por Raúl Ruiz
As três poéticas do cinema de Raúl Ruiz - a última incompleta - foram reeditadas no Chile pelas Ediciones UDP, numa nova tradução em espanhol por Alan Pauls. Escritas majoritariamente em francês, Apresentamos aqui o prólogo da Poética 2, traduzida a partir do texto de Pauls.
As páginas que seguem são uma tentativa - uma primeira tentativa - de reunir, no menor espaço possível, o corpus de opiniões, intuições e razões que ao longo dos anos me levou a fazer filmes. É inevitável que de vez em quando a uma razão siga-se uma objeção, a uma intuição um chiste e a uma opinião uma provocação ou um desafio. O cinema é um ofício militar, que compartilha muitas de suas ocupações: madrugar, longas marchas, comida ruim, gente mobilizada. Arte solar por excelência, o cinema exige ter a cabeça nas nuvens e os pés no chão. Primeira vítima do processo de industrialização da cultura, o cinema se tornou de uma só vez a arte mãe da maioria das artes aplicadas (ao que parece, um dos traços distintivos do nosso tempo é a tendência de encadear e desencadear processos que aparecem subitamente).
Chamar o cinema de "arte mãe" tem mais de um sentido. Recordemos que durante anos atribuiu-se-lhe o mérito de ser a arte manipuladora, a orquestradora de todas as belas-artes que a precederam. O teatro, a música, a literatura, a pintura, a arquitetura e a dança encontraram no campo cinematográfico um modo eficaz de se entender e cooperar criativamente numa espécie de ópera do mundo. À sua maneira, propiciando esse jogo de encontros bem sucedidos e falidos entre as distintas disciplinas artísticas, a atividade cinematográfica realizava uma operação intelectual muito parecida a essa prática religiosa que a cultura chinesa chamava Chang: a arte de manipular religiões. No Chang, através de um jogo de mediações, interrelações e reflexos, o budismo podia colocar o taoísmo em perspectiva e recorrer, em caso de perplexidade, ao confucianismo. Na arte cinematográfica, o retrato rítmico dos fatos do mundo reinventa o teatro; o espírito da dança pode inspirar e suscitar novas formas de expressão valendo-se das três mil e tantas mímicas que o rosto pode criar e expressar. Opera mundi, arte mãe, o cinema se tornou de pronto uma arte criminosa, a mãe que, invocando a "razão de Medéia", mata seus filhos e, como Cronos, os devora. O cinema se converteu no mar morto onde desembocam as artes agonizantes de nosso mundo.
"Triste época", diremos. Mas isso não é tudo. O cinema é também a arte mãe das distintas maneiras de industrializar as demais atividades que o envolvem e o explicam. Lugares comuns, dirão. Sem dúvida. Mas não esqueçamos que o lugar comum é o refúgio perfeito das coisas inexplicáveis: "O século XXI será religioso ou não será", dizia Malraux, e a frase, à força de ser repetida, se tornou outro lugar comum, até que o atentado contra as torres gêmeas de Nova York a transformou num enigma terrível. "O cinema, arte para todos": outro lugar comum. Sua contrapartida são as mil salas vazias ou transformadas em templos para seitas. Preencher os lugares públicos é o lugar comum por excelência da sociedade das massas, e a desaparição da noção de pleno emprego é seu correlato irredutível.
Onze anos separam estas linhas da primeira parte de minha Poética do Cinema. Entretanto, o mundo mudou, e o cinema com ele. A "Poética do Cinema 1" devia ser um chamado à rebelião. O que escrevo hoje está mais para uma consolatio philosophica. Porém, que não se confunda: um pessimismo salutar pode valer mais que um otimismo suicida.
"Luz, mais luz!", disse Goethe antes de morrer. "Menos luz, menos luz", repetia Orson Welles num cenário de cinema, na única vez que o vi. No cinema atual, (e no mundo) há muita luz. É hora de voltar às sombras. Portanto, meia-volta e às cavernas!
As ideias que desenvolverei aqui (por vezes de maneira errática) giram em torno de três intuições ou metáforas. A primeira é que as imagens que compõem um filme determinam o tipo de narração que o estrutura, e não o oposto. A segunda afirma que um filme não é composto por uma determinada quantidade de planos, mas sim decomposto por eles: ver um filme de 500 planos é ver 500 filmes. A terceira sustenta que um filme só tem valor - no sentido estético da palavra - se vê o espectador tanto quanto é visto por ele.
Qualquer leitor razoável compreenderá que estas três intuições são mais sensações que ideias gerais; sensações como o medo, a vertigem, a cólera ou a adoração. Estão mais próximas da mística que da filosofia da arte. A ideia que subjaz a todas estas reflexões é a de que um fenômeno tão estranho e esquivo como o cinema reclama antes uma aproximação poética. Faz muito tempo que o cinema vem sendo analisado com as técnicas as mais diversas. A maioria dos filmes se deixa examinar, decompor em partes. Aceitam submeter-se ao "controle de qualidade" como qualquer outra máquina, não importa o quão infernal seja. Mas há uma parte que escapa sempre à análise: a "zona escura". A sombra. Minha intenção é abordar o cinema a partir de seu lado escuro.
Durante muito tempo os artistas e artesãos envolvidos na indústria do cinema recorreram à palavra "premissa" para referir-se a essa espécie de conceito que unifica os acontecimentos de um filme. Uma das melhores de que me lembro é a seguinte: um homem que foi honesto durante toda a vida comete um ato desonesto num momento de debilidade; outro homem, que foi desonesto toda a vida, torna-se definitivamente honesto num momento de debilidade. O que aconteceria se ambos se encontrassem? As más premissas não incluíam a pergunta final; eram afirmativas, no estilo de: "A ambição leva à ruína", ou "A ruína leva à redenção", ou "A redenção leva à glória". As premissas foram desaparecendo com o tempo, e a única coisa que restou foi a pergunta final: o que aconteceria se...? Assim nasceu o What if?
Proponho-me usar da figura retórica do What if? para apreender os inúmeros fatos de que é composto um filme: os visíveis e os ocultos, os implícitos e os explícitos, os explicáveis e os inexplicáveis.
O poeta Jorge Teillier dizia que todo filme, por mal que fosse, encerra ao menos cinco minutos de boa poesia. Luis Buñuel sustentava que só os maus romances eram adaptáveis ao cinema. Meu tio Daniel Muñoz Vera, homem moderado, limitava-se a dizer: "O cinema é um veneno".
Terão compreendido vocês que estas três afirmações têm um denominador comum: o cinema escapa, trata de escapar, à maioria dos critérios de qualidade que de certo modo, com sorte, podem se aplicar às outras artes.
Não há filmes maus.
Todo filme se alimenta de restos.
Todos os filmes são phármakôn: veneno ou remédio, dependendo do caso.
Este é o tipo de problemas que intentaremos tratar ao longo das páginas que seguem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário