O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Que nasceu em Newgate…



por Philippe Demonsablon 

A Vida de Oharu, filme japonês de Kenji Mizoguchi. Roteiro: Yoshitaka Yoda, baseado no romance de Saikaku Ibara: Koshoku Ichidai Onna. Imagem: Yoshimi Hirano. Música: Ichiro Saito. Cenário: Hiroshi Mizutani. Elenco: Kinuyo Tanaka (no papel de Oharu), Ichiro Sugai, Tsukie Matsuura, Toshiro Mifune, Mazao Shimizu. Produção: Shin Toho Kabushiki Kaisha, 1952. 

Como a filha de um samurai caiu em desgraça amando alguém abaixo de sua condição e foi, por isso, exilada com sua família; como foi comprada por um senhor para dar à luz o filho que não lhe podia dar a esposa; como se viu separada de seu filho e como, afeiçoando-se demais ao senhor, foi devolvida aos seus pais, que a venderam em seguida ao bairro das cortesãs; como, libertada, empregou-se com um comerciante, e acabou sendo exposta à inveja da esposa, à concupiscência do homem, uma vez descoberta sua condição pregressa; como ela se vingou; como, logo depois de casada, perdeu seu jovem marido assassinado [1]; como decidiu tornar-se monja mas, comprometida pelo comerciante, foi expulsa do templo; como, fugindo com um ladrão, encontrou-se sozinha de novo [2]; como tornou-se mendiga, depois prostituta, recolhida por seu filho que, no entanto, não tinha o direito de ver senão de longe, e apenas uma vez; como ela então escapou, passando seus dias a mendigar: tal é, transcrita fielmente, a trama deste A Vida de Oharu; não a relatei por zombaria, encerrando-a nalgum esquema simplificado; quis antes de tudo indicar o charme, ao mesmo tempo linear e sinuoso, de uma estrutura que não tarda a suscitar o desejo de ganhar familiaridade com a obra e esta, uma vez ganha, recompensa a sua frequentação. 

Na ignorância quase total em que estamos na França a respeito da produção japonesa, na impossibilidade de distinguir as tendências, correntes, influências num cinema nacional cujas raras obras, vistas em ocasião das apresentações na Cinemateca, parecem ser sempre de uma excepcional qualidade, mas a qual é pouco provável ainda que a Europa queira um dia abrir seu mercado, privando-se assim de algumas obras-primas que poderiam exercer uma influência estimulante, por suas concepções originais e vivificantes dos problemas plásticos e de mise en scène: enfim, num estado de coisas que impede de agarrar em sua totalidade o fenômeno do cinema japonês e de situar suas obras, não se pode, tampouco, fazer delas outra crítica que a parcial, privada de toda referência, obrigada a ignorar a personalidade dos autores e suas preocupações, a renunciar à busca apaixonante dos laços que unem o homem à sua criação.

Mas a substância da história de A vida de Oharu preserva-nos de nos perder nos labirintos do extravio. Antes, a singularidade das aventuras anula o irritante e vão propósito de reconstituir a sociedade que refletiria a obra; ela se encarrega daquilo que, em alguma existência menos surpreendente, prenderia a atenção a respeito de uma sociedade mais próxima da nossa (feliz indiferença: pois o coletivo, decerto, permanece sempre particular; somente o individual é universal). Se sua construção obtém para si nossa simpatia antes que o exotismo possa se aproveitar de nosso desnorteamento, é que não temos dificuldade em lhe encontrar um nome: conhecemos bem esse universo de Oharu, universo do romance picaresco. A personagem principal não tem outra distinção que a de reunir em si uma série de aventuras extraordinárias, mas nada em sua vida se ata, nem se desata. Cada uma destas aventuras únicas bastaria para preencher uma vida, mas a cristalização não tem tempo de se produzir em torno de nenhuma, nenhuma lança sobre o conjunto uma luz privilegiada, nem marca a este com um sentido que o modificaria. Sua reunião numa mesma personagem retira, de cada uma, seu caráter de fatalidade singular: como se o curso da vida, cuja arbitrariedade as reuniu, as levasse agora, uma atrás da outra, irresistivelmente, enquanto um rosto pouco a pouco murcha, uma voz lentamente se racha. Malgrado a presença da imagem, tal sucessão retira toda sua tragédia da narração de aventuras bastante próximas daquelas que conheceu esta Moll Flanders "que nasceu em Newgate e, durante uma vida incessantemente variada, que durou sessenta anos, sem contar sua infância, foi doze anos prostituta, casou-se cinco vezes (uma das quais com o próprio irmão), doze anos ladra, oito anos deportada na Virgínia, enfim conheceu a prosperidade, viveu honestamente e morreu em penitência". 


