Madrugada da traição é um desses filmezinhos americanos cuja publicidade é tão malfeita que quase os perdemos. A Universal sabota mais que distribui. Tudo acontece como se quisessem impedir que os críticos resenhassem.
Mas não cederemos às pressões do mercado: Madrugada da traição é um filme barato, poético e violento, terno e engraçado, emocionante e sutil, dotado de uma verve alegre e de uma bela saúde.
Os créditos passam sobre o assalto a um trem na fronteira mexicana. Um dos bandidos morre nos braços do cúmplice, Santiago (Arthur Kennedy), que depois de vagar durante toda a noite encontra um jovem fazendeiro, Manuel (Eugène Iglesias) e sua encantadora mulher Maria (Betta Saint-John). O filme é a história da viagem de Santiago e Manuel à cidade onde vão vender os relógios roubados, do retorno a casa, passando por um cabaré e do desfecho, bastante movimentado e imprevisto.
Mas o essencial reside, sobretudo, no relacionamento dos três personagens, de uma fineza e ambigüidade realmente romanesca. Um dos mais belos romances que conheço é Jules e Jim, de Henri-Pierre Roché, que nos mostra dois amigos e sua companheira comum se amarem durante a vida inteira de um amor terno e quase sem choques, graças a uma moral estética e nova incessantemente reconsiderada. Madrugada da traição foi o primeiro filme que me deu a impressão de que é possível um Jules e Jim cinematográfico.
Edgar G. Ulmer é certamente o mais desconhecido dos cineastas americanos e poucos colegas meus podem se gabar de haver assistido aos poucos filmes dele lançados na França, todos surpreendentes em frescor, sinceridade e inventividade: Flor do mal (The strange woman) (um Mauriac maltratado por Julien Green), Kyra, a escrava de Bagdá (Babes in Bagdad) (“marivaudagem” voltairiana) e O insaciável (Ruthless) (balzaquiano). Esse vienense, nascido com o século, assistente de Max Reinhardt e depois do grande Murnau, não deu sorte em Hollywood, provavelmente por não saber “compor” com o sistema. Seu humor, sua bonomia, sua ternura pelos personagens que retrata nos fazem irresistivelmente pensar em Jean Renoir e Max Ophüls, e no entanto o público do Champs-Elysées vaia levianamente o filme, como o fez a alguns meses com A morte num beijo (Kiss me deadly) de Robert Aldrich.
Falar de Madrugada da traição equivale a traçar o perfil de seu autor, que advínhamos por trás de cada imagem e temos a sensação de conhecer intimamente ao acender-se a luz. Sensato e indulgente, divertido e sereno, vivo e lúcido, em suma, um benevolente, como todos aqueles de quem o aproximei.
Madrugada da traição é um desses filmes que sentimos nitidamente terem sido filmados com alegria, em cada plano percebemos o amor pelo cinema e o prazer de realizá-lo. É um filme que se tem prazer em rever e do qual gostamos de falar com os amigos. Um presente que nos chega de Hollywood...
(1956)
Texto extraído do livro Os filmes da minha vida, de François Tuffaut (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. pp. 188-9) Tradução: Vera Adami.
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