos.

Há um número no qual eu não escrevi – eu não sei mais qual –, porque eu mesma tinha sido indicada. Tendo em vista que o Prêmio Georges e Ruta Sadoul era para longas de estreia e que A cruzada de Anne Buridan foi selecionado, eu não podia participar. Por outro lado, eu estava completamente inserida em tudo isso e, no ano seguinte, Serge Bozon foi indicado e assim sucessivamente. Nossos filmes estavam também no prêmio.

Mas, realmente, quem estava no comitê do prêmio?

Você acha que eu sei de cor essas coisas de 25 anos atrás, que eu me lembro perfeitamente!? Então, grosso modo, eu sei mas não quero me esquecer de ninguém (leitura): “diretor da publicação: Emmanuel Giraud, direção artística: Agathe Gris, redator-chefe: Julien Husson, comitê de redação: Fabrice Barbaro, Bernard Bénoliel, Manuelle Borgel, Serge Bozon, Sophie Bredier, Judith Cahen, Olivier Kohn, Michel Leveau, Stéphane Malandrin”, Stéphane foi muito importante, ele vinha da Cahiers du cinéma, “Dominique Marchais”, hoje ele é cineasta também, “Christine Martin, Sandrine Rinaldi, Axelle Ropert, Pierre-Olivier Toulza”. Eles já estão essencialmente aqui.




Eu acho que é importante que eu lhes fale de Fabrice Barbaro. Em A cruzada de Anne Buridan, há uma cena com ele. Ele está também no primeiro filme de Serge Bozon, L’Amitié. Fabrice Barbaro era um cinéfilo, mas vocês não podem imaginar a que ponto ele era cinéfilo. Em A cruzada de Anne Buridan, trata-se, aliás, de uma cena, podemos dizer, um pouco cruel para ele. Ele interpreta o papel de Gilles, é um plano-sequência, distantes um do outro nas extremidades de um sofá e depois de algum tempo ele diz... Vocês não viram no filme?

Sim, é o cara dos hétero-chatos!

Exatamente! Fabrice era uma figura muito importante para todos nós. Ele estava ligado tanto a mim quanto a Éva Truffaut, Serge e Axelle. Ele está no filme de Serge, L’Amitié, talvez de maneira ainda mais cruel do que em A cruzada de Anne Buridan. Ele se suicidou em 1998. Mas eu estou em paz com ele, porque ele me escreveu uma palavrinha adorável depois de ter visto o meu filme La révolution sexuelle n’a pas eu lieu – eu o convidei para a pré-estreia. Fabrice era um cinéfilo imenso, mas ele estava mal consigo mesmo, mal com seu corpo, ele tinha um problema com as garotas. Havia em Fabrice um descompasso. Creio que ele é um personagem muito emblemático da relação de todos nós com a cinefilia. Sem dúvida, ele era o mais cinéfilo do grupo. Ele tinha visto tudo, ela estava na Cinemateca o tempo todo – porque um verdadeiro cinéfilo vai ver os filmes em tela grande. Ele conhecia tudo, era maravilhoso. E, ao mesmo tempo, era alguém que tinha uma relação afetiva com a vida muito complexa, sobrecarregada. Foi esse descompasso que fez com que, depois, a realidade batesse.

Letícia: Em relação à minha experiência enquanto cinéfila, no meio dos outros rapazes, eu me dei conta de que é muito complicado. Quando você conta tudo isso, a gente se reconhece muito.

Sabia que você parece um pouquinho com Axelle Ropert...

Ah, sim!? Nós temos uma história engraçada sobre isso (risos). Quando chegamos na França, nós fomos ver uma mesa redonda com Sylvie Pierre e Patrice Rollet, o comitê da Trafic... Em determinado momento, Patrice Rollet nos olhou e disse : "bom, nós temos agora Serge Bozon e Axelle Ropert na sala!”

Não, não é verdade? É uma piada?

Não! Mas Sylvie Pierre disse: “mas, não!” Então todo mundo riu...