Se tentarmos analisar os motivos da obra, de modo a determinar a que parte de nós mesmos ela se dirige, se procurarmos aquilo que ela solicita em nós, constatamos, (com surpresa, pensando no enunciado da fábula) que a emoção ali não tem lugar: o romance picaresco não alcança o conto filosófico, Voltaire bem sabia; não há entre eles senão a espessura de uma intenção, aqui não-declarada, lá concertada. Mas a aventura chama a reflexão, não a compaixão; nenhuma sendo fatal, a acumulação esperada e prevista das vicissitudes realiza uma espécie de estatística na qual se estabelece uma sólida confiança em seu fio condutor: a vida. É característico que a narrativa, levada até o fim e, por conseguinte, situada no passado, não imprima por isso nenhum caráter trágico ao encadeamento dos episódios. O herói do romance picaresco não se sente objeto de nenhuma fatalidade: essencialmente absurdo, ele não vive senão na sucessão do extraordinário. Mas disto não toma consciência e jamais se assume, ele não pode ser trágico; e o autor não deseja fazer de nós essa consciência da qual privou o herói: à nós também confia o papel de Sísifo, no fundo indiferentes às virtualidades emocionais, antes de tudo curiosos desse movimento imediato, curiosos de eventualidades novas num itinerário onde não mais as esperamos. 

Teremos compreendido a dificuldade do gênero, que este exige muito rigor: ele nos mantém separados dos seres, nos quais se recusa a nos deixar penetrar, mas dos quais quer nos fazer partilhar toda a existência: acumula os maiores infortúnios e se proíbe de nos comover, multiplica as aventuras inacreditáveis e nega que sejam fantásticas. Não dissimulo a mim mesmo que haja alguma impostura em tal propósito: pois ele não pretende oferecer do homem uma visão dada como verdadeira, pois recusa a invenção, pois implica uma convenção recíproca entre autor e espectador, algum jogo que quer que a ele sirvamos, de partida. Mas é interessante ver como a impostura é aceita, e observo a coerência da obra naquilo que ela alcança, com os meios que lhe foram dados, e segundo sua própria inclinação: abstendo-se de penetração, eludindo a revelação, ela demanda a proliferação do imediato; pretendendo limitar toda fuga em direção ao fantástico, recorre a um tratamento realista do conteúdo objetivo.

