O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

A Casa de Bonecas do Mestre



Janela Indiscreta



por Tania Modleski

Em "Visual Pleasure and Narrative Cinema", Laura Mulvey utiliza dois filmes de Hitchcock como exemplos para sua teoria. De acordo com Mulvey, Janela Indiscreta e Um Corpo que Cai são filmes "feitos sob a medida do desejo masculino" - isto é, sob a medida dos medos e fantasias do espectador masculino que, devido à ameaça de castração colocada pela imagem da mulher, precisa vê-la fetichizada e controlada, no curso da narrativa [1]. Decerto, estes dois filmes parecem apoiar perfeitamente a tese de Mulvey de que o filme narrativo clássico nega o olhar da mulher, visto que ambos parecem limitar-nos à visão do herói e insistir nesta visão amiúde enfatizando, literalmente, o ponto de vista do homem. O espectador, aparentemente, não tem escolha senão identificar-se com o protagonista masculino, que enxerta um olhar ativo e controlador sobre um objeto feminino passivo. Em Janela Indiscreta, escreve Mulvey, "O exibicionismo de Lisa se estabelece através de seu interesse obsessivo por moda e estilo, em ser uma imagem passiva da perfeição visual; a atividade e o voyeurismo de Jeffrie se estabelecem através de seu trabalho como fotojornalista, contador de histórias e caçador de imagens. No entanto, sua inatividade forçada, amarrando-o na cadeira como um espectador, coloca-o diretamente na posição de fantasia da audiência do cinema". [2]

Esta última observação conecta Mulvey a uma tradição crítica que começa com o trabalho do francês Jean Douchet e que vê o filme como um comentário meta-cinemático: espectadores, ao se identificarem com o protagonista voyeur preso à cadeira, vêem-se cúmplices de seus desejos culpados [3]. Por causa da incansável insistência de Hitchcock no olhar masculino, até mesmo críticos como Robin Wood, ansioso em salvar o filme para o feminismo, restringem-se a discutir o juízo do filme a respeito da posição do herói e, por extensão, do espectador masculino cuja "fantasia o herói ocupa". [4] Mas o que acontece, nas palavras de um relevante artigo recente de Linda Williams, "quando a mulher olha"? [5] Argumentarei, contra a corrente do consenso oficial, que o filme tem, na verdade, algo a dizer sobre a questão. [6]

[...] [A tradução omitiu aqui os três parágrafos nos quais a autora descreve, de forma concisa e detalhada, a trama do filme.]

Alguns críticos, a maioria dos quais centra sua análise em torno da crítica do filme a respeito do voyeurismo, apontaram que o protagonista está preso num nível infantil de desenvolvimento sexual e deve, no decorrer da narrativa, alcançar a "maturidade sexual": "O voyeurismo de Jeffries está de mãos dadas com um intenso medo da maturidade sexual. Com efeito, o filme começa insinuando um caso sério de patologia psicossexual. A primeira imagem de Jeffries, adormecido com uma das mãos sobre a coxa, é discretamente masturbatória, como se ele fosse um inválido que acabara de se abusar no escuro." [7] Ao fim do filme, Jeff supostamente aprendeu a lição e "compreendeu as consequências físicas do voyeurismo e da solidão": agora está pronto para o casamento, ao qual resistiu o tempo todo, e para a relação sexual "madura" que este implica. Ainda assim, em certo sentido a imagem de Lisa, vestida com roupas masculinas, absorvida em interesses "masculinos", apenas situa Jeff - e a audiência - ainda mais abertamente no Imaginário. Pois, à medida em que a narrativa prossegue, a sexualidade da mulher, apresentada o tempo todo como ameaçadora, é primeiro combatida pela fantasia do desmembramento feminino e, depois, finalmente, por uma lembrança da mulher de acordo com a fantasia de menino que consiste na fêmea semelhante a si mesmo. [8] 

Jeff declara que Lisa é "perfeita demais." Frente a isso, tal razão para resistir ao casamento é evidentemente absurda, como Stella não deixa de apontar. (Este absurdo leva um crítico a argumentar que o projeto do filme é estimular o desejo da audiência pela união do casal, induzindo à frustração através da "indiferença de Jeff por seu charme." [9]) Mas, mesmo que tal coisa seja de fato "inverossímil", a de que nenhum homem com sangue nas veias rejeitaria Grace Kelly, há certa plausibilidade psicológica no medo de Jeff da "perfeição" de Lisa - medo relacionado ao medo do homem pela dessemelhança da mulher, sua suspeita de que elas talvez não sejam, no fim das contas, homens mutilados (imperfeitos), talvez não sejam o que, como Susan Lurie coloca, o que homens seriam se não tivessem pênis - "privados de sexualidade, indefesos, incapazes." [10] As palavras de Lurie certamente descrevem a situação de Jeff, cuja impotência é sugerida pelo enorme gesso em sua perna e sua consequente inabilidade em se locomover, de modo que no fim é incapaz de resgatar a mulher que ama do perigo. Pelo contrário, Lisa Freemont é tudo, menos incapaz e indefesa, malgrado sua caracterização por Mulvey como uma "imagem passiva de perfeição visual" - e aqui está o coração do "problema".


Em nossa primeira visão dela, Lisa é experienciada como uma presença poderosa e arrasadora. Jeff está adormecido na cadeira, a câmera está sobre ele quando, de repente, uma sombra ominosa atravessa sua face. Há um corte para um close-up de Grace Kelly, uma visão de encanto, inclinando-se sobre ele e sobre nós: a futura princesa despertando Bela Adormecida com um beijo. Estes dois planos - sombra e imagem vibrante - sugerem a ameaça subjacente proposta pela mulher atraente e relembram as imagens, negativa e positiva, da mesma na capa da Life. Quando Jeff jocosamente inquire, "Quem é você?" Lisa acende três lâmpadas, responde, "Da cabeça aos pés, Lisa... Carol... Freemont," e faz uma pose. Enquanto a pose confirma a visão dela como exibicionista, sua confiante denominação de si mesma revela-a como extremamente senhora de si. Em contraste com o homem conhecido por apenas um de seus três nomes. Os dois se aplicam numa conversa-fiada enquanto Lisa começa o preparo do jantar trazido do Twenty One Club, e Jeff zomba continuamente da vida conjugal. Lisa encerra a conversação dizendo, "Pelo menos você não pode dizer que o jantar não está bom" e, sobre a tomada de uma apetitosa refeição, Jeff responde, exasperado, "Lisa, está perfeito, como sempre." Enquanto isso, testemunhávamos Thorwald levando o jantar a sua esposa, que o afasta com desgosto e atira para longe a rosa que ele colocara sobre a bandeja.

Paralelos importantes são estabelecidos, portanto, entre Lisa e Thorwald de um lado, entre Jeff e a esposa de outro. Os críticos raramente tocam neste paralelismo, preferindo, em vez disso, realçar a simetria através de correspondências sexuais - isto é, a semelhança de Jeff a Thorwald e a de Lisa à esposa loira. Curiosamente, o próprio Hitchcock foi bastante explícito em relação a esta reversão de gênero: "A simetria é a mesma de A Sombra de uma Dúvida. De um lado do quintal você tem o casal Stewart-Kelly, com ele imobilizado pela perna engessada, enquanto ela pode se mover livremente. Do outro lado há uma mulher doente confinada na cama, enquanto seu marido vai e vem." [11] Raymond Bellour mostrou como, no cinema clássico, uma oposição binária entre movimento e estase geralmente trabalha para estabelecer a superioridade masculina no cinema clássico narrativo. [12] Em Janela Indiscreta, entretanto, a mulher é mostrada continuamente como fisicamente superior ao homem, não somente através de seus movimentos físicos, mas também através de sua dominância dentro do quadro: ela sobrepuja Jeff em altura, em quase todos os planos nos quais ambos aparecem.






