O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Camille Nevers / Sandrine Rinaldi sobre a Diagonale


Entre os dias 9 e 11 de outubro de 2024, Miguel Haoni ministrou o mini-curso "Arquipélago dos Amores: Introdução ao cinema da Diagonale" na Universidade do Estado do Paraná. No último encontro, os estudantes conversaram com a crítica e realizadora francesa Sandrine Rinaldi (também conhecida como Camille Nevers) sobre a produtora de Paul Vecchiali. 

Rinaldi escreveu sobre todos os principais cineastas da Diagonale e dirigiu Michel Delahaye no seu primeiro filme (Mystification ou l'Histoire des portraits, 2004) e Marie-Claude Treilhou no segundo (Cap Nord, 2007), dois dos personagens principais desta história

Suporte técnico e gravação: Victor Cardozo 
Tradução consecutiva: Letícia Weber Jarek e Miguel Haoni

“Como Você Sabe”, pequena maravilha de delicadeza e humor

Por Axelle Ropert

Um equilíbrio miraculoso entre comédia e melodrama. Uma inteligência sem igual no entendimento dos sentimentos humanos. Um esplendor.

Não se engane nem com o pôster e nem com o título que vendem uma comédia anônima: Como Você Sabe é pura e simplesmente o filme mais maravilhoso do ano que se inicia.

James L. Brooks não é um desconhecido, mesmo se ele filma pouco (seis filmes em vinte e sete anos), sem dúvida por causa da minúcia absoluta de seu cinema, devoradora de tempo.

Cineasta refinado, sim, o que não faz dele o cineasta de cabeceira da inteligentsia, mas sim um padrinho secreto do entretenimento americano (Apatow o venera), um pouco como McCarey e Rohmer inspiram o respeito à todos: pode-se até não gostar dos filmes deles, mas a arte deles implementam uma forma misteriosa e indiscutível de integridade.

As grandes palavras são lançadas, de modo que Como Você Sabe avança minuciosamente e só revela pouco a pouco a sua imponência. Uma esportista em declínio é expulsa do time nacional de softball. Ela conhece um jogador de beisebol em plena ascensão e um homem de negócios em queda livre. Quem ela escolherá?

Reese Witherspoon interpreta a chihuahua esportiva, Owen Wilson é o atleta idiota e ultra egoísta, Paul Rudd é o filhinho de papai (Jack Nicholson) sobre o qual o mundo está desmoronando.

Vivacidade feminina, loirice masculina idiota, mas vigorosa, morenice masculina angustiada, mas terna, se esfregam constantemente umas nas outras, agitadas por uma questão que o espectador, afinado, identificará ao mesmo tempo que os personagens.

A questão é profundamente americana: com qual dosagem de otimismo e pessimismo devemos encarar a vida? No fundo, mais do que uma escolha entre dois homens, é isso que Reese Witherspoon deve escolher, heroína rohmeriana que teria esquecido a metafísica (europeia demais para o filme) em prol da psicologia prática (estamos nos Estados Unidos). Ela está em uma encruzilhada em sua vida: deve escolher o homem otimista, reconfortante, mas bruto, ou o homem pessimista, inteligente, mas angustiado? Ao final das duas horas de filme, saberemos.

Assim, enquanto a maioria das comédias atuais adota um ritmo aleatório, os filmes de Brooks avançam em função de questões que não cessam de se metamorfosear para encontrar sua melhor fórmula: quando a melhor fórmula é encontrada, o filme pode parar.

As cenas são constantemente corrigidas: se Reese Witherspoon anuncia-se de início como uma mamãezinha (ela desaprova o tom feminista de Kramer vs. Kramer), ela diz alguns instantes mais tarde que a ideia de formar uma família a faz fugir.

É sempre na segunda vez que a verdade advém, porque para obter a exatidão, é preciso tempo, é preciso descascar as palavras. E do tempo, o filme requer: uma duração orgânica se desdobra a fim de que a ficção possa finalmente brilhar, inteiramente exposta em seus dados.

