O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Faux Raccords



Por Alain Bergala 

De tanto repetir as grandes sentenças de Rossellini contra a montagem (“as coisas estão aí, por que manipulá-las?”), quase acabamos por acreditar na sua palavra e por fazer dele um campeão do plano-sequência e da recusa da montagem, o que a maioria dos seus filmes, até a sua época-televisão, contradizem formalmente. Seu primeiro curta-metragem, Fantasia Sottomarina, é o mais anti-baziniano dos pseudo-documentários: uma montagem de pura manipulação associada a um comentário antropomorfista esforça-se para transformar em drama, o amor contrariado de um ignóbil polvo, esses planos de pacíficos peixes filmados em um aquário de salão. Uma cena como aquela de Europa 51 onde Ingrid Bergman descobre na usina a realidade física do trabalho na linha de montagem decorre de um uso frenético e demonstrativo da montagem, um efeito de abstração e de aceleração, que deve mais ao cinema russo dos anos 20-30 que ao cinema dos anos 50. Trata-se aí certamente de dois casos extremos, mas ao se observar mais atentamente, por exemplo, os quatro grandes Bergman-filmes dos anos 50, é perfeitamente claro que eles empregam todas as figuras da montagem clássica e que um filme como Viagem, com os seus 465 planos, é igualmente fragmentado, de igual duração, que qualquer filme da época, enquanto que ele tem um programa narrativo muito menos carregado. 

Rossellini, na verdade, não só não se opõe mais a montagem como ele nunca recusou nada do lado da “manipulação” do real (transparências, trucagens ópticas, cenários falsos, efeitos de zoom,) cada vez que ele julgava que essa era a boa maneira, e a mais direta, para o filme que ele estava a fazer, de ir ao que era para ele, nesse momento, o essencial. O cinema de Rossellini é um cinema que pode assimilar tudo, plano-sequência e montagem de efeitos, profundidade de campo e planificação das lentes de longa distância focal, imagem real e imagem trucada, sem perder no entanto a sua linha e sua identidade. A moral de Rossellini nunca foi aquela do meio: é simplesmente, para ele, o que dá do mundo, em um momento preciso, uma visão e uma consciência justas. Se, na sequência da usina de Europa 51, ele pensa que é uma hipermontagem ao estilo russo que traduzirá melhor a tomada de consciência de Irène do horror do trabalho na linha de montagem, essa montagem acelerada, mesmo já muito retro, será para ele nesse momento o bom meio. Inversamente, é com a mesma soberana indiferença no que diz respeito às utilizações e às modas em matéria de linguagem cinematográfica que ele inventará, se necessário, uma nova forma, mesmo que ela seja chocante, para ir até o fim do seu projeto, se ele sente que as figuras em vigor arriscam levá-lo, através das representações do mundo que elas comprometem enquanto formas de linguagem, a trair a própria essência do novo modelo que ele tenta construir. Nos anos 50, com os Bergman-filmes, fora esse o caso do faux raccord.

Observando de mais perto, na realidade, não é a montagem em si que o desagrada — acontece frequentemente dela o agradar — é a dupla obrigação que ele encontra de utilizar o raccord no sentido da narração (como figura de base da ligação entre dois planos) e neste da sutura imaginária (como figura que permite acrescentar um fragmento do real à visão subjetiva de um personagem). Não há bom raccord, nesse começo dos anos 50, senão aquele que vai no sentido da homogeneidade do universo ficcional. Pois Rossellini está em vias de conceber uma outra relação com o mundo de suas criaturas, um universo em que a consciência do personagem, nestas circunstâncias, uma mulher, quatro vezes interpretada por Ingrid Bergman, é confrontada a duas instâncias opacas no seu imaginário mas que são, provavelmente, partes relacionadas, sem que ela saiba, para conduzi-la in extremis à ascensão imprevisível da sua verdade. Por um lado, blocos de realidade muito brutos, muito confusos, ilegíveis (mais frequentemente caóticos, que brotam, ou que estão em fusão) aos quais, apesar dos seus esforços, ela não consegue dar sentido, em que ela sente claramente que algo lhe acena, mas dos quais ela é incapaz de decifrar o enigma. Por outro lado, algo que a olha e a espera, sem jamais guiá-la nem tranquilizá-la de seus sofrimentos, uma instância da qual o espectador pode sentir de longe a presença supra-humana, mas da qual ela nem sequer suspeita. 


Para que essa heterogeneidade constitutiva não seja desnaturada pela homogeneização inerente à montagem como ligação e sutura, seria preciso que sua irredutibilidade se manifeste até na própria enunciação. Ou seja, ele precisava inventar o faux raccord como não-raccord ontológico. Talvez pela primeira vez na história do cinema, o raccord iria indicar a heterogeneidade fundamental de dois planos de realidade que ele colocava lado a lado para mostrar a desunião, o hiato, a irredutível heterogeneidade, a não-suturabilidade ontológica. Como um enxerto que designaria a incompatibilidade do “oeil” e do “sujet”, para utilizar os nomes que damos na botânica para o garfo e a planta que recebe o enxerto. É provavelmente a chegada tão improvável quanto inesperada de Ingrid Bergman na sua vida e no seu cinema que lhe dará a ideia, o modelo e a audácia, nesse começo dos anos 50, de se recusar radicalmente a suturar o que deve permanecer insuturável entre essa grande estrangeira vinda de um duplo alhures (o Norte e o cinema hollywoodiano) e o que ela vê ou atravessa sem poder o compreender: tal como o fragmento da rua napolitana em Viagem, a pesca de atuns em Stromboli, o trabalho na linha de montagem em Europa 51, etc.