Dada esta ênfase à mobilidade, liberdade e poder da mulher, é estranho que uma crítica astuta como Mulvey veja na imagem de Lisa Freemont apenas um objeto passivo do olhar masculino. Mulvey baseia seu julgamento no fato de Lisa parecer estar "obcecada com moda e estilo", continuamente colocando-se à mostra para Jeff de modo que ele lhe note e afaste seu olhar dos vizinhos. [13] (nesse sentido, o "projeto" do filme assemelha-se aquele de Rebecca, que também lida com os esforços de uma mulher para que o homem que ama lhe dedique o olhar). É importante, entretanto, não dispensar de antemão o envolvimento pessoal e profissional de Lisa com a moda, mas considerar todos os modos com os quais esse envolvimento funciona na narrativa. Esta não é uma questão simples. Pois, se por um lado a preocupação da mulher com a moda serve claramente a interesses patriarcais, por outro lado este mesmo interesse é frequentemente denegrido e ridicularizado por homens (como por Jeff durante o filme) - colocando assim a mulher num dilema familiar, pelo qual ela é antes designada a um lugar restrito dentro do patriarcado e depois condenada por ocupá-lo. Pois que a crítica feminista ignore a inteira complexidade da situação contraditória da mulher, é arriscar aquiescer ao desprezo masculino pelas atividades femininas. Em Um Teto Todo Seu, Virgínia Woolf sugeriu que uma estratégia feminista necessária, senão suficiente, deve ser a de reclamar e reavaliar a verdadeira experiência da mulher sob o patriarcado. O exemplo que Woolf dá do duplo critério literário operando contra essa experiência é revelador e relevante para nossa discussão: "Falando cruamente, futebol e esportes são importantes, a veneração da moda e compras de vestuário trivial, e tais valores são inevitavelmente transferidos da vida para a ficção." [14] Decerto estes dois conjuntos de valores estão contrapostos na ficção de Janela Indiscreta (afinal, Jeff quebrou a perna num evento esportivo, quando adiantou-se diante de um carro de corrida em movimento de modo a obter uma fotografia espetacular) e são a fonte das brigas do casal. Jeff discorre sobre as dificuldades de seu masculino estilo de vida e diminui o trabalho de Lisa quando ela entusiasticamente lhe descreve o seu dia. No filme, portanto, a "moda" está longe de representar a assimilação não-problemática da mulher ao sistema patriarcal, mas funciona, em certa medida, como significante do desejo feminino e da diferença sexual feminina.

Ao longo do filme, os vestidos sofisticados de Lisa lhe dão a aparência de uma presença alheia ao ambiente de Jeff, mais estranha e maravilhosa que as várias maravilhas exóticas que ele encontrava em suas viagens - uma singularidade fascinante e ameaçadora ao mesmo tempo. A ameaça se torna especialmente evidente na sequência em que Lisa age ostensivamente de acordo com seu desejo por Jeff e acaba por passar a noite com ele. Significativamente, é a noite em que ela se convence da culpa de Thorwald. Jeff acabara de observar Thorwald falando ao telefone e examinando algumas jóias, que incluem uma aliança, na bolsa de sua esposa. Nos filmes de Hitchcock, bolsas femininas (e suas jóias) tomam uma significância corriqueiramente Freudiana em relação à sexualidade feminina e às tentativas dos homens em investigá-la. É possível pensar, por exemplo, na bolsa do close-up que abre Marnie, que contém as carteiras de "identidade" de Marnie e o butim de seu assalto ao patriarcado. Em Janela Indiscreta, Lisa conclui que a Sra. Thorwald com certeza foi assassinada em vez de, como Tom Doyle acredita, despachada numa viagem, pois mulher alguma deixaria para trás sua bolsa favorita (para não falar de sua aliança). Enquanto reflete, Lisa apanha sua própria bolsa de estilista, que descobrimos ser uma espécie de bolsa "trucada"; é na realidade uma pequena maleta, e numa de suas muitas linhas de diálogo que soam como innuendos sexuais (este involuntariamente ecoando a noção Freudiana de sexualidade masculina e feminina, mas revertendo seus valores, sendo que toma o último como padrão), ela diz, "Aposto que a sua não é tão pequena." Quando abre a bolsa, um caro e elaborado négligée escorrega para fora, junto com um par de encantadoras pantufas. A bolsa conecta Lisa com a mulher vitimizada, assim como o négligée, já que a inválida Sra. Thorwald sempre era vista usando camisola; mas também, significativamente, conecta-a ao criminoso, Lars Thorwald, e assim é uma imagem sobredeterminada, como as imagens do trabalho freudiano dos sonhos. Assim, quando Tom Doyle volta ao apartamento de Jeff à noite, ele continua a lançar olhares significativos para a camisola, como se esta fosse um objeto incriminador; quando Jeff questiona por que Thorwald não contou ao senhorio para onde ia, Doyle olha para a maleta e pergunta sugestivamente, "Você conta tudo ao seu senhorio?". Depois de Doyle ir embora, Lisa recolhe a maleta, oferecendo a Jeff uma "prévia das próximas atrações", e enquanto vai ao banheiro se trocar, pergunta, "Acha que o Sr. Doyle pensou que roubei esta bolsa?".


A sexualidade agressiva de Lisa, assim jocosamente rotulada de "criminosa", provocaria em Jeff e no espectador masculino uma agressão retaliativa que encontra escape nos atos de assassinato e desmembramento de Thorwald. A interpretação de Janela Indiscreta que críticos como Robin Wood consideram primária - que o assassinato da esposa por Lars Thorwald representa o desejo de Jeff de livrar-se de Lisa - é persuasiva até certo ponto, mas esse desejo deve ser analisado também como reação ao medo masculino de impotência e falta. A incapacidade de Jeff - impotência, passividade, invalidez - impele-o a construir uma história que, nas palavras de Kaja Silverman (descrevendo a trajetória psíquica masculina), é uma tentativa de "ressituar... a perda ao nível da anatomia feminina, devolvendo deste modo ao homem uma totalidade imaginária." [15] Daí a fantasia do desmembramento feminino que impregna o filme: não somente há várias piadas mórbidas sobre o desmembramento da esposa de Lars Thorwald, mas Jeff também nomeia as mulheres do outro lado da rua de acordo com partes do corpo: Senhorita Coração Solitário (Miss Lonelyhearts) e Srta. Torso - mais uma mulher decapitada. [16]Esta reação é uma consequência psíquica do posicionamento de Jeff no estágio do espelho de desenvolvimento, posicionamento que, como alguns críticos gostam de apontar, torna-o muito parecido ao espectador cinematográfico de Christian Metz, que ocupa uma posição transcendente, onisciente em relação à tela. [17] Em certa medida, contudo, esta analogia entre as janelas do outro lado da rua e a tela de cinema é enganosa, na medida em que é a própria diferença entre o mundo observado por Jeff e o mundo-maior-que-a-vida da maioria dos filmes que explica o forte efeito de transcendência evocado em Janela Indiscreta. Pois o mundo de Jeff é um mundo em miniatura, como uma casa de bonecas - um mundo, como escreve Susan Stewart, "de inversão onde a contaminação e a crueza estão controladas... por uma manipulação absoluta do espaço e do tempo." [18] "Semelhante a outras estruturas de fantasia, a miniatura", de acordo com Stewart, " tende ao tableau mais que à narrativa" e " é contra o discurso, particularmente enquanto o discurso revela uma natureza dialética, ou dialógica, interna. ...Todos os sentidos estão reduzidos ao visual, um sentido que, em sua transcendência, permanece, ironica e tragicamente, remoto" (pp. 66-67). [19] É significativo que em Janela Indiscreta apenas pequenos fragmentos de conversa possam ser ouvidos do outro lado; de modo geral, os eventos progridem mudos, acompanhados de ruídos diegéticos e música preenchendo a trilha sonora (uma canção, inclusive, proclama o primado do visual: "To See You is to Love You", de Bing Crosby, que toca, ironicamente, enquanto Miss Lonelyhearts entretém um amante invisível). Além disso, os espaços-como-quadros das micro-telas do outro lado da rua encontram seu equivalente temporal no recurso ao fade, que pontua o filme, criando assim uma sensação de mundo de fantasia hermeticamente fechado, impenetrável ao mundo dialógico, "contaminado" da experiência viva.



