O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Fantástica realidade


Por Jean-Charles Fitoussi

"As coisas que existem são importantes."
Paul Claudel, O Pão Duro

Pode-se julgar um filme à luz da realidade que este nos priva durante a projeção: enquanto estou na sala diante da tela, de qual realidade exterior sou privado? O filme que me foi apresentado em lugar da vida vale esta privação? É evidente que, se não damos nenhum valor a tal vida, qualquer filme será o bastante - exceto aqueles cujo objetivo seria precisamente o de devolver aos espectadores a realidade da qual gostariam de se abstrair comprando o ingresso. Mas se a existência é concebida como profundamente desejável em si mesma, e já rica, complexa, fabulosa, trágica o bastante sem que o cinema nela se misture, então o êxito cinematográfico se torna mais raro e precioso: o cinema deve então fazer melhor que uma realidade contudo já perfeita, já feita da melhor forma. Que faça simplesmente tão bem quanto, e nos consideraremos felizes.

Distinguem-se então duas maneiras de lograr um filme: a que consiste em desvalorizar a realidade extra-filme, de modo que esta fique apequenada diante das potencialidades estupefacientes da imagem e seus efeitos - arte dos narcóticos. Dedicamo-nos neste caso a fabricar filmes "compensatórios", valorizando tudo o que não tem chance alguma de existir fora da tela, tais como os falsos desejos inumeráveis (desejos de irrealidades, que levam somente a falsas alegrias) sobre os quais falava Charles em O Diabo Provavelmente, de Robert Bresson, ou que mostra Mizoguchi nos Contos da Lua Vaga - deslocamento do desejo em coisas inexistentes que, fazendo-o prisioneiro de um fantasma, conta justamente dentre as táticas do diabo (e do qual o cinema hollywoodiano atual não detém o monopólio).

A outra via, menos simples, menos imediatamente rentável, consiste antes em ressaltar as qualidades e o gosto da existência, sua magia própria - que os filmes ou outras representações do primeiro tipo se esforçam em apagar. Nesta perspectiva, a arte do cinema - que pode se aparentar à arte culinária por sua faculdade de tornar perceptível (e inesquecível) qualidades e sabores que sem ela passariam despercebidos - requer do cineasta, no mínimo e de partida, um desejo de percepção dessas qualidades, um "apetite de realidade" associado a um "bom estômago".

É o gosto ou o desgosto da realidade (ou, o que dá no mesmo, da existência, da verdade) que faz, para mim, o bom ou o mau cineasta. E que me faz, na primavera de 1999, preferir Três pontes sobre o rio (e a obra toda de Jean-Claude Biette) a Romance ou O vento da noite (e toda a obra de Catherine Breillat ou de Philippe Garrel) - independentemente do gênio de cada um: há bons e maus gênios.



Será preciso retornar ao gênio próprio de Jean-Claude Biette. Tudo serve ao seu cinema que não tem senão de receber e detalhar, seus filmes desenhando um receptáculo aberto a todas as brincadeiras, todas as esquisitices e todos os charmes da existência. Charmes que fazem o título de um filme de Grémillon - outro cineasta que este mês de abril sob as chuvaradas de março nos terá gratificado.

Tudo, em Grémillon, cineasta singular e complexo, músico, autor de filmes que testemunham uma acuidade extrema da sensibilidade, uma percepção aguda dos seres. Mesmo a escuridão: pois há nele uma força tal de aprovação que o desejo e a vontade triunfam mesmo sobre o pior. A fragilidade da vida e do amor, seu caráter efêmero, ou submetido ao envelhecimento, não anula nem a vida nem o amor, mas aumenta-lhes ainda mais o valor. Os heróis de seus filmes ganham na medida daquilo que aceitaram perder. É assim com o casal Gauthier em Le Ciel est à vous, que decide liquidar tudo (incluso o piano da filha) para concluir a fabricação do avião que lhes dará o céu. É assim, no seio desse casal, de Pierre (Charles Vanel) que ama sua mulher Thérèse (Madeleine Renaud) ao ponto de aceitar a ideia de poder perdê-la deixando-a voar. A graça não se obtém senão ao preço do desespero, da derrelição. O anúncio do êxito de Thérèse confunde-se com o linchamento prometido a Pierre: contra a parede, acreditando ter perdido Thérése para sempre, ele enfrenta a multidão da vila que imaginamos tomada pela raiva nascida da reprovação moral - mas que, na verdade, clama o nome de Gauthier para anunciar-lhe a boa notícia, o êxito de sua esposa. Também ainda o aristocrata Kériadec (apelidado "Patas Brancas" por causa de suas polainas, dando o título a este filme magnificamente composto) que, prestes a botar fogo em seu castelo de modo a acabar consigo mesmo segundo a divisa de sua linhagem "Antes morrer que fracassar", prefere contudo a vida e aceita o amor que se lhe oferece, malgrado todos os inconvenientes (neste caso, ao menos alguns anos de prisão) - permitindo-se lançar à armadura vazia de seu ancestral, rebelde em seu tempo: "E aceitar, você, já pensou nisso?".