Mas se convinha atribuir à Vida de Oharu as referências romanescas que indicava sua estrutura, e de situá-la na perspectiva de um gênero literário bem determinado, é a um estilo de mise en scène que acabo de fazer alusão, e é somente dele que desejo falar - estilo cuja flexibilidade surge ao mesmo tempo que a necessidade, e que não se quer ilustração, mas impõe-se através de soluções de mise en scène. A proliferação do imediato redunda numa observação múltipla e precisa que possui a faculdade do atalho e o dom da síntese: a profusão não cessa de ser clara. Nenhuma dispersão, malgrado as numerosas personagens que Oharu engendra em torno de si, as quais cada uma se encontra, em curtas cenas, levada ao máximo de expressão; o detalhe não pretende resumir, simbolizar, mas reúne, concentra e, finalmente, arrebata. A economia de meios caracteriza-se pelo emprego sistemático do plano longo, que integra a duração, aumenta o relevo temporal das cenas e dá sua importância aos movimentos de câmera: movimentos sem mistério, mas cujo dinamismo prolonga o movimento interno da ação, o movimento das personagens provocando o movimento da câmera, que os transmite. Numa remarcável adequação, cada episódio encontra assim seu ritmo sem se confundir num mecanismo arbitrário; o realizador soube descobrir o ritmo tanto da pressa como da calma, da privação como do afã, da obstinação como da delicadeza; é, a cada vez, uma invenção na exploração do cenário ou sua utilização, no povoamento do campo, que não detém nenhuma convenção de composição, nenhuma preocupação de enquadramento (assim os quadros estiram-se em largura à mercê do movimento, ou estreitam-se, ao contrário, numa porção restrita do campo). O movimento das cenas, sua expressão se veem sacrificar as comodidades de uma narrativa, as cláusulas de uma linguagem. 


Se admitimos chamar realista a arte que se abstém de toda solicitação exterior a seu objeto, que deixa as coisas se apresentarem por si mesmas, sem que o pensamento intervenha de outro modo senão o de elidir sua impressão e dar mais eficácia aos objetos que esta propõe, a mise en scène de A Vida de Oharu parece, logo, decididamente realista. Mas a simplicidade exige mais da arte, e esta obra logra o paradoxo de ser despojada sob a acumulação de matéria, refinada sob a abundância, e de importar-se pouco com que tal despojamento, tal refinamento sejam percebidos. Como os enquadramentos submetem-se, de partida, às leis do movimento, e não da plástica, cujo rigor entretanto permanece surpreendente, assim a beleza das imagens passa despercebida. Nenhum inchaço barroco, nenhuma intenção vêm se introduzir na imagem, que não quer nos tocar senão através de sua substância mesma: nem cômica, nem fantástica, nem poética, mas participando, muito amiúde, destas categorias, recusando-se a qualquer classificação unívoca. Esse caráter moderno, bastante direto e infinitamente complexo é o que mais impressiona em A Vida de Oharu, obra muito superior a Rashomon, pois tal resultado não pode ser alcançado senão graças a um senso plástico consumado que apenas alguns, como Murnau, possuíram. 

Se a poesia da imagem está presente a cada instante, bem se vê que ela é uma expressão tão natural da visão quanto a nobreza do gesto é expressão natural dos sentimentos dos atores. Ademais, uma esclarece a outra; os atores não saberiam reduzir os sentimentos a uma mímica imediata: isso demanda mais cuidado, através de uma arte extrema que o pudor esconde, mas que segue leis estritas, ainda que complicadas; elas se aplicam em modificar em torno de si mesmas a atmosfera, concedendo-a um sentimento que, talvez, preferirá ainda não eclodir. Do mesmo modo a imagem, permanecendo sob a profusão da narrativa, exprime desta um segundo sentido, tão mais surpreendente na medida em que não dispõe de nenhuma instância para solicitar a atenção, mas traça relações, acrescenta acentos, semeia o irreal no real, o estranho no drama ou na comédia, desemboca a todo instante num fantástico que não queríamos evocar, mas que é também próprio às coisas, e dado como tal: A Vida de Oharu prepara a chegada da narrativa das maravilhosas aventuras da princesa Wakasa, e faz esperar com impaciência esses Contos da Lua Vaga que realizou, igualmente, Mizoguchi. 

[1] Falo da versão integral tal como apresentada na Cinemateca. A versão que passa no Cinéma d'Essai foi amputada desse episódio fresco e delicado. 

[2] Mesma observação: o episódio é mais breve. 

Qui naquit a Newgate… foi originalmente publicado na revista Cahiers du Cinéma nº 33, março de 1954. Tradução de Eduardo Savella.

Nenhum comentário:

Postar um comentário