Assim como o cinema, em sua semelhança ao espelho do estágio do espelho, oferece ao espectador uma imagem de totalidade e plenitude, assim também faz o mundo de casa de bonecas do conjunto de apartamentos que Jeff observa. Com efeito, uma das razões para a atração que a miniatura exerce é o fato de que esta sugere completude e "perfeição", como na descrição de Tom Thumb, citada por Stewart: "Sem partes disformes, sem traços contorcidos, mas inteiramente doce e bonito" (p. 46; diferente dos, digamos, feios Brobdingnagos de Gulliver, cujas imperfeições são aumentadas cem vezes). Mas assim como esta passagem deve trazer o espectro da mutilação física de modo a bani-la, o estágio do espelho - no qual a criança primeiro "antecipa... a apreensão e o domínio de sua unidade física" - evoca retroativamente na criança a fantasia do "corpo-em-pedaços" [20]. Esta fantasia, de acordo com Lacan, corresponde ao estágio autoerótico que precede a formação do Ego (precisamente o estágio evocado pela imagem "discretamente masturbatória" do "mutilado" Jeff no início do filme) [21]. De um lado, portanto, temos a antecipação da "perfeição" física e unidade que é, significativamente, prometida primeiro pelo corpo da mulher; do outro lado, a fantasia do desmembramento, uma fantasia que é renegada ao ser projetada no corpo da mulher, que, numa interpretação que reverte a situação que a criança masculina mais teme, torna-se por fim percebida como castrada, mutilada, "imperfeita".

De modo similar, a interpretação de Jeff dos eventos que observa nas janelas defronte - sua montagem dos fragmentos de evidência que observa no apartamento de Thorwald, de modo a formar uma narrativa coerente - é concebida para reverter a situação em seu próprio apartamento, de modo a invalidar a fêmea e assegurar seu próprio controle e dominância. Não lhe é suficiente, contudo, construir uma interpretação que vitimiza a mulher; para que interpretações patriarcais funcionem, elas requerem a aprovação dela: a convicção do homem deve se tornar convicção da mulher - num duplo sentido. Os críticos que enfatizam a restrição do filme ao ponto de vista do personagem masculino negligenciam o fato de que isto enfatiza progressivamente um ponto de vista duplo, os contraplanos encontrando a ambos, Jeff e Lisa, observando atentamente, pela janela, os vizinhos do outro lado. Logo, torna-se possível considerar Lisa como representante da espectadora mulher no cinema. E, através dela, podemos questionar se é verdade que a espectadora simplesmente consente com a visão masculina ou se, pelo contrário, sua relação com o espetáculo e com a narrativa é diferente da dele?

De início, Lisa está menos interessada que Jeff em espiar os vizinhos e em adotar uma relação transcendente e controladora com os textos de suas vidas; antes, ela se relaciona às "personagens" através de empatia e identificação. Logo no início do filme, Jeff aponta jocosamente a semelhança entre o apartamento dela e o de Miss Torso, que é vista no momento a entreter uma porção de homens. Jeff diz, "ela é como uma abelha-rainha rodeada de zangões", ao que Lisa responde, "Eu diria que ela está fazendo o mais difícil dos trabalhos das mulheres - lidar com lobos". Miss Torso acompanha um dos homens à sacada, onde beija-o brevemente e tenta voltar para dentro, enquanto este tenta impedi-la. Jeff diz, "Ela certamente escolheu o mais bem-apessoado", enquanto Lisa nega esta noção dizendo, "Ela não está apaixonada por ele - ou por nenhum deles, para dizer a verdade." Quando Jeff pergunta como pode ter tanta certeza, ela replica, "Você disse que parecia meu apartamento, não foi?" Depois, o mesmo homem se impõe a Miss Torso, que se vê forçada a repeli-lo e, mais tarde - no fim do filme - o verdadeiro amor de Miss Torso, Stanley, vem visitá-la. Assim, malgrado a ênfase dos críticos no ponto de vista limitado do filme, Lisa e Jeff têm interpretações muito diferentes a respeito do desejo da mulher nesta cena repleta de potencial violento e erótico, e é a interpretação de Lisa, obtida através da identificação, que é por fim corroborada.




Enquanto Jeff vê Miss Torso como uma "abelha rainha", Lisa transforma, significativamente, a metáfora: Miss Torso é presa dos "lobos". De fato, a absorção crescente de Lisa na história de Jeff, sua fascinação com o conto assassino e misógino deste, é acompanhada por uma correspondente descoberta da vitimização das mulheres pelos homens. Em certo ponto do filme, Lisa é vista observando ainda mais atentamente que Jeff: isto é, quando Miss Lonelyhearts encontra um rapaz num bar e o traz para casa, apenas para ser agredida por ele. Enquanto Lisa olha e Jeff desvia o olhar, embaraçado, ouve-se a canção "Mona Lisa", cantada por farristas bêbados na festa do músico. O título da canção sugere uma ligação importante entre as duas mulheres ("será somente porque és sozinha, Mona Lisa"), e entre as fantasias masculinas projetadas sobre as mulheres ("Mona Lisa, Mona Lisa, homens lhe nomearam"; e "muitos sonhos foram trazidos à sua porta") e a realidade brutal da violência masculina, a qual as mulheres são frequentemente submetidas.

Decerto, o ato mais brutal de todos é o massacre do corpo da esposa por Thorwald - ato devotamente desejado por Jeff - e, depois, pela própria Lisa. Em certo nível, Janela Indiscreta pode ser visto como uma parábola dos perigos envolvidos às mulheres que se aplicam a histórias e interpretações masculinas. Ou talvez seja melhor dizer "que se aplicam demais" - incapazes, como mantém Mary Ann Doane, de adotar, como fazem os homens, a distância apropriada, voyeurística em relação ao texto. [22] Antes, a mulher supostamente "entra" num filme tão profundamente que tende a confundir a própria fronteira entre fantasia e realidade - como Lisa atravessando e misturando-se à "tela" oposta à janela de Jeff. Essa "fusão" é uma extensão lógica de sua pronta identificação com a vítima, identificação que realmente leva à solução do crime. Lisa é capaz de providenciar a evidência que falta, pois reclama para si um conhecimento especial das mulheres, que falta aos homens: a saber, de que nenhuma mulher viajaria deixando para trás bolsa e aliança. Lisa apela para a autoridade de Stella, perguntando-lhe se alguma vez iria a qualquer parte sem a aliança, ao que Stella responde, "Teriam de cortar meu dedo fora".

Embarcando na busca pelo anel incriminador, Lisa se vê encurralada no apartamento de Thorwald enquanto este retorna sem que Jeff e Stella percebam, preocupados pela visão de Miss Lonelyhearts, prestes a se matar. Jeff alerta a polícia e assiste em agônica impotência, enquanto Lisa é arremetida pelo apartamento por Thorwald. A polícia chega a tempo de evitar o desmembramento de mais uma mulher e, enquanto Lisa está de pé, de costas para a tela - pega, como tantas heroínas de Hitchcock, entre o criminoso e as autoridades legais - aponta com uma mão para a aliança em seu dedo. François Truffaut admirou este toque:
Uma das coisas de que gostei muito no filme foi o duplo significado daquela aliança. Grace Kelly quer casar-se mas James Stewart não vê as coisas desse modo. Ela invade o apartamento do assassino procurando evidências e encontra a aliança. Coloca-a no dedo e acena com a mão por trás das costas de modo que James Stewart, observando tudo do outro lado do quintal de binóculos, possa ver. Para Grace Kelly, aquele anel é uma dupla vitória; não somente é a evidência que estava procurando mas, quem sabe, pode inspirar a proposta de casamento por parte de Stewart. Afinal, ela já tem o anel. [23]
Assim diz o homem crítico, que tipicamente considerou o filme como uma reflexão do casamento do ponto de vista do homem. Uma espectadora de Janela Indiscreta pode, contudo, usar de seu conhecimento especial das mulheres e a posição destas no patriarcado para perceber outra espécie de significância no anel; para a mulher que se identifica, como a própria Lisa, com a protagonista feminina da história, o episódio pode ser lido como apontando a vitimização das mulheres pelos homens. Assim como Miss Lonelyhearts, apresentada logo abaixo de Lisa numa espécie de efeito "split screen", procurara pelo romance e por uma breve companhia e acabou prestes a ser estuprada, assim o desejo ardente de Lisa pelo casamento leva diretamente a um casamento simbólico com um assassino de esposas. Para tantas mulheres em Hitchcock - tal é o ponto de sua reelaboração contínua do "Gótico feminino" [female Gothic] - "wedlock is deadlock" [expressão grosseiramente traduzida como "o matrimônio é um beco sem saída", jogando com a palavra dead, que quer dizer fim, morte] - de fato.



Mas não é apenas a espectadora mulher que deve se identificar com Lisa neste clímax da história - o momento que parece, na verdade, ser o ponto do filme. O próprio Jeff - e, por extensão, o espectador homem - é forçado a se identificar com a mulher e tomar conhecimento de sua própria passividade e impotência em relação aos eventos que se desenrolam diante de seus olhos. Assim, todos os esforços de Jeff em repudiar a identificação feminina que o filme originalmente estabelece (Jeff e Anna Thorwald como imagens espelhadas) terminam num fracasso retumbante, enquanto ele é forçado a ser, por sua vez, a vítima das manipulações cinematográficas de Hitchcock. Numa conversa com Truffaut sobre sua teoria do suspense, Hitchcock usa esta cena com Grace Kelly como o principal exemplo de como criar "a identificação do público" com uma pessoa em perigo, mesmo quando tal pessoa é uma indesejável "xereta". "É claro", explica, "quando a personagem é atraente como, por exemplo, Grace Kelly em Janela Indiscreta, a emoção do público está imensamente intensificada" (p.73). O que está implicado aqui é que em cenas de suspense, que nos filmes de Hitchcock, assim como em outros thrillers, normalmente tomam uma mulher como seu objeto tanto como seu sujeito, nossa identificação está, de modo geral, com a mulher em perigo. A esse respeito, todos nós de fato nos tornamos masoquistas no cinema - e é extremamente interessante notar que Theodor Reik considerou o suspense como um fator principal das fantasias masoquistas. [25]

O suspense, Truffaut declarava, "é simplesmente a dramatização do material narrativo de um filme ou, se se quiser, a apresentação mais intensa possível de situações dramáticas"; o suspense não é "uma forma menor de espetáculo", mas "o próprio espetáculo" (p.15). Concedida esta equivalência entre suspense e "o espetáculo", a narrativa, não poderíamos dizer então que a espectatorialidade e "narratividade" são, em si mesmas, "femininas" (para a psique masculina) na medida em que colocam o espectador numa posição passiva e numa relação submissa com o texto? Robert Scholes observou que "narratividade" - o "processo pelo qual o receptor constrói ativamente uma história a partir das informações ficcionais providas por qualquer mídia narrativa", [26] (o processo, portanto, inscrito em Janela Indiscreta através da personagem de Jeff) - é uma situação de "paranoia autorizada e benigna" na qual esta "assume um propósito nas atividades de narração que, se existisse no mundo, seria verdadeiramente destrutiva para a individualidade e personalidade como as conhecemos" (p.396) [27]. A narratividade envolve, nas palavras de Scholes, uma "qualidade de submissão e abandono" (podemos nos lembrar da atitude paranoica de Dr. Schreber de "voluptuosidade" em relação à grande narrativa de Deus, que incluía uma trama de fecundação do médico feminizado). Tal qualidade notada por Scholes o leva a procurar por histórias que recompensam os "tipos mais enérgicos e rigorosos de narratividade" como meio de exercer controle sobre o texto que procura manipular e seduzir sua audiência (p.397). Decerto, isto é precisamente a suspeita de Jeff de que há um "propósito" nas atividades do outro lado que impele-o a adotar uma "enérgica e rigorosa" - i.e., controladora, transcendente e, acima de tudo, "masculina" - narratividade.



Neste momento do filme, a câmera traça um trajeto triangular do olhar de Jeff no anel para Thorwald, que vê o anel e, logo a seguir, descobre Jeff, devolvendo o olhar pela primeira vez. Assim Thorwald passa a completar o processo de "feminização", atravessando o limiar em direção ao apartamento de Jeff e colocando-o no papel antes interpretado pela Sra. Thorvald e depois por Lisa - aquele de vítima da violência masculina. As técnicas de "distanciamento" de Jeff, é claro, não têm mais utilidade, e as lâmpadas de flash conseguem apenas retardar Thorwald por alguns instantes. Como Lisa, Jeff finalmente passa a ser um participante da história, embora sua identificação com a personagem feminina seja involuntária, imposta por Thorwald, cuja visita é como o retorno do reprimido.

Embora a interpretação de Jeff a respeito da história de Thorwald tenha sido validada ao fim do filme, o próprio Jeff permanece inválido, terminando com duas pernas quebradas, o corpo menos "perfeito" que nunca, enquanto Lisa, recostando-se na cama, tornou-se a imagem espelhada do homem - vestida com roupas masculinas e lendo um livro de aventuras masculino. Já sem representar a diferença sexual, nominando-se e declarando seu próprio desejo, Lisa é expressa agora pelo artista masculino - pelo músico, cuja canção completa, "Lisa", toca na trilha sonora ("men have named you" [homens nomearam-te], de fato), e por fim pelo próprio Hitchcock, que mais cedo aparecera no apartamento do músico. De modo mais claro, o fim do filme e sua "imagem narrativa" de Lisa travestida revela o modo através do qual a feminilidade aceitável é uma construção do desejo narcisista masculino, malgrado a asserção de Freud de que as mulheres tendem a ser mais narcisistas que os homens, os quais supostamente possuem uma capacidade maior para o amor a outrem. O filme mostrou consistentemente que o estado de coisas oposto é que é o caso, e em particular revelou Jeff como incapaz de gostar de Lisa, exceto na medida em que ela o confirma e espelha; significativamente, ele se torna eroticamente atraído por ela somente quando esta começa a corroborar sua interpretação do mundo em torno dele (a primeira vez que Jeff a olha com verdadeiro desejo não é, como Mulvey afirma, quando Lisa invade o apartamento e se torna objeto de seu voyeurismo, mas quando começa a fornecer argumentos a favor de sua versão dos fatos).



Um dos filmes mais altamente reflexivos, Janela Indiscreta indica que o que Jean-Louis Baldry argumentou ser característico do aparato cinematográfico como um todo - e em particular da projeção - é verdadeiro também ao nível da narrativa, que funciona como uma fantasia masculina projetada no corpo de uma mulher. Baudry mantém que, em razão da projeção cinematográfica depender da negação da imagem individual de tal modo que "poderíamos dizer que o filme... vive da negação da diferença: a diferença lhe é necessária para viver, mas este vive de sua negação". [30] De modo similar, muito do cinema narrativo nega a diferença sexual que, todavia, o sustenta - nega-a no duplo sentido de transformar as mulheres na Mulher e a Mulher num espelho do homem. (Assim, a analogia de Baudry entre o cinema e a mulher é mais reveladora do que ele parece perceber: falando de nossa tendência a "ir ao cinema antes de decidir que filmes queremos ver", Baudry escreve que cinéfilos "parecem tão cegos em sua paixão como aqueles amantes que imaginam amar uma mulher por suas qualidades, ou por sua beleza. Eles precisam de bons filmes, mas, acima de tudo, de racionalizar sua necessidade de cinema." [31] Qualquer mulher, como qualquer filme, servirá para preencher a "necessidade" do homem. Coloque uma sacola sobre suas cabeças e todas as mulheres são como Miss Torso ou como a escultura sem cabeça intitulada "Fome", da escultora do quintal de Jeff, ambas as quais funcionam, como o próprio aparato cinemático, de modo a deslocar o medo masculino de fragmentação. "O que dizer", inquire Baudry, "da função da cabeça nesta fascinação [do espectador no cinema]: é suficiente lembrar que, para Bataille, o materialismo faz de si mesmo algo sem cabeça - como uma ferida que sangra e, assim, transfunde.") [32]


Que "a diferença é necessária" para que o cinema viva e que, portanto, não pode nunca ser destruída, mas somente negada, continuamente, isto está implicado no final de Janela Indiscreta. Jeff está adormecido novamente, na mesma posição em que estava no início do filme, e Lisa, depois de se assegurar de que este não está lhe observando, (em contraste com os momentos anteriores, quando ela trabalhara duro para atrair sua atenção), pousa o livro dele e apanha uma revista sua. Quão importante este gesto seja, mais importante ainda é o fato de que o filme dá a Lisa o último olhar. Esta é, no fim das contas, a conclusão de um filme sobre o qual todos os críticos concordam tratar-se do poder que tenta exercer o homem através do exercício do olhar. Somos deixados com a suspeita (uma prévia, talvez, das próximas atrações) de que, enquanto os homens dormem e sonham seus sonhos de onipotência sobre um mundo prudentemente reduzido, as mulheres não estão onde parecem estar, trancadas em "visões" que os homens delas têm, aprisionadas na casa de bonecas de seu mestre.

Notas

1. Laura Mulvey, "Visual Pleasure and Narrative Cinema", Screen 16, no. 3 (1975): 17.

2. Mulvey, "Visual Pleasure", p.16.

3. Jean Douchet, "Hitch et son Public", Cahiers du Cinéma, n.113 (Novembro de 1960): 10. Para a discussão mais recente do filme em relação às questões de espectatorialidade, ver R. Barton Palmer, "The Metafictional Hitchcock: The Experience of Viewing and the Viewing of Experience in Rear Window e Psycho", Cinema Journal 26, n.2 (Inverno de 1986): 4-29.

4. Robin Wood, "Fear of Spying", American Film (Novembro de 1982): 31-32.

5. Linda Williams, "When the Woman Looks" em Revision: Essays in Feminist Film Criticism, Eds. Mary Ann Doane, Patricia Mellencamp e Linda Williams. The American Film Institute Monograph Series, vol. 3 (Frederick. MD: University Publications of America. 1984).

6. Robert Stam e Roberta Pearson contudo, dedicam um breve parágrafo à questão em seu artigo “Hitchcock’s Rear Window: Reflexivity and the Critique of Voyeurism”, Enclitic 7, no. 1 (Primavera de 1983): 143.

7. Stam e Pearson, “Hitchcock’s Rear Window: Reflexivity”, p. 140.

8. Um tema constante dos escritos de Stephen Heath é o modo como o cinema trabalha para "lembrar" o espectador (masculino): e.g., "a realidade histórica que encontra é uma permanente crise de identidade que deve ser permanentemente resolvida relembrando a história do sujeito individual". “Film Performance”, Questions of Cinema (Bloomington: Indiana University Press, 1981), p. 125.

9. Ruth Perlmutter, “Rear Window: A Construction Story”, Journal of Film and Video 37 (Primavera de 1985): 59.

10. Susan Lurie, “Pornography and the Dread of Women: The Male Sexual Dilemma”, Take Back the Night: Women on Pornography, Ed. Laura Lederer (New York: William Morrow, 1980), p. 166.

11. François Truffaut, Hitchcock (New York: Simon and Schuster, 1983), p. 166.

12. Este ponto é desenvolvido com fôlego em Raymond Bellour, “The Birds: Analysis of a Sequence”, Mimeograph, The British Film Institute Advisory Service, s.d.

13. Que ele esteja tão relutante em fazê-lo fornece uma confirmação interessante da tese de Christian Metz de que no cinema narrativo é a história, mais que qualquer personagem em particular, que "exibe a si mesma". “History/discourse: a note on two voyeurisms”, Theories of Authorship, Ed. John Caughie (London: Routledge & Kegan Paul, 1981), p. 231.

14. Virginia Woolf, A Room of One’s Own (New York: Harbinger, 1957), p. 77.

15. Kaja Silverman, “Lost Objects and Mistaken Subjects: Film Theory’s Structuring Lack”, Wide Angle 7, nos. 1–2 (1985): 24. Em muitos aspectos, a posição de Silverman está próxima da de Lurie. Contudo, Lurie, assim como muitas feministas "americanas" (em oposição a feministas francesas ou de orientação francesa), parece compartilhar até certo ponto a fantasia do menino, que chega a negar, da "completude" da mulher, enquanto que para Silverman todos os sujeitos são inevitavelmente divididos, mas na cultura patriarcal os homens são capazes de projetar a divisão nas mulheres, mantendo assim a ilusão de sua própria completude.

16. Para este ponto ver Perlmutter, “Rear Window: A Construction Story”, p. 58.

17. Metz fala daquele "outro espelho, a tela de cinema, neste caso um verdadeiro substituto psíquico, uma prótese para nossos membros primeiramente deslocados". Citado em Stam and Pearson, “Hitchcock’s Rear Window: Reflexivity”, p. 138.

18. Susan Stewart, On Longing: Narratives of the Miniature, the Gigantic, the Souvenir, the Collection (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1984), p. 63. É importante reconhecer, como apontou John Belton, que Jeff não observa meramente, mas manipula ativamente seus vizinhos, "escrevendo uma carta de chantagem ('O que fizeste com ela?'), o que mantém o suspeito sem deixar a cidade e depois tirando-o do apartamento através de um telefonema de modo que este possa ser revistado." Cinema Stylists (Metuchen, N.J.: Scarecrow, 1983), p. 15. Stewart daqui por diante citado no texto.

19. Em sua meditação a respeito da miniatura em The Poetics of Space, Gaston Bachelard apresenta argumento similar. Contudo, diferente de Stewart, Bachelard celebra a tendência da miniatura em nos colocar numa posição de transcendência. Ver The Poetics of Space, trad. Maria Jolas (Boston: Beacon, 1964), pp. 148–82.

20. Jean Laplanche and J.-B. Pontalis, The Language of Psychoanalysis, Trad. Donald Nicholson Smith (London: Hogarth, 1973), p. 251.

21. Jacques Lacan, Ecrits: A Selection, trad. Alan Sheridan (New York: Norton, 1977), pp. 1–7.

22. Remeto novamente o leitor às primeiras páginas do livro de Mary Ann Doane, The Desire to Desire: The Woman’s Film of the 1940’s (Bloomington: Indiana University Press, 1987).

23. Truffaut, Hitchcock, p. 223. Daqui por diante citado no texto.

24. A frase foi tirada da excelente discussão de James B. McLaughlin a respeito de Shadow of a Doubt de Hitchcock, “All in the Family: Alfred Hitchcock’s Shadow of a Doubt”, Wide Angle 4, no. 1 (1980): 18.

25. Theodor Reik, Masochism and Modern Man, trans. Margaret H. Biegel e Gertrud M. Kurth (New York: Farrar, Straus, 1941), pp. 59–71. Sobre o primado do masoquismo no desenvolvimento humano, ver Jean Laplanche, Life and Death in Psychoanalysis, trad. Jeffrey Mehlman (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1976), p. 89.

26. Robert Scholes, “Narration and Narrativity in Film”, in Film Theory and Criticism, Eds. Gerald Mast and Marshall Cohen (New York: Oxford University Press, 1985), p. 393. Daqui por diante citado no texto.

27. Peter Brooks fala da mesma atividade em termos parecidos, termos que evocam o modo pelo qual a "feminilidade" é percebida e construída sob o patriarcado: "A suposição da história de outro, a entrada em narrativas alheias, faz correr o risco de uma alienação de si mesmo que na obra de Balzac evoca repetidamente a ameaça de loucura e afasia". Ver seu Reading for the Plot: Design and Intention in Narrative (New York: Vintage, 1985), p. 219.

28. Teresa de Lauretis empresta este termo, "imagem narrativa", de Stephen Heath: "No cinema... a mulher representa propriamente o cumprimento da promessa do filme (feita, como sabemos, ao menino) e esta representação funciona de modo a dar suporte ao status masculino do sujeito mítico. A posição feminina, produzida como o resultado final da narrativização, é a figura do desfecho narrativo, a imagem narrativa com a qual o filme, como diz Heath, 'se resume'." Alice Doesn’t: Feminism, Semiotics, Cinema (Bloomington: Indiana University Press, 1984), p. 140.

29. Sigmund Freud, “On Narcissism: An Introduction”, The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, Vol. 14, trad. James Strachey (London: Hogarth, 1974), pp. 88–89.

30. Jean-Louis Baudry, “Ideological Effects of the Basic Cinematographic Apparatus” trad. Alan Williams, Apparatus: Cinematographic Apparatus: Selected Writings, Ed. Theresa Hak Kyung Cha (New York: Tanam, 1980), p. 29.

31. Jean-Louis Baudry, “Author and Analyzable Subject” in Apparatus, p. 68.

32. Baudry, “Ideological Effects” p. 32. À luz da "mulher sem cabeça", motivo em Hitchcock, considerar o seguinte comentário de Joan Copjec, "Sabemos que o sonhador sonha consigo quando sonha com uma pessoa cuja cabeça não é capaz de ver". “The Anxiety of the Influencing Machine”, October 23 (Inverno de 1982): 44. 

The Master’s Dollhouse: Rear Window foi publicado originalmente no livro The Women Who Knew Too Much: Hitchcock and Feminist Theory, (New York: Methuen, 1988). Tradução: Eduardo Savella. 

Cineclube #11: Todas as noites



Miguel Haoni comenta Todas as noites (Toutes les nuits, Eugène Green, 2001)
Captação e edição: Wesley Conrado

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O karma das imagens

Por Serge Daney

O Festival de Cannes é um rito. Era também uma festa. A crítica internacional descobria a cada ano com o que se parecia o mapa geopolítico do mundo (das imagens) através de uma seleção de filmes inéditos (na França, ao menos): ela tinha as primícias destes filmes. Havia o frescor e talvez um arrepio a percorria, aquele de ser o “primeiro público” do filme, de ter para com ele os direitos e os deveres. Aquele de descrever o que ela tinha visto, de criar o desejo de ver o que ela tinha amado, de falar mal do que a decepcionou – e mesmo chocou (o escândalo de A aventura em 1960!). Eu não conheci esta época, da qual tudo me indica sua existência.

Mas no correr dos anos, o que se passou? Mais imagens foram consumidas por menos gente cada vez mais depressa. O mundo do cinema (a rotação dos filmes, das novidades, das idéias, das modas e das pessoas) se acelerou e, então, se entusiasmou completamente.
Todo o rito que ele é (e que ainda lhe resta), o Festival de Cannes representa menos, para os filmes, um batismo de fogo ou uma passagem da linha que uma forma de teste ou de confirmação, de repescagem ou de revanche (eu falo da Seleção oficial, evidentemente). Os americanos lhe enviam filmes que já perderam os Oscars e que, devido sua estranheza, seduzirão, talvez, o gosto europeu (Coppola, Cimino, este ano Leone), enquanto que os grandes distribuidores matam a galinha e os ovos de ouro, “lançando” o filme ao mesmo tempo que o Festival, ou logo após, transformando a noite de gala em preview mundana. Resumindo, o freqüentador de festival perde o seu privilégio cinefílico, este de voltar à Paris, bronzeado se possível, e de responder com um ar cansado e sibilino às perguntas febris de seus amigos: “Então, como é o...?”. E quando um filme da seleção francesa (do qual sabemos o ridículo assunto de Estado (dentro do estado) que ele representa a cada ano)foi lançado nas salas, vamos para um “efeito César” do festival: o rito hesita entre a redenção e a obstinação terapêutica.

É preciso ser cinéfilo para sentir estas coisas, mas teria de ser burro para pensar que elas dizem respeito apenas ao mundo do cinema. Esta perda do sentimento do presente é evidentemente o grande fenômeno das mídias. Nós não estamos mais diante das coisas, mas sua imagem nos prega na pele como uma simpática cola ontológica. A urgência de ver um filme é menor e produz talvez, a prazo, uma urgência menor de fazê-los. Nós entramos completamente na era da reciclagem. O karma das imagens é renascer. Elas enterrarão a nós todos.


O que acontece com o jornalista de cinema que volta, tarde e trêmulo de cansaço, ao seu quart(inh)o de hotel? Que, por reflexo, ele ligue a televisão. E que ele veja – ô alegria! – que além do fim dos programas e do vergonhoso “boa noite crianças!” com que as apresentadoras mandaram deitar o bom povo (trabalhador) da França, há ainda a imagem! Não em todos os casos, sem dúvida, mas sobre os mil receptores que difundem, após a meia-noite, o programa “Star 84” da Sygma. E lá, desprezando todo o bom senso, apesar dos neurônios em pedaços e da retina em fogo, o jornalista continua a olhar! Por que depois da meia-noite na Sygma, tem o “cineclube Gaumont”, tem ainda um filme.

Experiência estranha (e secretamente revoltante) esta que consiste em ver, quando é preciso dormir, longas passagens, a granel, de Cidade das mulheres ou de Identificação de uma mulher. Flutuação espantosa aonde velhos encontros vem alimentar nosso sono paradoxal. Últimos reflexos do crítico (será que o filme resiste?), restos diurnos de lucidez, estranha gratidão por estas imagens sobre as quais ele não terá nem que escrever nem que se pronunciar no dia seguinte. É assim que, a cada noite, são as imagens que nos curam das imagens.

Esta perda do sentimento do presente provoca imediatamente uma indiferença pelo futuro e um esquecimento do passado. Todas as imagens subitamente são iguais. Os contadores da reciclagem são zerados. Anteontem, olhando com um olho mais verdadeiramente humano Identificação de uma mulher, tive que fazer um esforço para me lembrar que o filme estava em competição, aqui mesmo em 1982 e que foi necessário lutar (por ele e mesmo para vê-lo, entrar na sala de projeção, convencer aqueles que lhe tiraram as esperanças, improvisar duas páginas no jornal). Era isso que era verdadeiro ou o retorno discreto do filme, dois anos mais tarde, já objeto de cineclube?

Fica mais difícil a cada dia nos identificar com os filmes. Por que nós não os encontramos mais (como as estrelas cadentes), mas por que são eles que se aparentam conosco: reservados, em K7, à espera, sob a grade, vagamente presentes e sempre prontos. 

17 de maio de 1984

Le karma des images foi publicado no livro Ciné Journal (Volume II), p. 109-111. Tradução: Miguel Haoni

US Go Home




de Claire Denis, com Alice Houri, Jessica Tharaud e Grégoire Colin.

Por Stéphane Bouquet

Podíamos contar com Claire Denis para abordar de frente, sem complexos e sem vulgaridade, a única questão que atormenta verdadeiramente nossas adolescências: quando vamos enfim transar, e com quem? Sobre este tema um pouco escorregadio da primeira vez, Claire Denis conta menos uma história (US Go Home é pouco roteirizado e foge francamente da psicologia) do que filma uma energia bruta, primitiva e pulsional, apreendida em seu ponto de intensidade máxima no começo do filme, e que segue até se esgotar. US Go Home é um filme do decididamente obstinado. Tudo começa numa tarde. Martine, sua amiga ruiva, e Alain seu irmão mais velho (respectivamente Alice Houri, Jessica Tharaud e Grégoire Colin, todos os três excelentes), controlam sua libido transbordante como podem, umas falando unicamente de rapazes, único momento volúvel deste filme pouco tagarela; o outro se lançando numa longa dança febril e solitária para apaziguar seu desejo, esplêndido plano-sequência onde o corpo trepidante do ator está como que fechado no quadro, forçado a movimentos sem amplitude e permanece impedido de vibrar. Mas naquela noite, as duas amigas são convidadas a uma festa, e Martine considera que chegou o momento de transar pela primeira vez.

