O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

O dom das línguas

Por Jean-Claude Biette

O Tigre de Bengala de Fritz Lang, revisto em versão original alemã no “Cinéma de Minuit” no canal FR3, é
o túmulo suntuoso de toda uma época do cinema. É o ponto final de uma língua comum elaborada por Hollywood no começo dos anos 30 com o cinema falado. Uma língua que, durante uma dezena de anos, vai se dar os meios de desenvolver seja grandes ficções sociais, seja modelos constitutivos de gêneros cinematográficos (o policial, a comédia, o musical, o western, o filme histórico), seja grandes romances ilustrados (David Copperfield, Peter Ibbetson, E o vento levou…). Em meados dos anos 40 – depois dos anos do cinema militante no engajamento dos E.U.A na guerra – essa língua comum se dedica, de repente, ao seu próprio refinamento e tende a uma escritura mais abstrata. Constatamos uma economia repentina de informações na narração (os jornais e, sobretudo, a televisão começam a fornecer essas informações as quais os filmes podem, doravante, dispensar) e, ainda, cada filme aprende a melhor vincular o cenário e a luz com a decupagem, e descobre subitamente o silenciamento da teatralidade dos atores que, nos anos 30, deviam frequentemente carregar seus diálogos, como tiradas, nos grandes cenários. Apertamos o parafuso da narrativa, que ganha em concisão rítmica o que ela abandona de acumulação de materiais. Essa redução quantitativa de elementos, a diminuição do espaço visual e sonoro em relação a esses grandes cenários dos anos 30, o uso menos grandiloquente e mais leve da música, submeteram o conjunto do cinema hollywoodiano a uma transformação estilística. Filmes como O inventor da mocidade ou O rio da aventura de Hawks ou Clash by Night de Lang, que se situam em torno de 1951, são hoje arquétipos maravilhosos dessa abstração, dessa apertada dada não só na narrativa, mas em todos os componentes do filme.

Mais de trinta anos depois, hoje, nós podemos ainda seguir o caminho que um cineasta, com a ajuda dessa língua comum, desbravou ele mesmo para chegar ao coração do seu tema. Nessa época da língua comum hollywoodiana, o ponto de vista restritivo sobre a vida de um King Vidor, que divide o mundo em chefes predestinados e multidões infantis (com exceção do belo An American Romance), ou ainda o golpe de força de um Elia Kazan hipertrofiando o ator em detrimento da polifonia do plano, essa redução do ponto de vista sobre a vida e o cinema, que só capta de um tema os traços grosseiros, que prefere imagens unívocas à ambiguidade dos comportamentos humanos, tornou-se hoje uma lei estética ou antes um consenso temeroso. As paisagens e os meios sociais de todo o planeta são tantas estantes ilustráveis de um imenso reservatório, mas o conhecimento que nós podemos ter de conteúdos autênticos é tão fraco, o potencial de comunicação tão trucado de antemão, a massa de informações disponíveis tão absurdamente ampla, o tempo de assimilação dos conhecimentos e das experiências tão derrisoriamente inferior a sua quantidade, que, a língua comum tendo definhado no fim dos anos 50 (em parte pelo enfraquecimento de sua necessidade), é uma nova língua comum que, lenta mas seguramente, se constituiu: a língua do cinema internacional, espécie de compromisso estético entre a modernidade dos hollywoodianos e essa dos europeus das gerações recentes. Uma língua que pega emprestado, simultaneamente, a eficácia do telefilme americano, o pragmatismo preguiçoso do audiovisual europeu (do qual Rossellini foi o infeliz precursor) e as novas linguagens limitadas e referenciais do comércio (publicidades) e do espetáculo (clipes), para se constituir em suposto instrumento de comunicação universal, quando ela é só uma retórica oportunista, sempre pronta para capitalizar qualquer técnica nova.

Essa nova língua, para poder aterrissar e se fazer ouvir em todos os cantos da terra, deve, por uma necessidade vital, renunciar a todo particularismo estilístico, a toda singularidade. Ela só pode atingir esse objetivo se proibindo de manifestar o menor denominador comum de estilo, de conteúdo e de expressão: ela deve, em qualquer parte do mundo, poder ser traduzida, resumida, decupada em clipes-anúncios no canal inevitável da televisão. Aquele filme filipino deve poder ser anunciado em um canal sueco e ser instantaneamente percebido como produto internacional consumível, e reciprocamente tal filme sueco deve ser instantaneamente anunciado e reconhecido em um canal filipino como produto de mesma natureza. E para que essa língua seja compreendida e falada em todo lugar no mundo, ela só deve empregar uma única categoria de elementos, ou seja, renunciar qualquer ambiguidade. É preciso, num filme de hoje, matar um coelho de cada vez.



É o que faz brilhantemente Woody Allen. Em A Rosa Púrpura do Cairo, o cineasta passa o seu tempo evitando a lógica dramática das situações das quais ele só nos dá a superfície. Particularmente simplista é a sua maneira de apresentar os distintos papéis do personagem que desce do filme preto e branco e aquele do ator que o interpreta. O personagem e o ator permanecem vinhetas regradas por critérios estritamente convencionais que os protegem da vida e a mecânica do roteiro resolve sozinha as gags do filme no filme; a mise en scène é impiedosamente expulsa do conjunto do filme; nós estamos no audiovisual higienizado onde nada tem consistência, exceto uma brilhante demonstração de roteiro. Somente a sequência em que Mia Farrow entra no velho filme é realmente filmada: nesse momento, Allen se questiona (a qual distância se colocar? de onde filmar?) e responde de maneira convincente. É porque ele não quer, em nenhum outro momento, se questionar que o filme é como ele é: um produto puramente referencial, logo, consumível.