É aí que as coisas se complicam, pois o otimista e o pessimista não deixam de se esforçar para ser um pouco menos: Owen Wilson tenta matizar com preocupação a sua beatitude, Paul Rudd esforça-se para oferecer um rosto sorridente. Como Você Sabe é uma comédia de esforços virtuosos onde não se trata de comportar-se bem, mas de ser o mais justamente feliz: uma questão de sutileza infinita, tipo, como você sabe?

Os personagens brooksianos são pessoas que não conseguem deixar de ser o que são e que te fazem rir com a teimosia de seus caráteres. Mas eles também são personagens que fazem qualquer coisa para deixar de ser o que não conseguem deixar de ser, sendo que esse esforço de mudança é tão comovente quanto os primeiros passos de uma criança: a cada vez, é como se uma nova era começasse, talvez .

A vitória é sempre frágil, sujeita a uma recaída, e estremecedora. No mais, o filme é super divertido (atenção ao “good talk” de Owen Wilson) e não vamos lhe dizer evidentemente quem sai vitorioso, ou melhor, feliz.

« Comment savoir », petite merveille de finesse et d’humour foi publicado na revista Les Inrockuptibles, em janeiro de 2011 ("Comment savoir", petite merveille de finesse et d'humour | Les Inrocks). Tradução : Ezequiel Antônio da Silva Stroisch.

Tudo começa em canção…






Por Gilles Esposito

Como (ainda) viver juntos? Poderíamos acreditar que no cinema essa pergunta interessante só encontraria resposta nas grandes missas ao humanismo rançoso (de A voz do coração aos piores filmes independentes americanos) ou no culto ao passado (do Crime de Monsieur Lange à cavalaria de John Ford). Ora quatro filmes recentes (estreados especificamente na França entre 26 de janeiro e 9 de março deste ano) fazem-se ouvir em diferentes modos, entre Hollywood e Paris, de abordar frontalmente a ideia de comunidade: ilustração do último (?) gênero congregador (Meninas malvadas), reativação não nostálgica dum outro (Espanglês), deslocamento da Cinecittà ao mar da China (A vida marinha); enquanto Les Métamorphoses du choeur perscruta a inquietante familiaridade dos rituais do 13º arrondissement, onde reside a forma primitiva do coletivo, o canto coral. Afinal, a música pode não somente acalmar os ânimos, mas também aplicar, como os lamentos das sereias, o bálsamo benfazejo do esquecimento.

Another teen movie: Meninas malvadas

Em tempos de gentileza proverbial e de desdramatização forçada, o “filme de campus” parece ter se tornado o último refúgio da crueldade e da dramaturgia aferente. Universidades e escolas representam por excelência o ponto de tensão máxima no qual uma comunidade, agregada pela escolarização obrigatória e o olhar dos vigilantes, deve se virar com o caráter profundamente desigual da puberdade, entre uns que têm corpos recém-saídos da infância e outros com as anatomias já formadas. Nos últimos anos ainda se viu a estreia do belo filme fantástico coreano Memento mori e de um grande número de comédias americanas, chegando ao ultraje autoparódico de Não é mais um besteirol americano (título original: Not Another Teen Movie). A crítica que saiu no Technikart define, no entanto, Mean Girls (ou Meninas malvadas) como um espécime terminal de um gênero moribundo, outrora triunfante e que representa apenas uma porção infinitesimal da produção US. Ainda que se apoie no best-seller Queen bees and wannabees, guia sociológico que explica às mães de família desamparadas o impiedoso universo escolar do ensino médio aonde elas veem partir todas as manhãs suas filhas, vestindo jeans de cintura baixa e calcinha à mostra, é certo que o filme despreza qualquer princípio moralizador.