Chegando no lugar, elas constatam que os pais participam da festa, que eles dançam a farândola e que não há nenhuma possibilidade de levar a cabo seu projeto. Elas decidem então se juntar a Alain, que partira para uma festa dos mais velhos [parti pour une fête des plus grands qu'elles], jovens provavelmente mais dispostos ao amor físico. O que se segue é um intenso momento de cinema.

No centro de uma grande mansão burguesa, Martine deambula à procura de um rapaz que queira lhe fazer dançar e o que mais rolar. Na semi-obscuridade que banha os cômodos e atenua as formas, Claire Denis se aproxima, câmera na mão, o mais perto destes corpos que se procuram, se tocam e se repelem, às vezes com dureza, jamais com violência, sob um rock soft e um pouco lânguido. Em sintonia, a câmera prefere visivelmente acariciar os corpos em vez de os maltratar ou atormentar. É uma das mais belas ideias de Claire Denis não ter filmado nem a confusão dos corpos, nem a violência eventual da pulsão sexual, e ter permanecido no registro da doçura, que não é sentimentalismo (sobre Camille de Noites sem dormir, a cineasta disse que ele matava "com doçura"). É também o verdadeiro tema de Claire Denis, não a realização sexual, mas o desejo cuja natureza permanece misteriosa, e esse mistério ainda maior que é um corpo que palpita e se comove. Para conseguir penetrar essa zona de opacidade - opacidade concretamente figurada pelos planos muito pouco iluminados, uma câmera que avança tateante e gira em torno de casais muito confusos para que adivinhemos o que circula entre eles -, a doçura é talvez a melhor estratégia.



A revelação, aliás, virá desta doçura, ao fim de uma série de experiências abortadas, como são sistematicamente interrompidos os discos sobre o toca-discos. O filme encontra seu ritmo nestas tentativas, sempre mais impulsivas e mais explicitamente sexuais, mas a cada vez frustradas, de estabelecer relações com o Outro. Entre a primeira tentativa de diálogo com uma garota que discutiu com seu namorado (o que é ter um amigo?), e os abraços largamente incestuosos de seu irmão no fim da festa(o que é ter um corpo contra o seu?), Martine avançará no conhecimento íntimo do desejo. Resta a passagem ao ato. É a última parte do filme, e a mais bela. No caminho de volta, Martine e seu irmão encontram um oficial americano que aceita levá-los em casa. Martine paquera um pouco, e Alain, ciumento como um galo, decide voltar a pé.


O campo está livre. Só uma grande cineasta do corpo e de suas pulsões poderia em seguida filmar tão bem o nascimento do desejo no soldado americano. Se aproximando sempre cada vez mais perto dele, de suas mãos, de seu rosto, a câmera acaba por se colar à sua bochecha onde sentimos palpitar a pele. Alternando com estes planos muito apertados, são montados largos contra-plongées sob as folhagens das árvores recortadas contra o céu noturno, agitada respiração, como aquela de um coração que enlouquece, se agita e faz boom-boom (título originalmente previsto).

A sequência está na ordem das coisas, e fora de campo. No muito belo antepenúltimo plano, três corpos saciados, cansados e vazios, certificam que não há mais energia disponível e que o filme pode acabar. Claire Denis fez um dos mais belos filmes da série.

US Go Home foi publicado na revista Cahiers du Cinéma, n° 485, novembro de 1994. Tradução: Miguel Haoni.

André Bazin



Por Serge Daney

Era o “velho” dos Cahiers. Ele gaguejava, ele amava os animais e ele morreu aos 40 anos. Ele sabia compartilhar sua paixão pelo cinema. Ele se chamava André Bazin, crítico francês, e um americano de Iowa contou a sua vida. 


Os maus cineastas (é triste para eles) não têm ideias. Os bons cineastas (são os seus limites) têm, ao contrário, muitas. Os grandes cineastas (sobretudo os inventores) têm apenas uma. Fixa, ela lhes permite manter a rota e de fazê-la passar no meio de uma paisagem sempre nova e interessante. O preço é conhecido: uma certa solidão. E os grandes críticos? É a mesma coisa, exceto que eles não existem. Eles passam (seu caminho, de modo, atrás da câmera), eles têm um sucesso estrondoso e, depois, passam a nos aborrecer e para acabar, eles se cansam. Todos, exceto um. Entre 1943 e 1958 (ano de sua morte: ele só tinha quarenta anos), André Bazin fora esse homem. Ele foi, com Henri Langlois, o outro grande cineasta “bis” de sua época. Langlois tinha uma ideia fixa: mostrar que todo o cinema merecia ser conservado. Bazin teve a mesma ideia, mas ao contrário: mostrar que o cinema conservava o real e que antes de significá-lo e de assemelhar-se a ele, ele o embalsamava. Não existiram metáforas tão belas nem tão macabras para o dizer: máscara mortuária, molde, múmia, impressão, fóssil, espelho. Mas um espelho singular “cujo aço retivesse a imagem [1]”. André Bazin estava um pouco como “à procura do aço perdido”.

Alguma coisa ameaçava desaparecer nessa pesquisa de toda uma vida: o próprio pesquisador. Citado, estudado, traduzido, refutado, beatificado, certamente, mas cada vez menos reintegrado — como dizemos vulgarmente — “no seu contexto”: André Bazin, o homem. Com o livro de Dudley Andrew, responsável do departamento de cinema na Universidade de Iowa, isso está feito. Devidamente prefaciado (por Truffaut) e com posfácio de Tacchella, trata-se de uma biografia intelectual de Bazin e de uma tentativa (americana, toda impregnada da gravidade universitária) de elaborar um quadro mais útil do que nunca: aquele da vida das ideias (seção: crítica de cinema) na França do pós-guerra. Em um momento em que Bazin fora, simultaneamente, herdeiro e precursor, figura de proa e transmissor. 

Do que ele herdava, exatamente? De uma infância estudiosa (nascimento em Angers, primeiros estudos com os Irmãos, em La Rochelle), de um gosto precoce pela leitura e pelos animais, de uma carreira aparentemente toda planejada de professor (École Normale de St-Cloud) e de influências então inevitáveis: Bergson no fim de carreira, Du Bos, Péguy, Béguin e Mounier (fundador da revista Esprit em 1932). Tudo isso é muito católico. Mas também muito “social”. É Mounier e a ideia de “orientação própria” ou do “outro desconhecido” que retêm o estudante Bazin. É o exemplo radical do militantismo católico de Marcel Legaut que o impressiona. São os textos de Roger Leenhardt sobre o cinema (na Esprit) que o impressionam em um momento em que ele ainda não optou pelo cinema. Elétrico, falador, boêmio, ele ainda não sabe para quais grandes coisas ele nasceu. Dito isso, ele não aprecia a mediocridade.

Em que momento ele começa a escrever? Com a “guerra de mentira” [drôle de guerre] e com uma “estranha crise” pessoal (a psicanálise, sem dúvida, fracassada e que permaneceu obscura, a raiva frente à frouxidão do clero colaboracionista). Com um verdadeiro trauma: o fracasso no exame oral do professorado (“Aconteceu-me uma catástrofe à qual eu não estava habituado: eu reprovei no exame oral do professorado. Mais exatamente não me admitiram porque eu tinha gaguejado na minha leitura explicativa”). Bazin, educador nato, jamais será professor. Ele será mais que isso: um iniciador. A partir de 1942, apesar de um corpo doente (os pulmões) e um espírito perturbado (ele é muito crítico, no fundo, para ter a fé do homem simples, ele sempre será um espírito livre, inapto a submissão, um homem religioso mas não um crente), ele fundará os cineclubes e os animará. É preciso dizer que depois da fogueira crítica dos anos vinte, o que se escreve naquele momento corresponde à imagem da ideia que se faz, então, dessa arte: medíocre. Pouco elitista, Bazin pensa que ao fazer amar os bons filmes, se criará um público melhor que, por sua vez, exigirá ver filmes melhores, etc.


