Os prazeres do notívago
Meu primeiro objetivo era fazer um relatório de Dois homens em Manhattan. Mas eu me rendi rapidamente a uma evidência: que não é possível compreender esse filme se não evocamos o mundo tão particular de Melville. Na verdade, Dois homens em Manhattan só pode ser compreendido em função de Bob, o jogador e eu me surpreendo que os amantes de Bob possam ser, ao mesmo tempo, os detratores de Dois homens em Manhattan. Se de um filme ao outro o assunto difere, o clima é o mesmo. Mais exatamente: o ponto de vista de Melville sobre os homens e sobre as coisas permanece o mesmo. Esse ponto de vista é aquele de um notívago, de um amante das cidades (somos amantes das cidades como somos amantes das mulheres, pelas mesmas razões), e os dois roteiros nos permitem, efetivamente, descobrir cidades que, pensávamos erroneamente, já estarmos familiarizados.
Só Melville, ao meu conhecimento, reproduziu o charme da praça Pigalle à noite, ou da Times Square. A insubstituível sedução que exerce sobre nós uma rua deserta ao amanhecer, é preciso ser um “coruja”experiente para prová-la. E quando esse “coruja” é, ainda por cima, um cineasta de instinto, isso dá muito belas imagens.
Mas o charme de Bob como o de Dois homens em Manhattan não provém somente da maneira com a qual Melville (cineasta urbano por excelência) nos guia pelas ruas, mas, sobretudo, da sua atitude perante os personagens. Ele tem por eles uma secreta ternura. Nenhum deles solicita prêmios de virtude. Acontece-lhes de serem frequentemente vigaristas profissionais, verdadeiros patifes, mas eles conservam uma espécie de nobreza, de pudor, que os faz sair com elegância das situações mais escabrosas. Bob, visto dessa maneira, me parece comovente. Sem nenhuma dúvida, ele não tem nada de um bandido que foi seduzido, já velho, pelas virtudes burguesas. Ele não sonha com o recesso e com a calma do lar. Ele conserva a elegância da máfia, e sua nobreza provém precisamente de uma espécie de fidelidade em relação aos valores que se exprimem nessa sociedade secreta que é o meio, que está na margem e em oposição à sociedade burguesa. [...] As relações dos valentões e dos assaltantes, Melville as indica com justeza: ele vê esse mundo do interior, o que quer dizer que ele não procura o exotismo pelo exotismo. Ele não é um amante do pitoresco e, se o pitoresco se manifesta, é com discrição e como que involuntariamente.
Manhattan revisitada
Que me perdoem de retomar esse filme do qual Chabrol tinha feito, aqui mesmo, uma excelente descrição. Se me parece que ele se ressalta sobre a enorme (e bem medíocre) produção de filmes sobre esse meio é porque ele não tem nenhuma pretensão ao realismo. Ele não visa minimamente ser espetacular, daí uma honestidade na narração, uma recusa do efeito, uma precisão do detalhe que me encantam. Mas onde está o jogo nisso tudo? Ele é um pretexto. Bob é certamente um “jogador”, mas através do jogo ele persegue um sonho, ele é, como os verdadeiros jogadores, assombrado pelo absoluto. [...] Não é, então, o jogo, mas a vida (ou ao menos uma maneira de viver em certas circunstâncias) que é o verdadeiro assunto do filme. É uma maneira, por exemplo, de compreender a amizade ou as mulheres. Melville tem a nostalgia da verdadeira amizade. Seus dois últimos filmes são uma homenagem vibrante a esse sentimento que não tem nada a ver com o “compadrio” ou a “camaradagem”. A amizade é um sentimento forte que ignora as diferenças de idade, as circunstâncias ou as diferenças sociais. Um sentimento que implica que podemos nos comprometer (nos molhar) e que, em todo caso, não exclui as censuras veementes quando o amigo não se comporta corretamente. É para Melville o único domínio onde tudo o que o homem tem de puro e de autêntico pode se manifestar. É preciso entender Dois homens em Manhattan e Bob como ensaios sobre a amizade.
[...]
Eu amo que um notívago inveterado nos faça compartilhar seu prazer da descoberta. Existe, notadamente, para o notívago, lugares de predileção cujo charme é indiscernível para quem não tem a tentação dos prazeres noturnos. Os devaneios de um passeador solitário podem não ser campestres. Os bastidores do music hall ou de uma boate, um bar deserto às seis horas podem ter um charme tão autêntico quanto àquele de um bosque ou de um vale. Demos graças a Melville por nos restituir o sabor indefinível de uma noite de inverno em uma cidade bíblica em que passeadores, à procura de um mistério perfeitamente decifrável, se pagam o luxo de apreciar. Nossos contemporâneos não sabem mais o que é a flânerie. Eles zombam dos longos passeios nos carros e reclamam uma história. Dois franceses em Manhattan não precisam se lembrar dos filmes americanos para saber o que é Nova York. Melville coloca ao serviço de sua paixão um inigualável frescor de inspiração. Nenhuma má consciência e nenhuma provocação na sua discreta apologia de prazeres escondidos que uma cidade cosmopolita propõe aos seus visitantes. Ele sabe extrair dela a poesia oculta e transformar esse chumbo em ouro. Um metteur em scène realista teria evidenciado avidamente o sórdido e o ignóbil desses lugares de prazer. Mas J. P. Melville não é um moralista, menos ainda um moralista cristão. Ele sabe tirar proveito de New York by night que, com ele, resplandece com todas as suas luzes. Não é um turista que precisa de atrações equívocas: ele é como Baudelaire, atento aos prestígios indefinidamente renovados pelas noites ofuscantes de luz de uma metrópole imensa.
E se me dizem: “Dois homens em Manhattan não é cinema”, eu respondo: “Não, não é cinema, é poesia”.
Plaisir à Melville foi publicado na revista Cahiers du Cinéma, n° 102, dezembro de 1959. Tradução: Letícia Weber Jarek.
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