Mas, longe dessas visões eruditas, fiquemos com um belo otimismo. O longo travelling que passa em revista as mesas do refeitório e os grupos ali reunidos (belas blacks esnobes, nerds espinhentos, losers, atletas, etc.) vem menos da antropologia estrutural do que da combinatória de possíveis relações entre os personagens, fonte inesgotável para a ficção. O final unânime não engana ninguém — a chegada de uma nova geração de garotas adolescentes dará certamente lugar a um outro filme, e assim sucessivamente. Basta um novo peão no tabuleiro para dar início a uma outra partida… ou batalha; e aí está a ideia, a única, de Meninas malvadas: trazer um personagem de “home school”, educado por seus pais, para desembarcar no ensino médio sem conhecer o mínimo dos rituais escolares. Nada de surpreendente já que esse “another teen movie”, o filme a mais, funciona num esquema sutil de regra e exceção, de mudança de tempo e de tonalidade — A cena a ser feita, a sequência musical. A heroína destitui sua rival, a abelha-rainha, durante a festa de Natal na qual, após um incidente técnico, uma versão Rn’B de Jingle Bell se transforma em coro a cappella. Mas verdade seja dita: não se trata de um jogo qualquer com os códigos, do jeito que gostam os teóricos do gênero; se há referências, elas não levam a reflexividade muito além do que o filme de um estúdio concorrente que estreou alguns meses antes. Assim como a versão disforme de Dancing With Myself de Billy Idol, que é gritada nos créditos finais, não se quer brincadeira ou revival eighties; destinada a um público que, com razão, nem se lembra dos hits do ano passado, essa interpretação malandra de uma canção ruim só está ali para nos guiar até a saída da sessão. Seríamos bobos de não aproveitar.

O monstro de mil faces: Les Métamorphoses du choeur

Bobos seríamos também se deixássemos passar a radical simplicidade do dispositivo do documentário Les Métamorphoses du choeur de Marie-Claude Treilhou, totalmente composto por registros de ensaios de um coral. O espanto vem somente após um tempo, frente à extraordinária variedade de fisionomias e jeitos dos membros do que nos dizem ser um Conservatório de música, aparentemente vindos de todas as camadas da sociedade. Mas aqui também a etnografia fácil é combatida graças às tomadas de partido formais da realizadora. As panorâmicas que descrevem pacientemente os diferentes grupos de cantores (ou “elementos de coro”) aproximam-lhes os rostos uns dos outros enquanto também circunscrevem a área comum onde eles deverão coexistir em harmonia. E sobretudo, sempre que possível, cada corista é enquadrado da cintura pra cima a fim de melhor resolver a oposição entre a origem das vozes angelicais (o peito) e as caras de quem não está em ação, o diferencial a ajustar-se entre o fôlego e o canto. O filme adquire então um clima de reportagem sobre uma seita estranha — os mestres da música sucedendo aos Mestres loucos? —, particularmente com os exercícios lúdicos propostos às criancinhas a fim de que tomem consciência de sua respiração e possam controlá-la. Ora se o fôlego é um “aquém” do canto, a parte que vai além é a palavra, que ressoa pela primeira vez quando a capitã do coral explica a seus pupilos o texto da obra, sem saber-lhe o significado eles não poderiam dar uma interpretação satisfatória. Sendo um filme sobre a arte, é do tipo que consagra integralmente sua duração à busca obstinada do elo justo entre a voz, o canto e o sentido: a matéria, a obra e a ideia.




Mas o filme é ainda algo a mais. Ele se encerra de fato no instante exatamente anterior à performance tão ardentemente ensaiada, na sala de concerto onde estão reunidos pela primeira vez os vários “elementos de coro”, como pedaços de tecido e de carne que, juntos, fundem-se numa nova criatura Frankenstein. É, no entanto, o oposto da ficção científica em cuja direção o filme de campus, essencialmente individualista, inclina-se ao subordinar mil corpos diversamente constituídos a uma só cabeça pensante, como a ruivinha heroína de Meninas malvadas. Mais como um filme de terror clássico que, como sabemos, só faz surgir o monstro em último lugar; o plano conjunto final descobre um corpo gigantesco, unificado pelo canto, que carrega uma infinidade de rostos díspares. Compreende-se assim a pertinência do título escolhido por Marie-Claude Treilhou: Les Métamorphoses du choeur é um grande filme fantástico.

