O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

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Por Serge Daney

Paisagem depois da batalha. Produto audiovisual ameaçador, O amante exibe, se nos damos o trabalho de analisá-lo, a adequação doravante bem-sucedida entre o espectador “personalizado” e a imagem “chromo”. No cinema, as coisas “se” comunicavam. Nesse pós-cinema, elas nos são comunicadas. Uma pequena diferença.

Para falar de um filme que tanto penamos para ver sem dormir, acontece que dizemos, como que para se desculpar: “Me cansou os olhos”. Essa bela expressão é uma forma de reconhecer que todo filme é projetado simultaneamente duas vezes: uma vez sobre o ecrã da sala e uma outra sobre a retina persistente dos nossos olhos. Como se a tela que nós “nos tornamos” fosse também um lençol estendido no fundo dos nossos olhos e que cairia sem esses “prendedores de roupa” que constitui nosso gosto por essa bela coisa chamada cinema. 


O filme “que cansa os olhos” é aquele que, a cada instante, foi preciso “subir a retina” como subimos, no burlesco, nossas calças e nossas meias. É assim que criamos falsas lágrimas, nascidas da conjuntivite e não da emoção. E de falsas cóleras, nascidas da irritação e não da revolta. É nesse sentido que os maus filmes tem “tudo errado”. 

O amante é um desses filmes que “cansam os olhos”. Embora um pouco menos consternador que a campanha de intimidação que acompanhou sua promoção, o produto só daria pena se não sentíssemos que com Annaud existe — enfim operacional — o protótipo de uma nova raça de cineastas: o “pós-cineasta”, isto é, aquele que não sabe nada do que o cinema soube. 

Isso não data de ontem: o homem encontrou o seu caminho de Damas, há uns dez anos, quando ele teve a intuição, realmente fulgurante, de que tudo o que foi durante muito tempo “natural” no cinema — que nele haja homens e mulheres, personagens e corpos, afetos e experiências: enfim, histórias — acabaria por cair em tantos “continentes desconhecidos”, aos quais não teríamos mais acesso que por meio do exterior, graças a simulações cada vez mais consensuais e retóricas (tudo aquilo que os reality shows constituem como o baixo produto televisual). 

Annaud é então o lanterninha-chefe que estaria lá nos primórdios da Humanidade (A guerra do fogo) como na sua meia idade (O nome da rosa), nos primórdios de uma vida de jovem besta (O urso) como naqueles da vida erótica de uma jovem garota (O amante). É assim que ele aplicou o seu selo sobre alguns grandes eventos de sucesso dos anos 1980, anos que — nunca os esqueçamos — foram marcados pelo retorno (infelizmente) pouco contornável da preocupação mitológica no seio das nossas famílias. Retorno que tinha necessidade de uma nova matriz estética (fora a publicidade e seus cromos), e a longo prazo, de um novo tipo de comunicador sem estados de alma (Annaud, por exemplo).

Pois, contrariamente a Besson e a Beineix, mais talentosos e ainda consumidos pela ideia cinefílica, Annaud sempre filmou na ignorância do cinema que antes dele existiu. Por estar imaginariamente no leito dos primeiros passos de tudo o que se mexe, por velar a pré-história da espécie e os primórdios do pithecanthropus erectus, ele esqueceu que outros antes dele tinham brincado com esse excitante dispositivo: os prendedores de roupa do cinema sobre as nossas retinas em fogo. 

A julgar, enfim, pelo estilo da promoção de O amante, a barbárie audiovisual tenha talvez encontrado seus Hunos. Eles se converterão ao cinema? Eles vão nos dar uma surra (Achtung, etc.)? Quem nos protegerá? E aliás, quem é esse “nós”? Digamos que se trata dos amadores do cine-prendedores de roupa e do sentimento, cada vez mais claro, que eles têm de fazerem mais parte dos outros que dos hunos

Annaud, na verdade, não é qualquer um, mas o primeiro robô não-cinéfilo da história do cinema. No manual “A espécie humana em vinte storyboards”, estudado na nave espacial que voltou no tempo até nós, ele leu que o cinema era “contar uma história em imagens”. Sentimos que ele nunca irá além desse estereótipo e que ele sempre saberá com o que isso deve se parecer, a “representação” dos comportamentos e das emoções humanas. Mas justamente, ele só sabe isso: ele tem a sabedoria do robô que não sabe que ele não sabe nada. 