Não se deve estranhar se essa primazia dada à realidade, à aceitação do que é dado, pôde produzir uma obra suficientemente distante do realismo ao ponto de que nos tenhamos sentido obrigados em apor-lhe o corretivo "poético". Pois o conhecimento do real compreende o reconhecimento de seu caráter eminentemente fantástico, "esse fantástico, escreveu Antonin Artaud, que percebemos, cada vez mais, ser na verdade o real". Do mesmo modo, todo filme realista (que se refere à realidade) deveria ser fantástico - e reciprocamente. A potência que faz a especificidade do fantástico de Grémillon se deve em grande parte, e paradoxalmente, a sua discrição. Assim como a pintura de André Masson, tal como figura no último filme do cineasta, não se dá à primeira vista como uma representação do real, o fantástico de seu cinema pode à primeira vista passar despercebido. Nessa última obra, o comentário falado de Grémillon convida o espectador, não somente a reencontrar a realidade nas telas do pintor, como a perceber na realidade os elementos abstratos do quadro. É assim que no decurso desse filme, conquanto breve a realidade mais ordinária (uma árvore, uma cascata, arbustos e formigas) vem a se metamorfosear, a tornar-se outra: como a árvore oca que, em contato com a música composta pelo cineasta, torna-se flauta. André Masson ou les quatre éléments é exemplar na medida em que resume e condensa toda a arte do cinema de Grémillon: transformar (aguçar) o primeiro olhar e fazer perceber, numa mesma realidade, um ser outro. Em Le ciel est à vous, o professor de música convida os circunstantes a discernir as diferenças de timbre entre dois pianos. As orelhas não-treinadas são evidentemente incapazes para isso, e têm as duas sonoridades por idênticas: percebem um Lá onde há dois. Assim como L'Etrange Monsieur Victor, de maneira um pouco mais trivial que nos filmes que o seguem, o papel principal interpretado por Raimu contém na realidade dois seres (ou dois desejos) dos quais um, fora da lei, é condenado a permanecer secreto durante toda a duração do filme, o que tem por efeito aumentar cada vez mais o mal-estar desse homem. Sua libertação será obtida apenas através do reconhecimento efetivo desse outro em si, e implicará uma nova prisão, desta vez nas prisões do Estado. O que não é nada perante a prisão anterior, o que explica o sorriso do Sr. Victor que conclui o filme - sorriso da reconciliação consigo, da explosão da verdade, seja o preço qual for.

Não há filme de Grémillon que não leve o espectador a perceber o outro escondido no mesmo, a modificar seu olhar de tal modo que esse outro apareça sob os traços do mesmo, resultando numa visão do ser sempre mais rica de nuances, polifônica, única e múltipla ao mesmo tempo. Esse jogo de metamorfoses explode e se generaliza em Lumière d'été, filme virtuoso que vê transformar-se todos os seus elementos: da paisagem montanhosa ao canteiro de obras, não esquecendo nenhuma das personagens. É preciso ver como essa paisagem exterior - na medida da repetição "idêntica" de certos planos (a panorâmica ao som da trompa, a avalanche, etc.) - torna-se paisagem interior, como em Patrice, o rico proprietário (Paul Bernard), o masculino deixa espaço ao feminino com o contato de Michèle (Madeleine Robinson), cuja feminilidade desaparece proporcionalmente e exibe sua ambiguidade. Le ciel est à vous revela uma dupla e feliz metamorfose, como uma permutação: o marido inválido (o "braço" quebrado) troca de papel com a esposa; o marido "torna-se" esposa, a esposa “torna-se” marido.



A manifestação dessas "diferenciações" deve muito, certamente, à notável escolha dos atores e à sua direção. Também não é menos devedora do efeito criado pela utilização da música, a qual, por sua natureza essencialmente "outra", estrangeira à realidade a qual se sobrepõe, parece a mais apta em fazer surgir o fantástico: sugerindo sem nada dizer ou mostrar a existência de um outro plano de realidade, inoculando na imagem sua própria "surrealidade". O final de Remorques, como o começo de Lumière d'été, nada tem a invejar, neste aspecto, à árvore-flauta de André Masson, nem mesmo à Terra sem Pão, de Luis Buñuel. Na abertura de Lumière d'été, um simples som basta para transtornar a percepção de uma paisagem. Esse som, de início não identificado e, depois, no fim da panorâmica, reconhecido como de uma trompa que previne o perigo da explosão das minas, esse som que, por mínimo que seja (uma só nota, duas durações, como no código morse) possui contudo o efeito propriamente musical de alteração do que está dado, convida a ouvir todo som, seja qual for, como uma música. Convite que a banda sonora dos filmes deste músico não cessará de reiterar, incluindo em sua sinfonia generalizada mesmo os murmúrios da matéria.

Esse reconhecimento do outro sob o exterior do mesmo, essa percepção de uma realidade sutil (esta mulher é "na verdade" um homem, este homem faz as vezes de mulher, esse exterior é interior, etc), se elimina as ilusões ocasionadas pela grosseria de um olhar velado pelas representações convencionais, interdita ao mesmo tempo toda fabulação, toda escapatória, todo recurso: pois uma vez percebida a realidade de perto, uma vez desnudado o ser, não resta senão aceitá-la verdadeiramente, os olhos abertos (caminho difícil aceito por André em L'Amour d'une femme), ou morrer (Patrice em Lumière d'été).

Tal amor pela realidade nua, trágica, múltipla, coloca Grémillon no firmamento dos cineastas - e lhe permite atribuir à sua arte, segundo seus termos, uma "função de constatação" assim como um dever, todo filme bem-sucedido tornando-se documentário, de "dar conta" - da crueldade, das sutilezas e dos charmes da existência.

Fantastique réalité foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n°10, verão de 1999, pp. 81-84. Tradução: Eduardo Savella.

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