Serge Bozon? Não, eu não acho. Mas você, tem realmente alguma coisa. E eu filmei Axelle, então é engraçado (risos).

Em A cruzada de Anne Buridan, não há necessariamente esse lado cinéfilo, ele está presente, de todo modo, mas não declarado. No entanto, trata-se de certa cruzada entre o íntimo e o político, eis o tema de Anne Buridan por excelência. E é também o tema de Moretti, penso, por exemplo, em Aprile, quando ele quer fazer um filme sobre os imigrantes e filma o nascimento de seu primeiro filho. Você sempre notou essa relação com Moretti, como uma herança? Poderia falar um pouco mais dele? De seu cinema?

Descobri o Nanni Moretti de uma vez em uma minirretrospectiva, acho que da Cahiers du cinéma. Foi antes de ele ser muito conhecido... Havia Io sono un autarchico, Sogni d’oro e Ecce Bombo, e na mesma época saiu A missa acabou. Era genial. E, para mim, Sogni d’oro é uma sumidade. Depois, e não foi responsabilidade minha, fui comparada a ele quando A cruzada de Anne Buridan saiu... Creio que foi Vincent Ostria e alguns outros que fizeram a comparação. “Uma pequena prima de Nanni Moretti”, foi dito. E eu o assumo mas, quando faço um filme, não tenho consciência de todas essas influências, não tenho a impressão de imitar todos os meus pares. Vou parecer metida, mas paciência... Yvonne Baby, justamente em relação ao Prêmio Georges Sadoul, tinha dito: “Judith Cahen, com A cruzada de Anne Buridan, retoma o cinema onde Godard o havia deixado”. Eu fiquei... (risos).

Mas é verdade que, nessa época, eu era muito godardiana, tinha visto realmente tudo o que podia de Godard. Não sei se vocês viram, mas a Cahiers du cinéma tinha dedicado seis páginas à Cruzada de Anne Buridan e, graças a isso, fui convidada a Hong Kong para um festival de jovem cinema europeu. Lá, descobri um monte de VHS dos filmes do Godard, filmes que não foram editados na França. Então, trouxe de Hong Kong esses VHS de filmes traduzidos em chinês, é extraordinário!

Nanni Moretti na Itália, mas, na França, é também o momento das autoficções, penso em Sophie Calle, Dominique Cabrera, Vincent Dieutre…

Escrevi sobre o filme da Sophie Calle: “No Sex Last Night, por Judith Cahen”. Fui encontrar a Sophie Calle, apresentamos o filme dela e eu mediei a conversa com o público.

A Cruzada de Anne Buridan se insere totalmente nesse movimento... Mas afinal, que movimento é esse? Você tinha a impressão, naquela época, de que era um momento interessante para as autoficções e para os cineastas-atores...

Em primeiro lugar, o filme de Sophie Calle é algo muito à parte, é um filme de artista, não é de modo algum o que saía nessa época. Se me permitem, há um jovem cinéfilo, com o qual talvez já tenham cruzado, que se chama Marc-Antoine Vaugeois, com quem comecei um trabalho e que me pediu para ver A cruzada de Anne Buridan. Então, passei para ele um DVD do filme e ele escreveu um texto muito bonito... Ele me disse que achava o filme muito atípico em relação aos anos 90, nem um pouco sintomático. De fato, a leitura dele é muito diferente da sua, ele viu muitas coisas dos anos 90 e achou que o filme se destacava.

O que gosto em A cruzada e, também, na Lettre du cinéma é que de fato escutamos sua voz ou a voz de uma mulher. É claro, há essa herança de Nanni Moretti mas, de todo modo, é uma mulher quem fala. Você diz frequentemente que gosta da ideia de Bernard Eisenschitz de fazer um filme enquanto empreitada de clarificação. Por exemplo, a primeira cena de A cruzada de Anne Buridan apresenta uma mulher que vai ao ginecologista e, por ser um homem, não quer fazer o exame. Isso é muito atual. E, com todas as mulheres que escreviam na Lettre: você, Hélène Frappat, Sandrine Rinaldi etc., eu me pergunto se, nos anos 90, era usual ou se era excepcional ter uma revista com tantas mulheres escrevendo.

