O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Silvia Prieto (Martín Rejtman, 1999), as palavras e as coisas



Por Paula Mermelstein

São muitas as vezes que ouvimos o nome da protagonista de Silvia Prieto, Silvia Prieto. Logo perceberemos que a repetição trata-se não de um estudo acerca de sua protagonista, mas do nome que a precede; o filme parece ser menos sobre a pessoa Silvia Prieto (Rosario Bléfari) do que sobre o “dar nome às coisas”. Afinal, como descobrimos junto com Silvia ao longo da trama, ela não é a única Silvia Prieto existente. E este princípio, de que as palavras vem antes das coisas, parece ditar o modus operandi do filme.

Não há qualquer preocupação em um aprofundamento das personagens, formadas por um amontado de informações e detalhes superficiais. Chamar de indiferença soa frio demais, mas há um desprendimento de ordem mais leve em Silvia Prieto, tanto no que diz respeito a cada indivíduo ali representado, quanto às suas relações intercambiáveis. As personagens são introduzidas por meio destas relações entremeadas: Silvia começa a namorar o ex-marido de Brite uma vez que a mesma começa a namorar o seu - sem qualquer ressentimento de nenhuma das partes, pelo contrário, por sugestão da própria Brite.

Com esta mesma leveza se dá este tratamento bidimensional das personagens. Achatadas, assim, figuras e palavras equivalem-se em peso e podem permutar quase indistintamente; com ênfase, aqui, no “quase”, pois se para o filme estas trocas acontecem com leveza, é justo de sua estranheza para o espectador que emerge o sentido cômico. Se em dado momento descobrimos que existe mais de uma Silvia Prieto, o mesmo acontece com a palavra “ex-marido”, que inicialmente se refere ao ex de Silvia, Marcelo Echegoyen (Marcelo Zanelli), mas logo é também repetidas vezes proferida por Brite (Valeria Bertuccelli), em referência ao seu próprio ex, Gabriel Rossi (Vicentico). Brite, por sua vez, é simplesmente chamada pelo mesmo nome da marca para a qual trabalha distribuindo amostras de sabão em pó.

O mesmo vale para a palavra “abajur”. A princípio, surge a partir do objeto, um abajur feito de garrafa por Silvia para presentear sua xará. Logo, descobrimos haver sido o apelido de Gabriel nos tempos de escola. Sem o motivo por trás da brincadeira nunca ser explicitado, uma vez que a palavra se desprende do objeto e associa-se ao personagem, irá gradualmente se proliferando nesta rede de trocas do filme, para o desespero do ex-marido de Brite, cada vez mais incomodado com sua menção.

Há ainda um terceiro casal, Martha e Mário, que não entra no troca-troca e, como o abajur, adentrará a trama aos poucos. Sua primeira aparição se dá em um programa de televisão, voltado ao casamento dos participantes até então desconhecidos entre si. Primeiro vemos Martha descrever seu homem ideal, e depois são apresentados seus pretendentes, dentre os quais se encontra Mário, quem Marcelo reconhece da escola. Nas próximas aparições de Mário, em carne e osso, ele já estará noivo, ainda que não pareça se dar muito bem com Martha, que continua repetindo suas expectativas para um homem ideal. A palavra não apenas dá início a este encontro amoroso mas continua pairando sobre o casal, como uma assombração.

O signo mais emblemático desta rede de trocas é provavelmente o paletó da Armani. Quando Silvia viaja a Mar del Plata, encontra um homem em um café que lhe encobre com seu paletó, “um Armani”, por conta do frio. Silvia volta à Buenos Aires com o paletó, o qual o homem tenta repetidas vezes recuperar ligando para ela. Em dado momento, Silvia dá o casaco para Gabriel, que acaba o vendendo para Marcelo por 75 pesos. Por fim, Marcelo o veste em um jantar com Brite, onde o dono original do Armani o encontra, mas para reavê-lo deverá pagar 100 pesos.

O valor que o paletó adquire em sua jornada de mão em mão é arbitrário e circunstancial; não há um fio condutor guiando Silvia Prieto, mas objetos, nomes e personagens se chocando. Enquanto a personagem de Brite ganha nome de marca, o paletó, que passa a ser referido simplesmente como Armani, ganha nome de gente. A atenção do filme não se volta para nenhum grande sentido, mas para os pequenos detalhes: as Silvias Prietos, os ex-maridos, os abajures, os paletós Armani, as amostras de sabão em pó Brite.

Um comentário:

  1. Atenção: "Silvia Prieto" é o filme da semana no Cineclube da Madonna:

    https://forms.gle/giRrNrxuq259rNN76

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