O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Mortalmente perigosa, de Joseph H. Lewis










por Robert Keser

Enquanto O Czar Negro (1949) encarnava o momento histórico, com suas investigações sóbrias e ênfase nos cidadãos exercendo seu poder, o delirante Mortalmente Perigosa (Gun Crazy, 1950) subvertia-o. Apesar de não ser o primeiro filme de amantes criminosos em fuga, foi o primeiro a apresentar a excitação criminosa amoral como libertação sexual, com sua energia profana rompendo as convenções de Hollywood. “Este é um filme em que um assalto a banco é um ato erótico – e os personagens sabem” [1]. Intencionalmente concebido como um filme em que a plateia torce pelos assassinos, sua história não poderia ser contida em um título: inicialmente lançado com o sombrio Fatal é a mulher (Deadly is the female), seu fracasso comercial levou a um também frustrante relançamento oito meses depois como Gun Crazy (Loucos por armas, literalmente, Mortalmente Perigosa no Brasil).

Com resquícios de idealismo do New Deal dos 1930, Lewis continua basicamente firme sob o contrato social, mas o amour fou dos amantes Bart (John Dall) e Laurie (Peggy Cummins) desafia a sociedade com sua busca sem disfarces por adrenalina e livre de culpas. A própria estrutura de Mortalmente Perigosa se baseia na rejeição do ideal de comunidade pelo casal (apesar do apoio e tentativa de resgate dos amigos de Bart), mas se o egoísmo fatal do individualismo não chega a ser uma mensagem modernista, Lewis segue moderno ao recusar sentimentalismos e moralismos sobre as ações de seus protagonistas. Ela é uma assassina impulsiva, ele é um fraco que ama armas mas não suporta a ideia de tirar uma vida.

Lewis não apela a explicações econômicas nem sociais. Ainda que haja uma cena de tribunal no início do filme que ofereça de forma protocolar alguns motivos ocos (“ele precisa de um homem na casa”), Bart simplesmente diz ao juiz: “atirar é o que eu faço bem. Eu me sinto bem quando disparo”. Como afirma Paul Schrader, “não há razão na loucura por armas – é apenas loucura” [2]. Laurie invade a tela pela primeira vez por baixo, precedida por suas pistolas em ação, e percebe Bart imediatamente. Usando uma competição de barraca de tiro como preliminar, eles circulam um ao outro em demonstração mútua e franca de atração física (o assistente depois a reprime “vocês dois, olhando um para o outro, como dois animais selvagens”). Em uma cena de juras de amor, ela provocantemente altera os votos de casamento tradicionais, dizendo, “eu quero ser boa. Eu serei boa. Eu vou tentar. Eu vou tentar mesmo.”

Os papéis de gênero aparecem surpreendentemente alterados, com Laurie chegando a atirar em uma mulher que a critica por usar calças. De fato, ela é puro desejo e necessidade, e ao vestir suas meias-calças escuras, ela não pode deixar de fazer certa chantagem sexual ao dizer “eu fui chutada minha vida toda. De agora em diante, quem chuta sou eu. Quando você vai começar a viver? ” Quando Lewis flutua sua câmera sobre seu corpo recém-saído do banho e termina em sua boca à espera, nós não estamos apenas habitando o ponto de vista de seu amante, mas nos encontramos sob um domínio de carnalidade abstrata. Ao Bart reclamar que “tudo está acontecendo tão rápido... como se nada mais fosse real”, Lewis maximiza a fisicalidade de Laurie em sua resposta: “Olhe para mim deitada ao seu lado. Sou sua. E sou real.”

Nas palavras de Paul Schrader, “as qualidades superlativas de Mortalmente Perigosa são precisamente aquelas que apenas o diretor pode fornecer: uma combinação de ritmo, elã e composição dinâmica” [3]. Lewis prossegue a escalada de roubos, fugas e reencontros, cada um deles encenado com o cuidado de um número musical, inclusive com o uso teatral de fantasias, de trajes do Velho Oeste de franjas longas, até ternos sóbrios com óculos de aros grossos, passando por uniforme militar e jaleco de laboratório. O primeiro e mais célebre assalto a banco – ousadamente concebido como um elaborado longo take sem cortes observado totalmente do banco de trás de um carro – tem os atores improvisando suas falas enquanto nervosamente dirigem em tempo real em ruas que não haviam sido fechadas para a filmagem. Eles correm para roubar a agência, nocauteiam um policial e pulam novamente para dentro do carro, acelerando excitados enquanto escapam. Impotente por não conseguir atirar em um carro de polícia que os persegue, Bart mira então nos pneus (o carro, de forma muito realista, balança para esquerda e direita).

No assalto no matadouro, além de correrem passando por carcaças penduradas, caindo e derrubando dinheiro ao som do alarme, Laurie finalmente assina seus destinos ao matar duas pessoas. Planejando se separarem para fugir, eles se encontram em um transe sanguinário, seu magnetismo animal os atraindo novamente em uma única tomada de câmera de Lewis que gira enquanto Bart abandona seu carro para voltar a Laurie. Procurando mostrar de forma clara que “o seu amor um pelo outro era maior que seu amor por armas” [4], o Liebestod final no pântano de Lewis se aproxima da inevitabilidade presente em grandes tragédias, com Bart instintivamente atirando em sua amada para proteger seus amigos de infância, apenas para ser morto pelos mesmos. 

Fragmento do perfil de Joseph H. Lewis publicado em novembro de 2006 em http://sensesofcinema.com/2006/great-directors/lewis_joseph/. Tradução: Giovanni Comodo.

[1] Michael Covino, “Gun Crazy”, East Bay Express (Oakland, California), July 26, 1991.

[2] Paul Schrader in Cinema, 5 (1), p. 44

[3] Schrader, p. 43.

[4] Lançado um mês antes de Mortalmente Perigosa, Amarga Esperança de Nicholas Ray também segue um casal de amantes desajustados, contudo sua melancolia romântica parece ser o próprio oposto da energia perversa de Lewis. Os inocentes de Ray desejam um vida respeitável “como pessoas de verdade”, enquanto forças externas os reprimem, especialmente suas origens sociais, com o rapaz tendo testemunhado o assassinato do pai e com a garota abandonada pela mãe com seu pai alcoólatra incorrigível.A única comparação possível de Ray com o relacionamento sexual unido por violência de Mortalmente Perigosa é uma cena em que Farley Granger beija Cathy O’Donnell grosseiramente enquanto ela destrói objetos com a arma dele.Além disso, o casal de Ray,de penugem de pêssego e olhos brilhantes, banhado em luzes delicadas em close-up românticos é a antítese do duo amante dos gatilhos de Lewis, caracterizados por Pauline Kael como de um “encardido fascinante”. De fato, a virginal Keechie de Ray não poderia ser mais oposta a libidinal Laurie, chamada por Lewis de “um cruzamento de Annie Oakley e Lady Macbeth”.

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