Por Gilles Esposito
Como (ainda) viver juntos? Poderíamos acreditar que no cinema essa pergunta interessante só encontraria resposta nas grandes missas ao humanismo rançoso (de A voz do coração aos piores filmes independentes americanos) ou no culto ao passado (do Crime de Monsieur Lange à cavalaria de John Ford). Ora quatro filmes recentes (estreados especificamente na França entre 26 de janeiro e 9 de março deste ano) fazem-se ouvir em diferentes modos, entre Hollywood e Paris, de abordar frontalmente a ideia de comunidade: ilustração do último (?) gênero congregador (Meninas malvadas), reativação não nostálgica dum outro (Espanglês), deslocamento da Cinecittà ao mar da China (A vida marinha); enquanto Les Métamorphoses du choeur perscruta a inquietante familiaridade dos rituais do 13º arrondissement, onde reside a forma primitiva do coletivo, o canto coral. Afinal, a música pode não somente acalmar os ânimos, mas também aplicar, como os lamentos das sereias, o bálsamo benfazejo do esquecimento.
Another teen movie: Meninas malvadas
Em tempos de gentileza proverbial e de desdramatização forçada, o “filme de campus” parece ter se tornado o último refúgio da crueldade e da dramaturgia aferente. Universidades e escolas representam por excelência o ponto de tensão máxima no qual uma comunidade, agregada pela escolarização obrigatória e o olhar dos vigilantes, deve se virar com o caráter profundamente desigual da puberdade, entre uns que têm corpos recém-saídos da infância e outros com as anatomias já formadas. Nos últimos anos ainda se viu a estreia do belo filme fantástico coreano Memento mori e de um grande número de comédias americanas, chegando ao ultraje autoparódico de Não é mais um besteirol americano (título original: Not Another Teen Movie). A crítica que saiu no Technikart define, no entanto, Mean Girls (ou Meninas malvadas) como um espécime terminal de um gênero moribundo, outrora triunfante e que representa apenas uma porção infinitesimal da produção US. Ainda que se apoie no best-seller Queen bees and wannabees, guia sociológico que explica às mães de família desamparadas o impiedoso universo escolar do ensino médio aonde elas veem partir todas as manhãs suas filhas, vestindo jeans de cintura baixa e calcinha à mostra, é certo que o filme despreza qualquer princípio moralizador.
Mas, longe dessas visões eruditas, fiquemos com um belo otimismo. O longo travelling que passa em revista as mesas do refeitório e os grupos ali reunidos (belas blacks esnobes, nerds espinhentos, losers, atletas, etc.) vem menos da antropologia estrutural do que da combinatória de possíveis relações entre os personagens, fonte inesgotável para a ficção. O final unânime não engana ninguém — a chegada de uma nova geração de garotas adolescentes dará certamente lugar a um outro filme, e assim sucessivamente. Basta um novo peão no tabuleiro para dar início a uma outra partida… ou batalha; e aí está a ideia, a única, de Meninas malvadas: trazer um personagem de “home school”, educado por seus pais, para desembarcar no ensino médio sem conhecer o mínimo dos rituais escolares. Nada de surpreendente já que esse “another teen movie”, o filme a mais, funciona num esquema sutil de regra e exceção, de mudança de tempo e de tonalidade — A cena a ser feita, a sequência musical. A heroína destitui sua rival, a abelha-rainha, durante a festa de Natal na qual, após um incidente técnico, uma versão Rn’B de Jingle Bell se transforma em coro a cappella. Mas verdade seja dita: não se trata de um jogo qualquer com os códigos, do jeito que gostam os teóricos do gênero; se há referências, elas não levam a reflexividade muito além do que o filme de um estúdio concorrente que estreou alguns meses antes. Assim como a versão disforme de Dancing With Myself de Billy Idol, que é gritada nos créditos finais, não se quer brincadeira ou revival eighties; destinada a um público que, com razão, nem se lembra dos hits do ano passado, essa interpretação malandra de uma canção ruim só está ali para nos guiar até a saída da sessão. Seríamos bobos de não aproveitar.
