O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

"All The Beauty and The Bloodshed" (Laura Poitras, 2022)

Por Waleska Antunes

Em 1981, Anne Charlotte Robertson decide filmar a sua própria vida. A câmera se volta a ela e é possível ver uma miríade de eventos diversos do cotidiano: uma visita a um familiar, um gato, um dia de inverno, o que há na geladeira. Apesar de costumeiro e bastante simplório, os vídeos são entrecortados com o voice-over de Robertson: os comentários vão desde piadas inofensivas até relatos de sua incessante luta contra a depressão, os problemas de auto-imagem, os internamentos no hospital psiquiátrico, o isolamento auto imposto, os surtos psicóticos, os remédios e a dor das diversas perdas. A esse esforço, foi chamado de Five-Year Diary, um filme de 36 horas que levou 16 anos para ser feito.

A história das artes, assim como a história do mundo, é sincrônica: Ao mesmo tempo, quase geograficamente no mesmo lugar, Nan Goldin se tornava uma das principais artistas do underground americano com o mesmo impulso: documentar a si mesma para entender os seus arredores. Nan trabalha em um outro meio, a fotografia, porém as questões, quando não as mesmas, eram semelhantes às de Robertson: como tentar entender o mundo sob a ótica do efêmero e do brutal?

Usando isso como ponto de partida, é possível dizer que o impulso documental de Nan Goldin (e, consequentemente, de Robertson) em se botar à frente como forma de questionamento do mundo era produto do seu tempo nos anos 70 e 80; Artistas como Yvonne Rainer, Chantal Akerman, Carolee Schneemann e Sophie Calle o fizeram, de maneiras diferentes e em diferentes expressões artísticas – o que é esperado. O pós-guerra, a desilusão e o impulso da segunda onda feminista dão a essas obras uma espécie de reverberação e uma constante busca de um individualismo perdido ou que foi continuamente massificado nos anos 50 e 60.

O que não é esperado é que, dentro dessa polifonia de expressões, todas foram reunidas em um grande grupo: a performance. O performático, por si só, não é demérito algum; no entanto, como é possível considerar performático o que é visceral – e logo, único? Como acreditar que, ao documentar a própria vida, não há tanta verdade quanto na ficção?

Essa é uma maneira inicial para pensar All The Beauty and the Bloodshed, de Laura Poitras. A vida de Nan Goldin é um prisma de muitas faces e no meio delas, o ativismo e a vida se interligam. Como ela diz no início, uma história pode ser contada de diversas formas, mas a memória real é algo que, irremediavelmente, é da ordem do vivido.




Um dos grandes impulsos, tanto de Laura Poitras quanto de Nan Goldin, é o esforço documental; seja vindo de Poitras, que constrói uma mise-en-scène de maneira mais analítica e pautada numa espécie de retomada de um cinema vérité como cerne do seu fazer (principalmente, no que tange às jornadas políticas de suas matérias filmadas como Edward Snowden em Citizenfour, sendo o whistleblower americano em fuga, quanto Julian Assange em Risk, expatriado em uma embaixada), quanto vindo de Nan Goldin, utilizando da própria vida como matéria primordial de sua obra, ambas as intenções podem parecer díspares ao longe, mas algo as une: a necessidade de entendimento de um processo, seja esse processo fílmico, memorialístico ou político perante o mundo.

Ao mesmo tempo, o processo memorialístico estabelece um limite: Nan conta a vida de sua própria irmã, uma rebelde, que enlouquece e se suicida. Sua maior fonte de inspiração ao se rebelar contra o mundo era uma figura misteriosa, mesmo assim, quando tudo se torna doloroso demais para ser dito – e, nessa altura, coisas terríveis foram ditas em voz alta – ela diz chega. O maior ato de alteridade de um bom documentarista é saber a hora de parar. E Poitras interrompe, sem vermos o rosto de Nan, como se estivéssemos resguardando um luto de alguém que acabamos de conhecer intimamente.

O delinear das duas narrativas, entre Nan ativista e Nan memorialista se entrelaçam de uma maneira bastante natural – tal como todas as memórias, o seu valor é a interligação poderosa entre os fatos – e a maior fortuna (e um trunfo de Poitras, se comparados aos documentários supracitados que trabalham unicamente com filmagens contemporâneas) é o acesso aos documentos, fotos e imagens de arquivo que complementam e preenchem as lacunas deixadas – tanto pelos que partiram quanto pelos que ficaram. Nan ficou, mas ela mostra o custo: sua luta contra a indústria farmacêutica de opioides e o próprio sistema de saúde americano (luta essa que vem de anos e, no excerto sobre a epidemia de AIDS nos anos 90 – um trecho muito tocante e assustador sobre as vozes revoltadas de pessoas como David Wojnarowicz que se tornaram espectros reféns de todo tipo de preconceitos) mostra exatamente como o inferno é cheio de boas intenções: uma família inteira dizimou uma nação com opioides e depois depositou o dinheiro em grandes galerias de arte, como se toda a arte do mundo fosse capaz de esconder tanta coisa horrível.

E se na performance (e nesse caso, como um grande demérito) dos Sackler reside toda a hipocrisia do mundo refletida em uma instituição e uma fachada falsa, Nan nos mostra que a arte mora em ser quem se é, de maneira frontal, muitas vezes nua, muitas vezes doente, muitas vezes insana.

E nessa instituição, a beleza e a grandeza residem juntas, mesmo que dolorosas.