O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Uma mulher descasada, de Paul Mazursky (1978) (fragmento)



Por Murielle Joudet


Woman’s picture e comédia romântica

Uma mulher descasada é belo na sua aridez paradoxalmente acolchoada, nessa maneira que ele tem de gozar do seu mal-estar, de se lamentar de estar vivo – característica importante do solteiro. Há o trauma, típico do woman’s picture, que chega rápido e abandona Erica numa zona cinzenta: ao perder seu marido, ela perde seu próprio reflexo e como todo grande woman’s picture é nesse momento, nesse momento sem amor que precede a traição que uma definição do feminino pode nos interessar: isolar o feminino longe do masculino e olhar o que ele pode bem se parecer.

Notaremos, de passagem, o título pleno de negatividade: An unmarried woman, lembrando a Unknown woman de Ophuls, há nesse título uma parte de orgulho e de reivindicação, e então, algo próprio aos títulos dos woman’s pictures: o ato de designar uma mulher, de isolar uma trajetória (Norma Rae, Annie Hall, Wanda, Three women, Another woman). Contudo, a intransigência do classicismo (isolar o feminino a todo preço) se perde aqui em proveito das conclusões da comédia romântica e de uma forma de compromisso fechado com o realismo psicológico: a heroína precisa ser amada, depois de uma longa passagem no vazio, ela reencontra o amor.

Mazursky, biocineasta

Essa sábia mistura de problemas indissociavelmente sociais e amorosos acaba arrancando o woman’s picture da sua essência intimamente melodramática para o levar a uma forma de prosaísmo, estamos aí num tratamento que se aproximaria mais de uma forma de cinema terapêutico que convive com a retórica otimista do self-improvment. Poderíamos forjar o termo biocinema e qualificar Mazursky de biocineasta na medida em que o afresco romanesco, por vezes executado durante décadas, do woman’s picture concerne daqui pra frente um momento muito curto da vida de uma mulher e se focaliza na gestão da sua vida privada – o amor sendo uma das categorias dessa gestão.



Os melodramas hollywoodianos se passavam num clima etéreo, no limite do abstrato, a pobreza e a riqueza são aí tratadas abstratamente, como cenários. An unmarried woman é um “zeitgeist movie” na medida em que o retrato das mulheres estabelece, por contraste, aquele da sociedade. Nós percebemos à que ponto uma série como Sex and the city deve enormemente ao filme de Mazursky: o grupo de amigas que rodeia Erica obviamente inspirou o bando de amigas de Carrie Bradshaw. É o mesmo desencanto feminino que se lê nos rostos: as mulheres, feridas, mas fortes, por toda a sua experiência junto dos homens e de décadas de cinema americano, desconfiam deles ao mesmo tempo em que percebem dolorosamente que precisam dos homens, que só falam deles. Todas as discussões se fazem neste vai-e-vem entre atração e repulsão (estamos numa relação viciosa), e novamente Mazursky tem algo do visionário que dá, mais do que nenhum outro, a experiência de uma situação de celibato moderno.

A solteira e a solteirona

Exceto que a solteira substituiu a solteirona. A solteirona do classicismo hollywoodiano tinha para si que reivindicava heroicamente um estado considerado como marginal. Vendo os woman’s pictures da época surpreende-nos constatar a fraqueza dos personagens masculinos. É preciso compreender aqui uma outra acepção do woman’s pictures como filme reservado às mulheres, onde os homens não são nada além de pálidas figuras que atravessam o filme temporariamente. A não-conjugalidade poderia então ser compreendida positivamente, poderíamos escolher a solidão de um gesto vitorioso. Com Mazursky aparece a ideia do celibato como estado de marginalidade temporária, mas vertiginoso (porque rico de possibilidades e ainda assim inquietante) que fará todo o mel ideológico de Sex and the city.

A solteira, ao contrário da solteirona, passa a estar numa relação de flerte permanente com o sexo masculino: uma vez que Erica é deixada por seu marido, New-York se torna um campo de caça. Mais tarde é Carrie Bradshaw que considerará New-York como “a cidade de dez milhões de solteiros”. Esta é talvez toda a diferença entre a solteirona e a solteira: a primeira exprime sua recusa em estar no mercado do amor e do sexo, ela defende uma definição do feminino que se definiria longe dos homens, sua vida se passará fora do amor conjugal, enquanto que a solteira é talvez a figura paradigmática do amor como vício, ao mesmo tempo voluptuoso e alienante.



Se Sex and the city é uma série que oscila entre cinismo e romantismo, Mazursky permanece fundamentalmente agarrado à ideia de romance, do amor como substância em excesso, onde ele é vivido como uma partilha de interesses comuns em Sex and the city. É a muito bela cena final de An unmarried woman na qual o novo namorado pintor de Erica a abandona no meio da rua com a tela gigante que ele acaba de lhe dar. A tela, intransportável, materializa o presente do amor, no seu exagero e seu excesso, que literalmente envergonha Erica. De que maneira a comédia romântica futura se distanciará dos woman’s pictures? De uma forma que as heroínas femininas têm de abandonar toda a ideia de sacrifício (por um homem, um filho, uma carreira) em benefício de uma concepção bem fundamentada de bem-estar. O woman’s picture pós-clássico e a comédia romântica, na sua vontade de restaurar o eu, de filmar as heroínas que sentem que merecem ser felizes, perderão alguma coisa do fogo sagrado e mórbido dos woman’s pictures clássicos, uma forma de inflamação e de saciedade de um instinto de morte tipicamente feminino que não permite de forma alguma um amor destinado a restaurar o eu.

Woman's pictures 70's-80's #1 An unmarried woman de Paul Mazursky (Une femme libre, 1978) foi originalmente publicado no blog The lost weekend (http://lostwknd.blogspot.com/) em 20 de janeiro de 2015. Tradução: Miguel Haoni.

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