Você enfatiza esse fato e é verdade, é legal. Não tenho certeza de que tínhamos consciência, era assim e era muito bom. E nós falávamos de feminismo. Quando fui para aquele grupo, Le couteau entre les dents, quis fazer um pequeno artigo em um dos Cahiers de résistance sobre a situação atual do feminismo. Então, fiz uma pesquisa sobre um grupo feminista que se chamava Les Marie Pas Claire[1]. Isso me interessava, mas o clima era claramente diferente.

Como era esse clima? Me pergunto, por exemplo, se havia ainda certa resistência em relação às diretoras ou às mulheres na crítica de cinema.

Para mim, é mesmo muito difícil falar disso... Acontece que eu fui palestrante na Femis durante os últimos anos e fui cooptada pela diretora da escola para participar de um grupo de reflexão que iria redigir uma carta sobre a paridade entre homens e mulheres, após o caso MeToo. Nas grandes escolas de cultura, deveria haver textos produzidos por comitês de reflexão, cartas... E senti um grande mal-estar em relação à nova geração de estudantes. Então, disse a mim mesma que era algo que eu deveria interrogar... E ainda não terminei de fazê-lo, mas identifiquei uma distância enorme. Porque, de certa maneira, a geração anterior à minha eram as feministas que lutaram. Lembro que, com a Hélène, estávamos mais criticando o feminismo delas, dizíamos a nós mesmas que ele era dogmático demais, que, enfim, elas não viam a sutileza da relação complexa entre os homens e as mulheres. E, ao mesmo tempo, saudávamos o feminismo: nunca fomos renegadas antifeministas. Da mesma maneira que tentávamos ver as falhas da esquerda, estávamos realmente na crítica à geração anterior e isso com as personalidades fortes que havíamos herdado.




Na Femis, nesse grupo pós-MeToo, tinha uma moça que queria que escrevêssemos na carta coisas punitivas em relação aos palestrantes homens, estes que fizeram comentários machistas. Por mais que eu ache que, efetivamente, precisamos ser muito firmes em relação aos gestos excessivos (as “mãos nas bundas”, como se diz), pois isso é escandaloso, eu me dizia: um cara um pouco machista, que tem deslizes de linguagem, é preciso trazê-lo para dentro, lhe dizer “ei, não fale assim!”. A moça disse: “mas por que sempre somos nós que devemos lutar? Por que somos nós que temos que nos esforçar?”. E, então, disse a mim mesma: “bom, estou perdida, não sou da mesma geração”. Tenho um pequeno lado anarquista que faz com que nós mesmos lutemos e com que não chamemos a polícia imediatamente. É um pouco caricatural, mas eu sempre me digo: “eu tenho que repensar tudo” (risos).

Então, sinto um certo mal-estar e avalio que é diferente. No fim das contas, penso que a verdade é que, na Femis, nos anos em que estive lá, havia muitas garotas, mas hoje não sei o que houve com elas... Existe até um artigo da Anne Villacèque sobre isso. De fato, sou membro da Cinemateca Francesa, como muitos, porque me propuseram depositar meus filmes lá e, portanto, voto na assembleia geral. O conselho de administração é extremamente masculino. E nem sempre vou votar, mas este ano olhei as propostas e vi que a Anne Villacèque, que era uma garota que estava na Femis, se apresenta. Ela fala de feminismo e escreve em um blog, após o caso MeToo, um texto sobre as jovens diretoras dos anos 90, as promessas não realizadas. Porque, na França, amamos os “produtos frescos”, é muito empolgante, “as jovens diretoras” mas, depois, quantas vão continuar estáveis? É muitíssimo difícil. Então, procurei imediatamente os dados da Anne Villacèque no anuário da Femis e escrevi para ela: “voto em você, você é extremamente corajosa”. Ela não foi eleita, foram os mesmos que voltaram para lá, ou seja, os mais conhecidos: Arnaud Desplechin, Olivier Assayas. E a única mulher que entrou neste ano foi a Claire Denis, porque ela foi convidada a se apresentar ao conselho de administração. De todo modo, isso diz o estado atual das coisas na realidade. Há portas que se abriram nos anos 90, mas, de fato, elas se fecharam parcialmente, nós topamos com os mesmos problemas. A realidade leva muito tempo para ser mudada.

