O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

O pai do ano

Por Luiz Fernando Coutinho

O desvio pelas vanguardas na primeira metade do séc. XX e, posteriormente, pela política dos autores exercida na França dos anos 1950, pelas quais o cinema buscava ou rivalizar com as artes nobres ou se afirmar por comparação a elas, tende a ofuscar um dado importante de sua origem: mais do que um irmão da literatura ou do teatro, o cinema nasce nos bas-fonds parisienses, nos espetáculos de feira, nas casas de vaudeville, nos puteiros e nos circos, sob os olhos e reações de sujeitos anônimos da classe trabalhadora, desempregados, esfarrapados, alcoólatras, prostitutas, malandros, artistas autônomos, desajustados, famílias em busca de lazer passageiro. A essa ficção histórica, Armadilha adiciona alguns elementos do nosso presente: o cinema nasce também em um show de diva pop, sob o fascínio de adolescentes fervorosas, de celulares em punho e lanternas (mágicas?) acesas no escuro.

Neoclássico, Shyamalan não entra no jogo da lamúria saudosista. Diferente de alguns de seus contemporâneos, carpideiros de Homero e Sófocles, seu olhar para as novas tecnologias ou para o fenômeno do fandom não escorre nem para a exaltação inocente nem para a crítica reacionária. O cineasta não dispensa o potencial de fascinação desses elementos, articulando-os em uma intriga de gato-e-rato que renova, em alguma medida, o laço do cinema com formas populares de produção e exibição. Lembramos de Griffith e de seus malfeitores, dos suspenses policiais que solidificaram a montagem paralela (ausente aqui, no entanto), dos palcos filmados que ocasionalmente acolhiam pessoas da plateia em seus espetáculos.

Desde seus primeiros filmes, o método de Shyamalan consiste em unir o extraordinário e o banal, o fantástico e o cotidiano, o excepcional e a cultura de massa. Corpo Fechado (2000), exemplar, costurava Tarkovsky e história em quadrinhos: fantasmas, alienígenas, monstros, fadas subaquáticas e super-heróis constituem a espessura ficcional necessária para trabalhos formais de um rigor atípico, sustentados, além disso, por uma cosmovisão sempre manifesta. Em Armadilha, a cultura pop é literalmente o fundo no qual Shyamalan inscreve sua narrativa, e sua abordagem do fenômeno de massa, nesse caso, é corajosa e irreverente.

A ancoragem em um universo concreto, distante do fantástico (a super-heroína, aqui, é a diva pop), parece trazer duas consequências. Em primeiro lugar, algo da religiosidade do cineasta se perde no caminho, e Armadilha constitui, talvez, seu trabalho menos espiritual. Depois, e como resultado, o tom se torna menos monumental ou épico. Dos filmes de Shyamalan, este é provavelmente aquele que atinge escalas menores em termos de desenvolvimento e clímax. À semelhança do rosto de Josh Hartnett, filmado em primeiríssimo plano como uma superfície ampla que permite inúmeras micro variações, trata-se de um filme de pequenos prazeres e delícias discretas, processadas no conjunto de restrições e códigos estabelecido pelo cineasta. Shyamalan, nesse sentido, permanece herdeiro da série B.

Quando a personagem de Josh Hartnett passeia pelos corredores da arena, pensamos nos momentos em que David Dunn, de Corpo Fechado, esbarrava com os corpos no estádio ou na estação de trem para ter uma visão de seus crimes. Naquele filme, pessoas comuns, anônimas e transeuntes, eram capazes dos crimes mais hediondos – atos de violência que eram iluminados pelo contato com o corpo de Dunn. Em Armadilha, a imagem que falta, a visão por se produzir, não é dos assassinatos ou decepamentos: o extracampo que o filme prolonga ao máximo mostrar é o do núcleo familiar. Curiosa inversão em relação a Corpo Fechado, onde, além disso, o pai era a Lei.

Shyamalan aborda a psicose não tanto como o faria um criminalista (Fincher) ou um psicólogo (Hitchcock), mas como um fenômeno social, nascido no interior de lares exemplares. O tênue fio psicanalítico, que mais parece servir de pretexto para certas rimas ou situações dramáticas, é integrado a uma mecânica arquetípica do thriller. Mais importante do que o trauma, nesse caso, é o sintoma: a divisão do sujeito ou sua bifurcação. A sequência assombrosa das fotografias de família, entretanto, lança a questão: trata-se mesmo de uma separação? Georges Didi-Huberman falava do sintoma como algo que rasga a imagem, o que nos faz pensar se a dupla vida do Pai é o que efetivamente desfigura a imagem da família ou, pelo contrário, lhe permite uma sobrevida – em outras palavras, se a derruba ou a mantém em pé. É possível que a resposta se encontre em um gesto específico do final do filme, envolvendo uma bicicleta de criança.

Um comentário:

  1. Atenção: "Armadilha" é o filme do mês no Cineclube da Madonna:

    https://forms.gle/haHvKZbNzXADNCw26

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