Uma certa qualidade de silêncio: Espanglês

Por outro lado, não há apego paradoxal a esse ou àquele gênero em Espanglês, que se inscreve já de saída na linhagem de comédias familiares de Vincente Minnelli, como em Papai precisa casar. Essa crônica da vida doméstica de uns hipsters californianos, subitamente perturbada pela chegada de uma empregada doméstica estritamente hispanófona e de sua filha, foi recebida na França com um silêncio ensurdecedor da crítica que resultou num fracasso comercial retumbante. Entretanto, além de suas qualidades indiscutíveis (escrita elegante, diálogos brilhantes), fica uma pergunta importante: por que é tão bom? Aqui, mais uma vez, podemos propor uma hipótese musical.




Se o filme de James L. Brooks não fica em dívida com sua herança minnelliana, é porque ele retoma o emblema dessa tradição, a famosa “cena a dois” em que o autor de Brotinho indócil se fartava ao confrontar as gerações com todas as combinações possíveis: pai/filha, mãe/filho, etc. Ora aqui o roteiro se bifurca várias vezes, sempre adiando a descoberta de seu verdadeiro tema com uma liberdade narrativa tão exemplar que cada integrante da família recebe um tratamento igual. O que se segue é um verdadeiro carrossel de duelos verbais, que obedece a uma composição rigorosamente coral. E se por acaso uma sequência comporta três personagens ou mais, o jogo de traduções simultâneas a remete ao mesmo princípio, da entrevista de emprego terminada graças a um rolar de “rrr” triunfal à excepcional discussão entre o pai e a empregada, que é de fato uma “dupla cena a dois”. Intérprete de improviso, a filha da empregada concilia aqui duas conversas paralelas, e sua hesitação contínua entre “eu” e “ela” estabelece a pulsação metronômica que faz, por assim dizer, espiralar a briga no espaço até que se atordoe.

Todavia, dois tipos de sequência ainda são necessários para que todas as harmonias se desenvolvam. A primeira coloca em cena a avó, que sua nora obstinadamente apresenta usando seu nome de quando era cantora famosa. Ela canta seus antigos sucessos com seu neto, às vezes num canto do quadro ocupado por outra dupla — procedimento que dobra mais uma vez o sistema da “cena a dois” mas que sobretudo lhe fornece o contraponto que faz ressoar o conjunto, como numa câmara de eco. O segundo tipo diz respeito aos “simples” encontros tão adiados entre o pai e sua empregada. Eles se olham estupefatos e mudos, fazendo surgir uma certa qualidade de silêncio (componente fundamental da música, há que se lembrar) que faz com que seu improvável amor seja gritantemente verdadeiro. Nada mal para uma obra-prima polifônica que já foi julgada por aí como uma barulheira desinteressante.

Pequenos arranjos com a crença do espectador: A vida marinha

Se Espanglês se valia de uma cena intimista e a submetia a um desenvolvimento orgânico, A vida marinha escolhe a opção inversa, encontra as alegrias da narrativa de formação ao proliferar personagens e peripécias. A matriz do filme de Wes Anderson é então o plano vagamente godardiano que mostra um corte longitudinal do barco, onde empilham-se as diferentes cabines. A primeira casa a vir à tona no Cinemascope são as quadradas imagens oceanográficas rodadas por Steve Zissou, avatar abobado do comandante Cousteau, tão cheaps quanto ingenuamente roteirizadas. Estamos, no entanto, longe da evocação emocionada e debochada do cinema cafona, documentário que seja, já que o “real” é tratado do mesmo modo que o “filme dentro do filme”, com cores em tons pastéis e dicção átona. Alguns se ressentiram dessa platitude de superfície e da duração das gags; no entanto, não é difícil perceber o ritmo tranquilamente requebrante do filme, cujo ritmo é marcado por Bill Murray na agradável ondulação da bacia. A oscilação entre dramatização e desdramatização nos faz então ver com novos olhos as figuras obrigatórias do cinema de ação nas cenas hilariantes em que Zissou derrota uma tropa de piratas com uma pistola de plástico.