O monstro de mil faces: Les Métamorphoses du choeur
Bobos seríamos também se deixássemos passar a radical simplicidade do dispositivo do documentário Les Métamorphoses du choeur de Marie-Claude Treilhou, totalmente composto por registros de ensaios de um coral. O espanto vem somente após um tempo, frente à extraordinária variedade de fisionomias e jeitos dos membros do que nos dizem ser um Conservatório de música, aparentemente vindos de todas as camadas da sociedade. Mas aqui também a etnografia fácil é combatida graças às tomadas de partido formais da realizadora. As panorâmicas que descrevem pacientemente os diferentes grupos de cantores (ou “elementos de coro”) aproximam-lhes os rostos uns dos outros enquanto também circunscrevem a área comum onde eles deverão coexistir em harmonia. E sobretudo, sempre que possível, cada corista é enquadrado da cintura pra cima a fim de melhor resolver a oposição entre a origem das vozes angelicais (o peito) e as caras de quem não está em ação, o diferencial a ajustar-se entre o fôlego e o canto. O filme adquire então um clima de reportagem sobre uma seita estranha — os mestres da música sucedendo aos Mestres loucos? —, particularmente com os exercícios lúdicos propostos às criancinhas a fim de que tomem consciência de sua respiração e possam controlá-la. Ora se o fôlego é um “aquém” do canto, a parte que vai além é a palavra, que ressoa pela primeira vez quando a capitã do coral explica a seus pupilos o texto da obra, sem saber-lhe o significado eles não poderiam dar uma interpretação satisfatória. Sendo um filme sobre a arte, é do tipo que consagra integralmente sua duração à busca obstinada do elo justo entre a voz, o canto e o sentido: a matéria, a obra e a ideia.
Mas o filme é ainda algo a mais. Ele se encerra de fato no instante exatamente anterior à performance tão ardentemente ensaiada, na sala de concerto onde estão reunidos pela primeira vez os vários “elementos de coro”, como pedaços de tecido e de carne que, juntos, fundem-se numa nova criatura Frankenstein. É, no entanto, o oposto da ficção científica em cuja direção o filme de campus, essencialmente individualista, inclina-se ao subordinar mil corpos diversamente constituídos a uma só cabeça pensante, como a ruivinha heroína de Meninas malvadas. Mais como um filme de terror clássico que, como sabemos, só faz surgir o monstro em último lugar; o plano conjunto final descobre um corpo gigantesco, unificado pelo canto, que carrega uma infinidade de rostos díspares. Compreende-se assim a pertinência do título escolhido por Marie-Claude Treilhou: Les Métamorphoses du choeur é um grande filme fantástico.
Uma certa qualidade de silêncio: Espanglês
Por outro lado, não há apego paradoxal a esse ou àquele gênero em Espanglês, que se inscreve já de saída na linhagem de comédias familiares de Vincente Minnelli, como em Papai precisa casar. Essa crônica da vida doméstica de uns hipsters californianos, subitamente perturbada pela chegada de uma empregada doméstica estritamente hispanófona e de sua filha, foi recebida na França com um silêncio ensurdecedor da crítica que resultou num fracasso comercial retumbante. Entretanto, além de suas qualidades indiscutíveis (escrita elegante, diálogos brilhantes), fica uma pergunta importante: por que é tão bom? Aqui, mais uma vez, podemos propor uma hipótese musical.
Se o filme de James L. Brooks não fica em dívida com sua herança minnelliana, é porque ele retoma o emblema dessa tradição, a famosa “cena a dois” em que o autor de Brotinho indócil se fartava ao confrontar as gerações com todas as combinações possíveis: pai/filha, mãe/filho, etc. Ora aqui o roteiro se bifurca várias vezes, sempre adiando a descoberta de seu verdadeiro tema com uma liberdade narrativa tão exemplar que cada integrante da família recebe um tratamento igual. O que se segue é um verdadeiro carrossel de duelos verbais, que obedece a uma composição rigorosamente coral. E se por acaso uma sequência comporta três personagens ou mais, o jogo de traduções simultâneas a remete ao mesmo princípio, da entrevista de emprego terminada graças a um rolar de “rrr” triunfal à excepcional discussão entre o pai e a empregada, que é de fato uma “dupla cena a dois”. Intérprete de improviso, a filha da empregada concilia aqui duas conversas paralelas, e sua hesitação contínua entre “eu” e “ela” estabelece a pulsação metronômica que faz, por assim dizer, espiralar a briga no espaço até que se atordoe.