Sinto também que A cruzada de Anne Buridan é um filme importante para os nossos dias.

Disponho de uma cópia em 35mm que, antes do confinamento, tive a oportunidade de projetar para estudantes, cineclubes, pequenos festivais e, a cada vez, os jovens espectadores reagem diferentemente e o filme lhes diz algo. É por isso que eu adoraria me dedicar a uma boa edição do filme, de sua visibilidade, mas infelizmente ainda não detenho os seus direitos.

Não sei se é o momento, mas vou dizer: acho que vocês estão se esquecendo de uma pessoa, que é a Éva Truffaut. Pois, mesmo sem ter escrito na Lettre, ela foi uma pessoa muito importante, como Yvonne Baby. Tínhamos um comitê de redação na casa da Éva Truffaut e, se estamos nos escritórios da Editora P.O.L., pode-se dizer que é graças a ela. Ela estava no Festival de Dunquerque quando estive lá com A cruzada de Anne Buridan. Ela adorou meu filme e quis me ajudar. Chegou até a investir dinheiro na Films de la Croisade.

Éva foi muito importante no início e no momento em que dissemos: “essa pequena carta não basta, precisamos fazer uma revista de verdade”. Foi ela quem aconselhou o editor Paul Otchakovsky-Laurens. E, para que pudéssemos conhecê-lo, ele foi convidado para uma projeção na Femis de A Cruzada de Anne Buridan. Lembro que também convidei a cineasta Jeanne Labrune e eles se conheciam, então estavam felizes depois do filme. Ele me escreveu uma carta muito bonita e nasceu uma amizade entre nós. Após esse primeiro contato, fomos encontrá-lo, Emmanuel Giraud, Julien Husson e eu, aqui mesmo nestes escritórios da Editora P.O.L., e ele foi favorável à edição da Lettre du cinéma, após o número que vocês chamam de “experimental”.

E me lembro de uma coisa muito importante, porque penso que há dois níveis de conflitos: há um nível intelectual, cinéfilo, que é sem dúvidas o que mais interessa a vocês, mas ele é também indubitavelmente articulado num nível afetivo. Na casa de Éva Truffaut, ele disse algo de que me lembro — ainda que tenha perdido a memória de muitas coisas, disso eu me lembro muito bem... Eu havia convidado os membros do Molokino, um grupo de cinema experimental, na época eles faziam filmes em Super 8 e projetavam os filmes em seus corpos, vestidos de branco, era magnífico. E David TV, um dos membros do grupo, um rapaz muito esteta, que tinha ideias mais “arte contemporânea”, ele estava em uma reunião do comitê de redação e, a certa altura, Axelle Ropert se enfureceu e lhe disse: “escute, David, La Lettre du cinéma não é a Artpress”, essa é uma réplica que vocês podem imaginar... (risos). E David não entrou na Lettre du cinéma, ele mesmo se afastou, porque entendeu que estava diante de cinéfilos puros e duros e que não era a mesma coisa... (risos) Mas, por outro lado, eu não discuti com a Axelle, porque havia entendido e amava muito essa cinefilia, mas tinha necessidade de outra coisa e foi por isso que fui para a dança contemporânea e o pointligneplan. A definição do pointligneplan era o cruzamento do cinema e da arte contemporânea, e esse é também o meu espaço. Mas eu havia entendido que não podíamos fazer tudo e que era melhor que a Lettre fosse radical no seu lugar.