Tenta em vão multiplicar suas investidas, em todos os sentidos do termo, já que descobrimos num diálogo que ele não pode ter filhos. A revelação da esterilidade de Zissou acaba inscrevendo o filme no nível do alto romanesco, lugar em que grassam os grandes temas de filiação e transmissão, apesar de — ou mais precisamente graças a — sua singular mistura de tons. Como na comovente cena em que o vemos, num macacão de homem-rã, propor numa voz terna a seu suposto filho que se junte a sua equipe. Da mesma maneira, a conclusão entrega um fôlego épico que parecia ter desaparecido das telas quando, novamente afinados, Bill Murray e sua equipe se lançam em câmera lenta no cais.

Para dar a cadência, nada melhor que os lamentos que Seu Jorge canta acompanhado de seu violão, os quais logo percebemos serem versões lusófonas dos principais sucessos de David Bowie. As entradas do astro brasileiro não são mera repetição melódica no filme — são o que define sua batida. A vida marinha não é paródia, nem homenagem, nem recriação do cinema de ficção científica ou de aventura exótica. É sobretudo uma transcrição musical, uma tradução, uma passagem direta de um estilo a outro, como fazem os hitmakers do Terceiro Mundo que adaptam sem vergonha os sucessos ocidentais à moda do tempero local. A odisseia de Bill Murray nos leva bem longe da problemática do “desaparecimento da crença do espectador” e de seus supostos paliativos (maneirismo, simulacro, desconstrução moderna etc.), assim como não deslinda os “novos territórios do cinema” que são a profissão de fé de alguns sujeitos. O horizonte que ela abre é o do intérprete (como o filme de James L. Brooks se resumia em “Spanish traduzido em english” ou o contrário) e da interpretação, assim como se repetem sem cessar os arranjos de uma ladainha centenária. Conheça-se o original ou não: não há mais importância.

Tout commence par des chansons… foi publicado na revista La Lettre du Cinéma n°30, maio/junho/julho de 2005, pp.54-59. Tradução: Leodoro Camilo-Fernandes.

Como eu me enganei... (ma comè filma?!)






Sobre Como eu briguei.. de Arnaud Desplechin

Por Stéphane Malandrin e Dominique Marchais

Fato notável: a quase totalidade da crítica saudou o último Desplechin como a chegada do Messias. De um ponto de vista midiático - e estritamente midiático... - o cineasta se encontra, tudo igual, aliás, na mesma posição que o Godard dos anos 60. O trabalho de Desplechin está longe de ser negligenciável, e não teria porquê cutucar a onça com vara curta, se não tivessem enchido nossos ouvidos de referências totalmente deslocadas. Muitos críticos chegaram a comparar Como eu briguei... e A mãe e a puta. É melhor ser surdo do que ouvir isso... E se falássemos do filme em si?

1. Primo

Poderíamos jogar por muito tempo o jogo dos sete erros, retrato contra retrato, filme contra filme, entabular a lista de razões que fazem com que A mãe e a puta e Como eu briguei... não tenham nem filiação, nem semelhança, nem fraternidade. Nos limitaremos, por enquanto, a sublinhar esta diferença fundamental: o filme de Eustache viu alguma coisa, o de Desplechin quase se envaidece por não ter visto nada, e sobretudo por não ter nada a mostrar. Se Desplechin está longe de alcançar os objetivos é porque nunca olhou seus personagens, ele não quis escutá-los, nem se interessar por eles, nem verdadeiramente amá-los - preocupações elementares de A mãe e a puta, essa obra amorosa que esboçou com humor e seriedade, por seus atores, a convicção de uma saudação coletiva. Como eu briguei... observa e pratica "o amor" de seus personagens com a ciência consumada e o sorriso de canto daquele que já sabe como proceder não para fazer cinema, mas para seduzir os críticos de cinema.