Ele não sabe que há coisas que vivemos sem propriamente vê-las e que há outras que nos arrancam os olhos sem nos remeter, no entanto, a nenhuma vivência, que há momentos em que não se deve gritar muito alto, onipresenças nulas e ausências fortes, mentiras coletivas e verdades parciais, enfim, experiências que o cinema tem muita dificuldade (mas sua dignidade é tentar) de se aproximar. Normal: não está escrito no manual porque o manual — permanecendo muito bem feito — foi escrito por publicitários, ao longo dos anos 1980. 

Voltemos ao cinema, a nossa retina e aos nossos prendedores de roupa. Por que o filme cansa os olhos? Porque algo de essencial — de essencial ao cinema — desapareceu em um filme como O amante. O cinema viveu de uma evidência simples: a saber, que alguma coisa se comunicava de um fotograma ao outro, de uma imagem a outra, de um plano a outro, e tudo isso terminava por constituir um tecido lógico e confuso, rico e retorcido, em que o espectador não precisava ser “atordoado” (como a zeladora) a cada instante para estar implicado, posto em jogo, arrebatado e urdido vivo pelas agulhas de tricotar do espaço-tempo. Por esse motivo, os grandes manipuladores do público — de Hitchcock a Tati, de Chaplin a Leone — foram igualmente imensos lógicos que apostavam também no orgulho que nós tínhamos direito – espectadores – de sentir quando nós aprendíamos a ver, deduzir ou imaginar, a partir dos enigmas que eles nos propunham.

Esse orgulho desapareceu há muito tempo, substituído pelo gozo dos efeitos do “cinema filmado”. É provavelmente para “fazer cinema”, para se pavonear — à maneira de novos-ricos que adquiriram o direito da primeira noite sobre o mundo inteiro — nos ouropéis literários de uma história assinada por M.D., onde, a princípio, tudo é apenas humidade, linhas de calor, desfocagem enervada e contágio sensual, que Annaud aceitou o desafio dispendioso da sua leitura de um romance colonial de sucesso. Isso só deixa mais claro a forma com que, nele, o imaginário substituiu o cinema. 


Peguemos um exemplo. Peguemos um faux raccord (há alguns em O amante). A primeira coisa que vemos do amante é, se eu me lembro bem (mas eu não irei rever o filme para verificar), um dos seus sapatos. O sapato, terrivelmente belo e luxuoso, está voltado para o espectador, como um rosto, o tempo de um close embrutecido e que dura. Ele dura o tempo que é preciso para o espectador chegar na seguinte conclusão: estes não são os sapatos Bata e as pernas que os portam não são aquelas de qualquer um. Na imagem seguinte, de fato, vemos se estender o corpo elegante e bem vestido do chinês que desce de seu carro de coleção. O problema é que entre a forma com que o sapato estava posicionado em relação ao espectador e o gesto do corpo do ator, há, se eu ouso dizer, um leve coxear e um efeito de imagem, outra vez, de “cansar os olhos”, na falta de prendedores de roupa. Enfim, é a tragédia do faux raccord. Eu compreendo muito bem que um faux raccord não é um crime e que isso não choca absolutamente ninguém. Mas não é — como na época de Acossado — porque o cinema teria se emancipado das velhas leis empoeiradas que diziam como devíamos raccordar, é porque o trabalho de Annaud não é mais de forma alguma uma prática da memória, do contínuo, do tempo, enfim, da montagem. É um cinema em que nada se comunica, porque é um cinema em que tudo é comunicado. 

O sapato é, então, uma informação do cenário transformada em um pequeno spot publicitário e sub-reptício de um lindo objeto vendável, uma espécie de lobb indochinês. Eu me surpreendo, aliás, que essa pompa de sonhos não tenha feito parte — da mesma maneira que alguns objetos promocionais, indo do carro branco à pequena garota de colecionador — de peças raras cuja lenda poderia muito bem ser contada sobre o plateau excitado do virtuoso Cavada. 

Mas, diremos, a grande maioria da imprensa e das mídias avalizaram a coisa. É infelizmente verdade. Mas, acrescentaremos, o filme funcionou e não revoltou ninguém. Isso não pode ser mais verdadeiro. É aqui que é preciso se mostrar digno da página “Rebonds” e fazer intervir um personagem doravante bem importante na vida e na morte dos filmes de cinema: nada menos que o espectador. Retomemos, é preciso, nosso sapato.