Sim, mas, de todo modo, há muita arte contemporânea.

Sim, no início!

E o que você pensa da cinefilia queer não declarada da revista?

É muito interessante... Me arrependo de não ter trazido para vocês meu filme ADN. Havia convidado o pessoal da Lettre du cinéma para vê-lo em 2005, em uma projeção pointligneplan, e logo fui contatada por uma diretora da Femis que me disse que seu filho e a esposa dele, Aliosha Imhoff e Kantuta Quirós, estavam na sala naquela noite. Eles haviam criado um pequeno festival queer e achavam que meu filme era perfeito para eles. Eu não sabia que meu filme era queer, foram eles que me contaram: “ADN é um filme queer, é um filme que torce as fronteiras do gênero homem/mulher”.

Mas, no cânone da revista, a preferência é muito clara, se pensarmos na Diagonale, por exemplo. Mesmo do lado estritamente cinéfilo esse aspecto está sempre presente sem ser declarado.

Sim, mas penso que cabe a vocês dizer isso. E é verdade, concordo com essa perspectiva, mas não chegamos a formalizá-la assim. É uma pena, diga-se de passagem.




E é verdade que muitos redatores são também atores e, fazendo seus filmes, eles mesmos encenavam uns aos outros. É verdade que Serge Bozon... E por que Serge e Axelle estavam lá? Porque nós os “seduzimos” na Cinemateca. A Cinemateca ficava em Chaillot e eu e o Julien estávamos o tempo todo enfiados na Cinemateca, e haviamos realmente notado Serge e Axelle. Não dava para não perceber o Serge, seu visual já era alucinante e, além disso, era uma pilha elétrica de inteligência, um ator louco! E eu o embarquei na Cruzada de Anne Buridan como ator. Portanto, para mim, era realmente o ator Serge Bozon, assim como a Axelle, que me fascinavam. Eles eram estilosos, um casal magnífico. E, de quebra, eles estavam cercados por um grupo de mods (risos), eram todos “pop british” antes do tempo. Enfim, era extraordinário. Portanto, eram “flertes” de cinéfilos: nós nos víamos, nos medíamos com o olhar, tirávamos sarro um do outro, estávamos lá o tempo todo.

Por que você saiu da Lettre du cinéma?

Saí da Lettre du cinéma simplesmente porque é um trabalho enorme e totalmente voluntário, essas coisas, vocês devem imaginar. E eu queria me dedicar aos meus filmes.

Não havia conflitos?

Havia conflitos, sim, mas isso é uma outra história. Essencialmente, eu me dei conta de que era uma coisa que tomava muito tempo. Além disso, sou uma pessoa muito integral, então, quando dou minha energia, dou 200% e queria me dedicar mais aos meus filmes. Penso que o coração do conflito de que posso lhes falar sem comprometer ninguém e sendo honesta e sincera com minha posição... não é que eu fosse autoritária, mas eu era “metteur en scène” demais nas reuniões do conselho de redação. Ou seja, eu tendia a confundir essas reuniões com um set de filmagem, ainda mais porque eram meus atores que estavam lá também (risos). Então, eu era um pouco dirigista, ocupava muito espaço. Lembro-me de uma vez em que a Sandrine Rinaldi — e eu a agradeço por isso — me disse: “escute, Judith, acalme-se, há outras pessoas falando”. Eu tinha que entender que não podia ser metteur en scène... Então, entendi também que eu precisava ficar na minha. É preciso dizer também que eu fui muito exposta no início, porque havia feito a Femis e A cruzada de Anne Buridan em 95. Portanto, era eu quem estava mais sob os holofotes, mas também a mais atacada, como vocês devem ter visto na internet, os ataques foram avassaladores quando meu segundo filme estreou no cinema. Nós fomos muito mal vistos e esse filme, La révolution sexuelle n’a pas eu lieu, serviu de bode expiatório, as críticas foram de uma maldade... Eles atacavam a Lettre du cinéma através do filme e de mim: “Judith Cahen e seus amigos”.