2. Ver para crer

Ou, por exemplo, a cena de sedução entre Paul-Amalric e Valérie-Balibar, no carro. Um homem, uma mulher. Por que eles estão ali? Porque Valérie está um pouco apaixonada por Paul e Paul, aparentemente, gosta de se deixar seduzir. O que acontece? O que eles dizem um para o outro? Literalmente, os dois personagens não dizem nada. Eles são privados de sua troca de palavras por uma voz off que cobre a totalidade da discussão. Que diz a voz off? Que Paul está contando para Valérie seu amor por uma outra garota (Sylvia-Denicourt). O que Desplechin faz, então? Ele não nos mostra o corpo ferido de Valérie escutando as palavras de Paul, como poderia ter feito Eustache, mas nos impõe um duplo flashback, contando como Paul e Sylvia confessaram a um terceiro (um amigo em comum) que eles se estimavam reciprocamente. Dito de outra forma, privado de som, privado de imagens, de corpos bem como do resto, chegamos a nos perguntar por que esse homem e essa mulher figuram num filme ao invés de uma peça radiofônica enunciada no estilo indireto. Diríamos talvez, Desplechin trabalha o "retrato mental" de Paul Dédalus, esse centro - suposto - do filme! Mas, aqui, esta hipótese só é admitida como título manifesto de um fracasso entre outros, porque o personagem só conhece realmente um em cada dois flashbacks, e ele não saberia de forma coerente "ser o centro". Mas prossigamos...

Se Desplechin não filma, a rigor, nem a relação entre Valérie e Paul no carro (a voz off o impede), nem o ponto de vista de Valérie sobre a crueldade de Paul (a inserção do flashback o impede), nem o ponto de vista exclusivo de Paul diante de Valérie (o narrador onisciente o impede), é porque ele encontra o seu interesse em outro lugar - em todo caso não entre seus personagens. Onde? Esta é a questão...

3. Não tem ninguém aqui

Poderíamos dizer que a verdade do filme de Eustache está simbolicamente contida, para pegar um detalhe que poderia servir de critério de exigência à qualquer obra cinematográfica, na sequência da rã. Sentado na casa de seu amigo, Alexandre inclina a cabeça para trás, olha para o teto e percebe, em um breve instante de jubilação, o desenho da rã que ele havia se divertido em olhar na última página de uma revista: "Ah, sim sim ah ah, eu vejo a rã, he he a rã!" Ele vê e ele se exalta. A câmera de Eustache permanece sobre o rosto de Léaud, os olhos no ar, porque a única coisa visível é esse estado de um homem que vê. A pergunta que nos colocamos é: onde está a rã de Desplechin? O que vemos de seus personagens quando eles estão vendo alguma coisa, mesmo quando esta coisa não está manifestada?

Exemplo: a cena de cooper de Paul Dédalus. Ele corre no bosque, e subitamente, tomado pela catatonia, ele pára, pálido, ofegante, suado. Aqui, nada de flashback, nada de voz off, nada de inserção, apenas a cena, nua. Bela cena, aliás. Amalric, furtivamente, possui um corpo, um lugar de sofrimento. E depois, alguns planos mais à frente, eis que volta a galope o natural do realizador que não se importa com seus atores, e com as rãs que eles poderiam ver. Fragmentos do diálogo: "eu vi que as coisas eram imemoriais e hostis." Que escritor! Recordemos do Alexandre de A mãe e a puta: "... ali sob meus olhos, uma brecha se abriu na realidade. É tarde demais, não fomos lá. Eu tenho medo de não ver mais nada lá. Eu tenho medo. Eu tenho medo. Eu não queria morrer." Eustache tinha a possibilidade de filmar em campo aberto o "terror" de Alexandre ou de fazê-lo contar. Ele escolheu a narrativa oral, de acordo com a tonalidade global de seu filme. Desplechin se protege bem de ter que escolher. Crendo sem dúvida multiplicar seus efeitos, ele tenta mostrar a "realidade" física do mal-estar, depois, para aqueles que não entenderam, volta a ela por meio de um comentário muito "sentido". Como ele não quer escolher, e quer tudo ao mesmo tempo, Desplechin não nos faz sentir a mínima emoção? Por que a relação do evento, acrescentada do próprio evento, destrói a força? Porque não se pode impunemente filmar um evento corporal (o terror) e explicá-lo duas cenas mais tarde na pior língua acadêmica sem induzir ao mesmo tempo a nulidade de sua realidade cinematográfica, e um desprezo secreto pelo evento propriamente dito. O que conta, no fundo, é o homem que se observa filmando, inventando belos diálogos, organizando dispositivos complicados... ao invés daquilo que acontece com aqueles que fazem a narrativa. Como eu briguei... é o fato de um homem que aprende a filmar se olhando num espelho, como outros aprenderam a fumar, para se impressionar, tentando chamar a atenção do público. Não importa o que aconteça desde que a ilusão de ter feito acontecer alguma coisa tenha ocorrido.