Todavia, dois tipos de sequência ainda são necessários para que todas as harmonias se desenvolvam. A primeira coloca em cena a avó, que sua nora obstinadamente apresenta usando seu nome de quando era cantora famosa. Ela canta seus antigos sucessos com seu neto, às vezes num canto do quadro ocupado por outra dupla — procedimento que dobra mais uma vez o sistema da “cena a dois” mas que sobretudo lhe fornece o contraponto que faz ressoar o conjunto, como numa câmara de eco. O segundo tipo diz respeito aos “simples” encontros tão adiados entre o pai e sua empregada. Eles se olham estupefatos e mudos, fazendo surgir uma certa qualidade de silêncio (componente fundamental da música, há que se lembrar) que faz com que seu improvável amor seja gritantemente verdadeiro. Nada mal para uma obra-prima polifônica que já foi julgada por aí como uma barulheira desinteressante.
Pequenos arranjos com a crença do espectador: A vida marinha
Se Espanglês se valia de uma cena intimista e a submetia a um desenvolvimento orgânico, A vida marinha escolhe a opção inversa, encontra as alegrias da narrativa de formação ao proliferar personagens e peripécias. A matriz do filme de Wes Anderson é então o plano vagamente godardiano que mostra um corte longitudinal do barco, onde empilham-se as diferentes cabines. A primeira casa a vir à tona no Cinemascope são as quadradas imagens oceanográficas rodadas por Steve Zissou, avatar abobado do comandante Cousteau, tão cheaps quanto ingenuamente roteirizadas. Estamos, no entanto, longe da evocação emocionada e debochada do cinema cafona, documentário que seja, já que o “real” é tratado do mesmo modo que o “filme dentro do filme”, com cores em tons pastéis e dicção átona. Alguns se ressentiram dessa platitude de superfície e da duração das gags; no entanto, não é difícil perceber o ritmo tranquilamente requebrante do filme, cujo ritmo é marcado por Bill Murray na agradável ondulação da bacia. A oscilação entre dramatização e desdramatização nos faz então ver com novos olhos as figuras obrigatórias do cinema de ação nas cenas hilariantes em que Zissou derrota uma tropa de piratas com uma pistola de plástico.
Tenta em vão multiplicar suas investidas, em todos os sentidos do termo, já que descobrimos num diálogo que ele não pode ter filhos. A revelação da esterilidade de Zissou acaba inscrevendo o filme no nível do alto romanesco, lugar em que grassam os grandes temas de filiação e transmissão, apesar de — ou mais precisamente graças a — sua singular mistura de tons. Como na comovente cena em que o vemos, num macacão de homem-rã, propor numa voz terna a seu suposto filho que se junte a sua equipe. Da mesma maneira, a conclusão entrega um fôlego épico que parecia ter desaparecido das telas quando, novamente afinados, Bill Murray e sua equipe se lançam em câmera lenta no cais.
Para dar a cadência, nada melhor que os lamentos que Seu Jorge canta acompanhado de seu violão, os quais logo percebemos serem versões lusófonas dos principais sucessos de David Bowie. As entradas do astro brasileiro não são mera repetição melódica no filme — são o que define sua batida. A vida marinha não é paródia, nem homenagem, nem recriação do cinema de ficção científica ou de aventura exótica. É sobretudo uma transcrição musical, uma tradução, uma passagem direta de um estilo a outro, como fazem os hitmakers do Terceiro Mundo que adaptam sem vergonha os sucessos ocidentais à moda do tempero local. A odisseia de Bill Murray nos leva bem longe da problemática do “desaparecimento da crença do espectador” e de seus supostos paliativos (maneirismo, simulacro, desconstrução moderna etc.), assim como não deslinda os “novos territórios do cinema” que são a profissão de fé de alguns sujeitos. O horizonte que ela abre é o do intérprete (como o filme de James L. Brooks se resumia em “Spanish traduzido em english” ou o contrário) e da interpretação, assim como se repetem sem cessar os arranjos de uma ladainha centenária. Conheça-se o original ou não: não há mais importância.
Tout commence par des chansons… foi publicado na revista La Lettre du Cinéma n°30, maio/junho/julho de 2005, pp.54-59. Tradução: Leodoro Camilo-Fernandes.
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