Sim, eu vi, Positif e Libération caíram matando em cima do filme.

Mas eles não me puseram para fora, fui eu mesma que me disse: “sinto que estou confundindo os espaços, sou dirigista demais e vou me concentrar nos meus filmes”. O que foi um pouco complicado foi que depois tive o sentimento de que me esqueceram muito rápido, mas bem... Isso faz parte também da ideia de que cada um busca seu lugar ao sol e penso que houve uma defasagem entre as ambições, muito fortes, que todos nós tínhamos e o pouco de espaço que havia para acolhê-las. Infelizmente, essa defasagem é terrível.

Há nos textos esse medo da falta de espaço no cinema para os diretores...

Sim, escrevi sobre isso.

Você falou muito sobre uma frase de Rivette, que é: “no fundo, o filme só mostra a história de sua filmagem”.

Sim, eu e Hélène Frappat nos deleitávamos com essa frase.

E a história contada por A cruzada é, sobretudo, uma história de amizade. Sente-se que há um espírito de amizade muito forte nesse percurso. É a mesma coisa no início da Lettre, há uma relação intelectual, mas sente-se também uma relação afetiva.

Sim, enorme.

É muito claro, mas penso que isso mudou ao longo do tempo, as amizades foram...

Inevitavelmente... Mas, sabem, tenho realmente vontade de rever a Sandrine, a Axelle etc., mas, no caso dos amores, é mais complicado.

A Lettre du cinéma era bem recebida na época? Havia críticos, inimigos?

No começo, não éramos tão mal recebidos, mas fizemos uma mesa-redonda em que falamos mal de Arnaud Desplechin, que é um pouco o queridinho, e isso foi muito mal visto. E houve um efeito bumerangue: “quem eles acham que são para criar a revista deles? Para se acharem mais inteligentes que a Cahiers du cinéma?!”. Porque, de fato, nos sentíamos devedores da história da Cahiers du cinéma, mas o que a Cahiers du cinéma tinha se tornado, comprada pela Gan etc., para nós, ela vivia em cima de seus louros, sua reputação, mas tinha se tornado... nada demais. E nós pretendíamos criar movimentos, e não seguir os movimentos, pretendíamos influenciar os distribuidores, e não seguir a exploração comercial. Ao contrário, a Cahiers du cinéma apenas seguia a exploração comercial, um filme sai, escreve-se sobre ele, não são eles que estão nos lançamentos dos filmes. Mas não conseguimos, a verdade é que não conseguimos, não é só com o cérebro que se consegue as coisas, acho que éramos ingênuos em relação às reais questões de poder (risos).

Acho que isso também constitui a originalidade da revista, há muita liberdade, muita amizade, não se vê isso na Cahiers du cinéma. E há uma coisa de que gosto muito em vocês, na revista, que é essa política dos atores, fala-se dos atores de uma maneira rara.

Sim. Sobre isso, vocês viram que a Hélène Frappat está bastante na France Culture e faz programas incríveis em que fala dos atores e das atrizes. Penso que a Axelle continuou através dos filmes, e Hélène, através da France Culture. Acho que ela é frequentemente muito brilhante, permanece muito fiel a si mesma, com seu entusiasmo, sua energia.

A Sandrine também, havia algo de relativamente novo com as atrizes...

Sim. A Sandrine conhecia muito bem a Éva Truffaut também, ela escreveu sobre A cruzada, foi no Festival de Dunquerque. Estou retraçando para vocês a ligação com a Éva Truffaut, que não aparece, porque ela não queria escrever na Lettre, mas foi muito importante para o “agit-prop”.

[1]NdT: Trocadilho com a revista Marie Claire, literalmente algo como “As Marias não claras”.

Entrevista realizada por Letícia Weber Jarek e Miguel Haoni em 20 de janeiro de 2021.
Transcrição: Dalva Deshogues e Rafael Zambonelli
Tradução: Miguel Haoni e Rafael Zambonelli