Por Serge Daney
Os bons filmes, dos nossos dias, vêm frequentemente de uma capacidade de solidão, mais ou menos bem suportada e assumida. Isso lhes confere uma tonalidade própria, uma raiva surda ou uma música desolada, como uma obrigação de “fazer com” o pouco que lhes é deixado. Pois, pesa doravante uma ameaça sobre o contrato mínimo que quer que um filme seja, apesar de tudo, voltado para o exterior. Um exterior que seja o lugar do outro, alteridade cujo o público é apenas a forma mais tradicionalmente desejável. Dito de outra forma: o princípio da insuficiência permanece no coração do cinema, mesmo na época em que os autores se pavoneiam muito facilmente na autonomia do “Isso me basta”. Justamente, isso nunca basta.
Até onde um cineasta pode ir na solidão sem perder não somente o público, mas o cinema? Eu falo disso com J.R., verdadeiro solitário que soube suscitar entre ele e o mundo exterior uma represa povoada de aliados devotados que filtram as ameaças. Rivette disse que é provável que tal solidão (comparável àquela do pintor ou do músico) não possa existir senão na hipótese em que seriamos todos convertidos ao todo-numérico. Até lá, toda solidão excessiva permanecerá um fardo levemente anti-natural e mais de um cineasta continuará se lamentando sobre a sua sorte. Eu estou de acordo com J.R.
Basta, com efeito, dar um passo ou dois para o lado dos videastas (aqueles que já tem uma obra sólida atrás deles, de Viola aos Vasulka, de Paik à La Casinière) para ser muitas vezes surpreendido por seu bom humor obstinado, sua independência alegre, sua falta de pathos. Eles não parecem precisar de mais reconhecimento público que um pesquisador em biologia molecular ou um técnico superior. Aquilo que eles precisam mais é de financiamento e de mecenato.
Onde está a diferença? Na luz. Enquanto o cinema repousar sobre o registro luminoso dos seres e das coisas, ele nos dará um mundo onde – por mais que digamos e façamos, esperneemos e enganemos - ninguém terá vontade de permanecer nas sombras. Tanto os cineastas quanto os atores, tanto o público quanto os críticos. Certamente existe uma história da luz de cinema. Às vezes, é a fria luz da justiça que acusa, da ciência que desnuda ou da lucidez moral que diz o que é ("lançar luz sobre"). Às vezes, é um calor protetor que nos faz perder a cabeça ("estar em plena luz"). Sempre é o lugar do tropismo, da imantação, do povoamento e, mesmo sendo severo, do amor.
Em que momento foi historicamente possível para um cineasta se (fazer) lastimar de seu destino de cineasta, como o escritor pôde fazer caso de uma angústia frente à página em branco? Eu situaria este momento exatamente depois da Nouvelle Vague. Esta, mais estoica, soube não se lamentar muito, mas foram (para permanecer na França) os Eustache, Pialat, Straub, Rozier, Garrel que começaram a representar aos nossos olhos o cineasta sob os traços de Jó e o cinema como um belo monte de esterco. Em seguida, nos habituamos à choradeira eutudo-tudoeu de cineastas menos importantes e transformados exageradamente em seus próprios assessores de imprensa. Hoje, a lassidão ganhou todo o mundo.
Isto (me sopra J.-C.B.) quando a vida se tornou para os cineastas uma espécie de valor supremo, de divindade em si, que uma certa dor pode atravessar o seu trabalho e trespassar seus filmes. E ele cita Eustache. Reduzida a ela mesma, a "vida" nunca é só, com efeito, o espetáculo da manada de humanos visto do ponto de vista do voiture-balai[1] que, por capricho, os empurra um a um na vala. Esta fora a beleza de A mãe e a puta, de Adieu Philippine, de Faces, até os recentes Van Gogh e Já não ouço a guitarra, de ter sabido ainda mostrar a vida, isto é, stricto sensu, a morte trabalhando. Mas é muito possível que o momento verdadeiro desta constatação e dessa dor tenha acabado por se transformar em pose.
[1] NdT: Numa prova de ciclismo, um voiture-balai (carro-vassoura) é o veículo que circula atrás dos últimos competidores. Seu papel é recuperar os competidores que não podem mais continuar na prova (Wikipedia).
Cinéma, vie et solitude foi publicado originalmente na revista Trafic n° 3, verão de 1992. Retirado e traduzido do livro La maison cinéma et le monde – 4. Le moment Trafic 1991-1992, p. 113-114. Tradução: Miguel Haoni e Letícia Weber Jarek.
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