Pois se o plano é tão longo, tão mal raccordado e tão insultante para a compreensão do espectador, não é somente porque Annaud tem uma pequena ideia da inteligência de seu público, é porque ele compõe o seu filme como uma sequência de imagens órfãs em que cada uma, uma por uma, deve ser vista, reconhecida e quase que rubricada pelo espectador-consumidor.

Nessa estética, uma imagem nunca tem a sua continuação, seu mistério e a sua elucidação em uma outra imagem que lhe seria mais ou menos contígua. Uma imagem é agora visionada duas vezes, uma pelo pós-cineasta que a assina e outra pelo pós-público que a rubrica. Ela só está, de tal modo, estendida em direção à sala (e não mais articulada em relação a outros elementos do filme) pois ela é um teste de visionamento e não o compartilhamento de uma visão. (“Você não viu nada em Cholon, nada.”) As imagens estão sobre uma lista de espera, esperando ser submetidas à aprovação do público, a seu imprimatur instantâneo, à assinatura de sabe-se qual contrato de confiança. 

Sejamos sérios (bis). Falamos muito, aqui mesmo, do individualismo contemporâneo e de seus paradoxos. Um deles é nada menos que um certo apagamento do gosto em um público mais adulto, isto é, mais informado, menos ingênuo, rapidamente entediado, que navega à vontade entre as diversas primeiras escolhas débeis que lhe sopram o mercado. Esse espectador, orgulhoso da sua autonomia e consciente de seu poder, está, no entanto submetido à obrigação um pouco cômica de fazer seus os estereótipos do ar do nosso tempo e do conformismo de seu grupo social, com a condição que ele tenha o sentimento de vivê-los e gerá-los a título pessoal. 

E ele zanga-se quando lhe dizemos que mesmo que tente ser único, influenciado por ninguém (sic), não seguindo nem as modas nem as etiquetas (re-sic), ele não chega a dizer menos as mesmas esmagadoras besteiras consensuais que o seu vizinho mais próximo. Eis porque os críticos de cinema, e os críticos em geral, do simples fato que eles não amam nem os estereótipos nem os prêt-à-pensar , são uma espécie em vias de extinção. Em um mundo em que a apropriação pessoal dos estereótipos é uma condição da extensão do turismo cultural, nada mais normal.


O que é então esse close do sapato do chinês? Nada menos que um grito. O sapato grita que ele quer ser visto, visto na sua essência publicitária de sapato solitário, numa radical sapaticidade (a famosa Schuhekeit da qual fala Heidegger). Ele grita que ele quer significar algo. Ele grita que ele foi assinado e que foi Annaud que o submeteu a aprovação do espectador, à maneira de um jogo em que só avançamos à medida que damos vistos. Pior para aquele que, habituado ao cinema, já se entedia com a espera do próximo plano e se irrita que o filme, na falta de prendedores de roupa, lhe canse ainda os olhos. Pois não haverá um plano, depois. Haverá uma outra imagem que demandará, ela também, a permissão de ser autentificada imagem pelo espectador. 

O que deveria acontecer, então, aconteceu. Existe agora, face ao espectador-consumidor autônomo, uma imagem que lhe assemelha e que, como ele, repugna ostensivamente a necessidade de outras (de outras imagens, mas também do som e da duração) para suscitar esse simples efeito de cromo doméstico e social (uma espécie de Emmanuelle tocada pela qualidade literária). 

O efeito é, certamente, deplorável. Pois, transformado o mestre a montante como a jusante de um filme que a ele é comunicado imagem por imagem, o espectador é pego na armadilha de seu pobre domínio de consumidor-decodificador. Ele não tem o tempo de reconhecer outra coisa que aquilo que ele já conhece, isto é, nada, ou o mal visto, a publicidade, o cromo, o logo, o visual, enfim, o lugar comum. É, então, inutilmente que Annaud foi filmar no real Vietnã. Ele não cessou, o infeliz, de correr o risco que a sua câmera, em um momento, registrasse ao acaso algumas gramas de realidade que não estivesse pré-mastigada? 

Mas, na época das imagens e das emoções de síntese, as chances de tal encontro com a realidade se tornaram completamente mínimas. 

Libération, 31 de março de 1992 

Lire notre critique ci-dessous foi publicado originalmente no jornal Libération e republicado na coletânea La maison cinéma et le monde – 4. Le moment Trafic. Tradução: Letícia Weber Jarek.

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