Esse otimismo é à semelhança do clima intelectual do imediato pós-guerra. A “animação cultural” é uma ideia nova, mas política. Peuple et culture (proveniente da resistência de Grenoble), Travail et culture (próximo do PC e onde Bazin trabalha) bem percebem que não se deve perder tempo impedindo a burguesia francesa de reocupar o terreno cultural. Outro motivo para o otimismo: é novamente possível viver (e pensar) no ritmo de uma arte (o cinema) que desposa todos os debates da época. Há grandes acontecimentos: o retorno de um filme americano em um ecrã parisiense (5 de outubro de 1944, no Moulin Rouge: trata-se de um Duvivier!), a première emocionante de Paisà de Rossellini (novembro de 1946), a estreia amuada de Cidadão Kane de Welles (1947). Em cada caso, nos primeiros lugares, Bazin é, simultaneamente, o mais febril e o mais lúcido. É um apaixonado. Sem paixão, ele não escreve, mas se escreve, ele procede com o método daquele que quer saber mais sobre a sua paixão e compartilhar esse “mais”. Ele se torna o crítico titular do Parisien libéré (600 artigos, no total), escreve no L’Écran français (hebdomadário notável, criado na clandestinidade em 1943), depois na segunda Revue du cinéma de J. G. Auriol. E o que ele escreve, conta.

A continuação é mais conhecida. Para todos, o otimismo deu lugar ao desencantamento (retiro em si mesmo, retiro no cinema, no “cinema em si”). A guerra fria nos bestifica. Os stalinistas que tomam o poder no L’Écran français acham Bazin desajeitado. Esse espiritualista manteve o gosto do social e o senso da história; esse analista do cinema como “forma” presta ainda muita atenção ao “conteúdo”. Um incômodo. É com o seu famoso texto sobre “O mito de Stalin” (publicado na revista Esprit, em 1950) que Bazin corta relações (Sadoul escrevera em Les lettres françaises uma resposta ridícula). E é “objetivamente” que Bazin se verá animar o cineclube mais fechado e o mais “in” da época: “Objectif ‘49”. 1949 é um ano intenso. É aquele do legendário Festival do Filme Maldito em Biarritz (eram malditos As damas do Bois de Boulogne, Lumière d’Été, O Atalante), e é o ano do nascimento de Florent Bazin, filho de André e Janine. 1950 será menos feliz: tuberculose, sanatório e começo de uma atividade (dificilmente) desacelerada. 1951 será o ano da criação, com Jacques-Doniol Valcroze, dos Cahiers du cinéma, revista célebre pelos seus excessos e sua capa amarela.

Restava-lhe oito anos de vida. Bazin, morto aos 40 anos de leucemia, teve o privilégio de ver tornar-se precursor e ser, no seio dos Cahiers que ele animara até a sua morte, “o mais velho” de um bando cinemaníaco que deveria, um ano depois de sua morte, invadir o cinema francês. Bazin é o verdadeiro “pai” de Truffaut, criança encontrada, duas vezes desertor, apaixonado pelo cinema, e que não perdera tempo para declarar a guerra (fim de 1953) ao establishment da “qualidade francesa”, beato de autossatisfação. Depois foram Schérer (futuro Rohmer), Rivette, Godard e Chabrol. Bazin lhes havia fornecido os instrumentos intelectuais dos quais eles precisavam para travar sua batalha: o estudo privilegiado dos grandes cineastas (para Bazin, sempre foram Chaplin, Welles, Flaherty, Rossellini, Renoir), a reinvindicação de um cinema “impuro”, a falta de gosto pelo teatro, a recusa de subestimar a técnica, o interesse pelo cinema americano menor, etc. E então, a ideia desse cinema-espelho em um aço um pouco especial, sem a qual não compreenderíamos nada do que deveria ser a Nouvelle Vague após a morte do “transmissor”.


Ninguém sabe o que ele teria pensado da evolução dos seus jovens amigos, nem até onde ele teria os seguido. Ele morreu antes do momento em que o que nós aceitamos de um futuro cineasta (o talento e a má-fé, o senso do momento e os artifícios para durar) não convém mais ao crítico, condenado ao papel de testemunha imparcial ou de árbitro acima da briga. Quando estava vivo, houve “briga” para que o cinema fosse novamente considerado como uma arte, depois, como uma cultura de base (fora o papel dos cineclubes) e para que importemos na sétima arte o credo literário: “O estilo é o próprio homem.” Essa briga, hoje, é coisa do passado.

De modo que quando relemos Bazin, é outra coisa que nos toca. A qualidade de seu estilo, as precauções oratórias, o tom moderado, tudo o que fez com que, na época, falássemos de “crítica construtiva” a seu respeito — coisa que desapareceu completamente. E o que nos intriga, é que a visão baziniana do cinema — inextirpavelmente ligada ao cinema como “tomada de vista” — é confrontado hoje a um estado do cinema em que a imagem não é mais necessariamente “extraída” do real. A imagem eletrônica ignora o aço. É nisso, pelo absurdo, que ele continua atual.

Resta o homem. “Somos tentados a ver em Bazin, diz Dudley Andrew, página 25, um ser essencialmente diferente de nós e nos sentimos secretamente aliviados que o seu falecimento prematuro tenha impedido uma colisão imaginável entre sua inocência e os comprometimentos dos anos sessenta, em todos os domínios que lhe interessavam.” E, na última página, ele empresta de William Carlos Williams os termos de uma comparação com o santo Francisco de Assis “que ensinava os animais a rezar não porque ele queria levá-los a Deus, mas porque ele desejava se tornar tão natural quanto eles.

Apesar desse lado “Vida do santo Bazin”, o livro de Andrew deixa entrever, nos interstícios do itinerário intelectual, um homem. Que gaguejara, que amara os animais, tivera humor e soubera compartilhar a sua paixão. Há momentos emocionantes nesse livro. Como, por exemplo, na narrativa da première de Païsa: “Rossellini tinha vindo de Roma, de carro, com uma cópia do filme e Bazin tinha reservado a grande sala da Maison de chimie para a ocasião. O cineasta falara brevemente, depois a multidão compacta de operários, intelectuais, anciãos da Resistência e prisioneiros de guerra, vira o que o crítico considerava talvez como o filme mais importante e mais revolucionário jamais realizado. Eles tiveram igualmente o privilégio de ver Bazin chegar a essa conclusão quando as luzes se reacenderam e quando ele tentara compartilhar sua emoção. Tamanha era essa emoção (era a primeira vez que ele via o filme) depois da cena final atroz, que ele falara de forma quase incompreensível. Especialmente, ele se encontrara na impossibilidade de articular corretamente a palavra ‘cinema’.” 

19 de agosto de 1983 

Retirado do livro Ciné journal – Volume II 1983-1986, p. 41-46. Tradução: Letícia Weber Jarek. 

[1] Daney se refere a uma passagem do texto Teatro e cinema, publicado aqui no Brasil no livro Cinema – Ensaios (Editora Brasiliense, 1991) ou O que é o cinema? (Cosac Naify, 2014). Eis o trecho: "É errôneo dizer que a tela é absolutamente impotente para nos pôr 'em presença' do ator. Ele faz isso à maneira de um espelho (que, é ponto pacífico, substitui a presença daquilo que se reflete nele), mas de um espelho com reflexo diferido, cujo aço retivesse a imagem." (p. 141-142, ed. brasiliense)