4. Sempre ele...

Se o espectador é frequentemente convidado a "gozar" do filme no modo recuado, não é porque Desplechin trabalha o distanciamento, mas porque ele recorre à omissão, que é o único meio dado ao seu filme para mascarar a vacuidade de seus personagens. Tendo fracassado ao dotar seu filme de um centro, ele lhe atribui uma multiplicidade, que ele dramatiza artificialmente pelos efeitos de anúncio, pelas vozes off, flashbacks, que são igualmente golpes de projetor ou de zoom sobre objetos ausentes, em todo caso, mal definidos. Sem dúvida, esse distanciamento não resulta de uma escolha, política ou ética (Brecht-Straub-Godard), mas de um medo inibidor que não coloca nunca o realizador na posição de ter realmente medo da coisa a filmar. Sua vida sexual? Esvaziada de qualquer pulsão, de sensualidade, de vícios, de palavras, de corpos, de erotismo, ela é reduzida à exposição de uma mulher cobrindo os seios, sozinha, de quatro numa cama, mais constrangida pelo visor do câmera do que pelo olho de seu amante. Sua briga? Vazia de qualquer memória, de participação, de afetos, pretexto para todas as formas de bravata de "autor", ela não é mais que a sujeira de um ressentimento disfarçado de pesadelo, de macaco e de calças brancas. Nada acontece porque ninguém existe, nada é dito porque ninguém é mais capaz de tomar a palavra, ninguém pode se ouvir porque não é mais questão de trocar o que quer que seja.




No final, esse filme aparece como uma máquina fumegante e esfumaçada, sob pressão, que parece só poder dar à luz a formas e pensamentos inacabados, vagamente monstruosos, mais frequentemente inúteis - o que pôde dar em belos filmes doentes, convalescentes, logo vivos (os filmes de Zurlini por exemplo), que precisamente agradavam por sua fraqueza assumida, sua lucidez. Aqui, a incompletude dos personagens não é produção, mas ausência de invenção, ausência de ponto de vista real - Desplechin nunca parece se dar conta a que ponto seus problemas de visão nos impedem de entrever qualquer coisa de surpreendente. O normalista normaliza, a secretária secretariza, a tradutora faz sua escola de tradutora. E quando a definição não é tautológica, ela é depreciativa em relação às mulheres, para não dizer misógina: o homem se ocupa de sua imagem social enquanto que a mulher menstrua; o homem consegue fazer uma obra quando a mulher não consegue ter filho; o homem tem inimigos quando a mulher só tem exigências; o homem não sabe o que quer mas se vinga, enquanto que a mulher sabe o que quer mas passa por idiota. Sob a neblina espessa de suas discussões complicadas, mas vãs, os fantoches falantes de Como eu briguei... são sempre reduzidos à sua funcionalidade roteirística, à pequena demonstração sofística que Desplechin reivindica para a juventude de hoje: "as mulheres se ocupam de suas imagens, os homens de seu destino: invertamos a proposição e nós teremos um ponto de vista pertinente sobre o mundo...". Mas ele está rindo de quem?