Há, todavia, no mundo realizadores que não se satisfazem com esse pobre denominador comum ao qual os condena a indústria audiovisual. Hoje, todo mundo sabe fazer um filme, poucos cineastas ainda ousam serem desajeitados, ou seja, esquecem de reagir como cinéfilos. Todo mundo filma bem ou, mais exatamente, quase todo mundo fala a Língua. Essa língua é uma segunda e natural natureza; pouquíssimos têm ou criam uma linguagem. Mas muitos realizadores ainda amam muito o cinema para ter vontade de fazer melhor que responder ao triste chamado do denominador comum: eles cuidam da escritura dos seus filmes para guardar para si um território pessoal, e talvez seja isso o maneirismo, a secreta revolta contra a língua ordinária, a nostalgia dos belos efeitos (luz, cenários, atores) de outrora. Mas os belos efeitos não são nada sem as belas causas. As belas causas, são simplesmente os temas. A caligrafia cinéfila, que é hoje o enobrecimento da língua ordinária, o departamento aristocrático do cinema, opera, contudo, longe das temíveis exigências de um tema e desemboca num dandismo de conteúdos.

Tratar um assunto hoje com os meios do cinema não é somente não permanecer na língua ordinária, mas aceitar matar
vários coelhos de uma  vez, falar diversas línguas. É, primeiramente, falar mais. A imperfeição é hoje um sinal de que há várias línguas em um filme, a perfeição é somente a ilusão produzida pela homogeneidade. A beleza de Detetive e Adieu Bonaparte resulta em grande parte do uso simultâneo e perigoso dessas línguas, no sentido literal no filme de Chahine, no sentido figurado em Detetive. Adieu Bonaparte não pertence à língua internacional ordinária: a enorme desordem e mesmo a confusão (frequentemente não entendemos nada dos detalhes dos acontecimentos, nem sua interação exata: mas a magia do cinema é também a de se perder sem compreender. Como dizia Bresson: não se trata de compreender, mas de sentir), tudo isso resulta da justaposição, em uma mesma cena, de informações heterogêneas, individuais e etno-políticas. Esse tipo de narrativa que mistura discursos, movimentos, travessias de espaços, misturas incontroladas das interpretações dos atores, é a maneira mais pessoal com a qual Chahine ataca o seu tema e exprime as suas facetas. O personagem de Caffarelli e a ruptura que nós assistimos entre ele e seus dois irmãos egípcios são como a parte visível de um iceberg do qual se aproximou o cineasta. Um filme não tem que nos mostrar todo um iceberg ou toda uma montanha. Um verdadeiro filme impõe de maneira surpreendente e inesquecível o relevo, a cor, a matéria, a natureza de uma pequena parte do universo. Renoir aconselhava rechear os filmes sem pensar demais na ordem ou na clareza. Chahine filma como se ele não precisasse receber esse conselho e nos entrega um filme bem imperfeito mas inesquecível. Os filmes televisivos tão ambiciosos de Rossellini nos entregavam a informação sobre as coisas, mas não o sentimento que podia lhes devolver a vida.




Em Detetive, uma trama mabusiana é submetida ao trabalho de recomposição de uma realidade, ao mesmo tempo, em expansão infinita e autônoma, como se toda escória romanesca devesse ser imediatamente transformada em novo elemento de realidade (o aspecto Rouletabille
[1] desse novo “Mistério do quarto amarelo” torna-se, através de uma operação poética, ao mesmo tempo o personagem-ator Léaud e planos de bolas de bilhar que rolam). O filme consegue exprimir não só a totalidade das magras informações da trama policial de origem, mas ainda nos mostra as operações pelas quais essas informações podem se tornar afetos e sugerir todo um mundo. Em Europa 51, filmando Ingrid Bergman, Rossellini fazia o retrato de Simone Weil. Je vous salue, Marie, por contaminação do cineasta pelo seu tema, fala a linguagem de Simone Weil. Detetive, que em princípio não tem um tema mas um roteiro, adota, através do método paranoico crítico, a língua de hoje e, por essa via, encontra seu personagem central, Johnny Hallyday, duplo de Michel Subor, “Petit Soldat”, vinte anos depois, e achando seu personagem, ele encontra seu tema: a realidade enfim expandida que vive seu tempo de vida. Mabuse desapareceu: a Máfia e a circulação do dinheiro ameaçam e ferem intermitentemente. Detetive, como Amerika-relações de classe, fala várias línguas. Nesses dois filmes, aliás, os autores amam espiritualmente e sensualmente cada personagem: os homens tanto quanto as mulheres. (Amar assim um homem e uma mulher é uma prova capital para um cineasta: ela consiste em atravessar o espelho dos seus gostos sexuais. Esse critério, tão insolentemente irracional, é quase o único que permite estabelecer a autenticidade e grandeza de um cineasta). Então, os personagens têm seus relevos, suas cores, suas matérias, suas naturezas: eles são verdadeiramente uma parte ínfima do universo. A língua ordinária do cinema é, ela, narcisista.

[1] Referente ao personagem Joseph Joséphin, apelidado Rouletabille, do romance policial Mystère de la chambre jaune de Gaston Leroux, publicado em 1907.

Le don des langues
foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinema, n° 347, Julho/Agosto de 1985, e republicado na coletânea Poétique des auteurs. Tradução: Leticia Weber Jarek. 

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