O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Marilyn




Por Serge Daney

O que é uma star? Um momento na história do cine. O momento em que a sétima arte se percebe atingida por um câncer fundamental: ele simula a profundidade, mas sua imagem é plana. Plana para sempre, esse pampa em baixos-relevos. 

Porém, desde sempre, as stars eram atores com relevo (a mais?), um peso de carne, um espaço próprio, uma profundidade-enigma. Corpos barrados ao prazer, destinados a sua imitação, ao gozo de sempre decepcionar e de ainda prometer. 

Sempre o cine estaria ocupado entre sua pobre imagem e o refinamento derrisório de truques, “a arte”, que fazem com que essa carne e esses ossos pareçam se mover no espaço, de verdade, utilizando a profundidade de campo como uma rampa. Mas o espaço das stars, são elas próprias/mesmas os limites de seus corpos, um equilíbrio que se mexe muito, um movimento tremido que, em nenhum lugar, se apressa lentamente.

O star-system é passado. Ele está atrás de nós, não muito longe. Ele se recompõe diferentemente segundo as novas tecnologias das quais não fazemos a mínima ideia. Ele se re-repara de outra maneira. O vídeo terá suas stars? Quanto às velhas, elas terminam como deve ser nas cinematecas e sobre os posters, reduzidas a uma superfície preta e branca. A inquietação que vinha dessa terceira dimensão dispersa foi substituída lentamente por um simples “congestionamento” do espaço, um imaginário. A imagem matou o ídolo. Isso aconteceu a Garbo, a Dietrich. 

Isso aconteceu a Marilyn? Não. E contudo, um dos gestos mais radicais, irascíveis e rápidos do século XX é a operação reduplicante através da qual Andy Warhol negara Marilyn-corpo e só conservara, em superfícies berrantes, o mesmo sorriso industrial.

Marilyn, do mesmo modo que os tomates Campbell, simbolizou também a arte moderna, a modernidade na arte: essa técnica de nivelamento, de um esgotamento desencantado, do luto alegremente assumido da terceira dimensão. Nunca uma star fora tão curiosamente celebrada — e negada. Caminhões de analistas glosaram sem se enganar sobre o impacto do gesto warholiano. Eles não estavam enganados. 



Mas eles tinham razão? Não. Pois algo havia desertado essa imagem industrial: o sofrimento. A vida de Marilyn, nós o sabemos, fora um vale de lágrimas. O que sabemos um pouco menos é que uma parte de seu sofrimento era físico. Mutilávamos um corpo e era o seu. Remodelado, desnaturado, forçado, refeito: um calvário. 

Última star no limite do preto e branco e da cor. Primeira star cujo sangue teria sido vermelho. Destino único e duplo: de um lado, a imagem, do outro, o corpo. A imagem irônica e o corpo de humor. Quantos são eles, quantas são elas, aqueles que, como ela, sofreram para serem (b)elas: falsas Marilyn cantando com um ar falso “My heart belongs to Daddy!”, contendo suas lágrimas travestidas, louros estridentes, loucas cosmopolitas, cirurgias estéticas do pobre e da pobreza. 

Só através dela que continua nos assolar a paixão de ser um outro. A paixão de ser uma outra. 

5 de agosto de 1982 

Retirado do livro Ciné journal – Volume I 1981-1982, p. 32-35. Tradução: Letícia Weber Jarek.

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