5. Sempre nada...

Nanterre. Paris X. Escola Normal. Os livros. Os professores. Os estudantes. Os conceitos. O que faz Desplechin? De quais intelectuais ele fala? Sua filosofia? Ela se exprime tranquilamente, num vocabulário de domingo à tarde, decorado de citações, aqui e ali, alguns conceitos à queima-roupa portanto - estilo "e então eu encontrei a alteridade", as obras que fazem bem depois da missa - Jean-Luc Marion... Esse discurso posado é na verdade um pensamento-apostila, exibido depois amordaçado, finalmente sem perigo. Por que refletir nesse filme, sobre o quê, visto que ele está cheio de pequenos soldados que são pagos para fazer pose: os atores-professores de filosofia? Desplechin pode muito bem parecer "inteligente" nas suas entrevistas, antecipar as reprovações e fingir ter feito tudo de propósito (da malícia como marketing crítico), estaremos sempre no direito de lhe perguntar se ele estragou seu filme de propósito. Mas, ele responde, Descartes escreveu um livro autobiográfico, os desfiladeiros de Verdon são invisíveis a olho nu e se não houvessem os filmes, não haveria mundo. É inacreditável. Adoraríamos que tudo isso fosse só um filme, Noivo neurótico, noiva nervosa por exemplo, no qual Desplechin seria apenas o tagarela exasperante na fila de espera do cinema, debitando montes de tolices, e que poderíamos calar chamando Descartes em socorro: "Verdadeiramente, meu amigo, você não entendeu nada do meu livro". De ponta a ponta nas suas referências, Como eu briguei... não funciona, não respira, se asfixia. De que adianta pôr a música a plenos pulmões, por exemplo Vocab dos Fugees, quando isso não serve para nada, quando não se filma nem as pessoas que a escutam, nem aqueles que dançam - e que no fundo ninguém se importa? Desplechin serve a canção e a situação, revelando assim o defeito fundamental de seu cinema: nada consiste em nada, no sentido próprio da consistência, da coesão, a fusão das partes em função da totalidade.

6. Nova Qualidade Francesa

Não é que ele trabalhe sobre a disjunção, como o faz Altman, mas pelo contrário suas somas não se adicionam nunca. E na verdade, luz + atores + cenário + música - mise en scène não dá cinema. Da mesma forma que: (voz-off e romanesco de Truffaut) + (flash-back, música contemporânea e incisos fotográficos de Resnais) + (sonhos e morte do pai de Bergman) + (planos-sequência e dor existencial de Eustache) não dá nunca um bom filme, porque a soma de seus signos, entendida como compilação de seus tiques, não está nunca à altura de seus respectivos gênios.

Então o quê? Esse filme é um agregado de bolhas (as cenas) que são elas mesmas constituidas de estratos rígidos, exteriores uns aos outros (as esferas de eficiência de cada um dos participantes da filmagem) e em que nenhuma é considerada como um todo, autônomo, mas em função do agregado. Isso dá um agregado de bolhas imperfeitas, incompletas, não muito bonito de se ver, onde cada cena acredita participar do todo mas ignora as outras. Daí que a voz off (o lugar de Desplechin) que ele não colocou de propósito, mas porque ele não teve escolha, que ele precisava desta insistência para unificar pela força o que se recusava a formar um filme. Basta dizer que se a comparação com Eustache nos parece definitivamente aberrante, fora de questão, aquela com Resnais ou Mankiewicz (Quem é o infiel?), aos quais Desplechin pensa indubitavelmente, não o é menos. Nem grande filme romanesco, nem filme sobre o discurso amoroso, nem filme sobre a sexualidade, Como eu briguei... só propõe para o cinema as intenções de um diretor: uma liquefação permanente do todo (o filme) à guisa de solidificação de um ego (o realizador) - vão e tedioso.

7. Então é isso

No fim das contas, Desplechin parece só ter desejado uma única coisa: se livrar o mais rápido possível de um cinema francês que o assusta, fingindo digeri-lo, pensando-o como gênero, e fazer muito melhor que seus camaradas de classe. Eustache filmou como se escreve uma carta, Desplechin como se faz uma dissertação, relendo vinte vezes o título do tema antes de começar, aplicando-se laboriosamente sobre sua prova, depois de ter feito a lista de todos os conceitos-chave a utilizar para iludir, esquecendo simplesmente que se trata de escrever alguma coisa. Um filme de copista não é um bom filme, porque o esplendor retórico dos mais brilhantes só fará corpo com o bloco de notas de seus professores.

Comment je me suis fourvoyé... (ma comè filma?!) foi originalmente publicado na revista La Lettre du Cinéma n°1, outubro de 1996. pp.57-62. Tradução: Miguel Haoni.