Essa questão do raccord é ainda mais decisiva para compreender a revolução do cinema rosselliano, ligada ao seu tema fundamental, que sempre foi aquele da alteridade. O questionamento do raccord nunca foi nele (não mais que em Godard hoje) uma pura questão formal, mas o motor de seu trabalho de cineasta e de suas contradições de homem. Desde Paisà, grande parte dos roteiros rossellinianos giram em todos os sentidos em torno dessa questão: como raccordar o que é outro? 

Na sua vertente humanista, generosa, ecumênica, pedagógica, Rossellini não cessou de pregar a crença no bom raccord, com a possibilidade de uma total identificação com o outro, com a reversibilidade de posturas e de sentimentos que deve permitir se colocar no seu lugar, de compreendê-lo e, por conseguinte, de convencê-lo. Dos seus filmes de guerra até as séries televisivas, uma grande fascinação pela reversibilidade atravessa toda a obra de Rossellini. Em Un pilota ritorna, o mesmo piloto que, no começo do filme, bombardeia o território inimigo se encontra mais tarde no solo, bombardeado, por sua vez, pelos aviões do Eixo e compartilhando as angústias e os sofrimentos das formigas, as mesmas que ele sem dúvida provocou outrora, quando o formigueiro humano era, para ele, somente um alvo. Todos os grandes “persuasivos” dos filmes televisivos do fim de sua obra, de Agostinho de Hipona aos Apóstolos, passando por Pascal, começam por se colocar no lugar do outro, a adotar seu ponto de vista para melhor convencê-lo no final. Entre os dois, é preciso citar a maioria de roteiros rossellinianos trespassados por esses grupos de homens em marcha que trabalham com a identificação com o semelhante. Da parte da crença de Rossellini no bom raccord, eu isolaria somente um filme, De crápula a herói, cujo roteiro constitui uma verdadeira pedagogia do raccord: Emmanuele Bardone, pequeno vigarista sem talento, se encontra confinado em uma prisão onde os outros prisioneiros o tomam por um herói da resistência. De raccord pontual a raccord pontual com os outros segmentos dessa imagem do outro que lhe remetem seus companheiros de cativeiro, ele vai acabar por ser absorvido totalmente, escolhendo viver literalmente a morte do outro, numa identificação definitiva à imagem desse General della Rovere a quem tudo, no início, parecia lhe opor.

Eu não penso que os filmes fundados sob essa crença no bom raccord, se eles são mais homogêneos e bem-pensantes que os outros, contam hoje entre as obras mais vivas de Rossellini. O grande cinema de Rossellini, aquele que procura e encontra os novos modelos, inéditos, os novos ritmos, puramente cinematográficos, para falar a partir de uma nova relação com o mundo, aquelas dos tempos modernos nascidos da experiência irremediável da guerra, passa pelo mau raccord, o raccord impossível. O cinema de Rossellini nunca é tão fulgurante de justeza e de modernidade que quando registra o hiato entre dois planos, a irredutibilidade dos fragmentos de realidade que cada um arrasta consigo, contudo, com o mesmo nível de convicção. A verdade, a desgraça ou a graça — que, para Rossellini, são mais ou menos a mesma coisa e que, em todo o caso, possuem o mesmo mecanismo — se encontram precisamente ao se revelar nessa fratura que abre o filme ao heterogêneo “não reconciliado”, para parafrasear um título de Straub. Karin, a estrangeira de Stromboli, passa todo o seu tempo no decorrer do filme a procurar um bom raccord, qualquer um, em qualquer lugar, em qualquer momento, com qualquer que seja nessa ilha, uma única pessoa bastaria para salvá-la da louca solidão em que está presa, mas ela não a encontrará lá onde ela a procura, horizontalmente. É atravessando a ilha para ir procurar do outro lado, sempre horizontalmente, o barco que poderá salvá-la, que ela vai encontrar sem ter procurado o bom raccord que a esperava, vertical, algo como a comunicação absoluta, o raccord perfeito. Irène, na primeira cena de Europa 51, recusa conversar com seu filho que procura desesperadamente um raccord com ela, qualquer que seja, e que se suicida se jogando no vão da escada. Na sequência desse trauma, ela vai tentar, durante todo o filme, todos os tipos de raccords heterogêneos que se mostram muito rapidamente, a cada vez, independentemente do seu amor e sua boa vontade, ineficazes e impossíveis: nenhum consegue impedir a morte ou a desgraça daqueles que ela se aproxima e que ela queria salvar. É somente no isolamento da célula psiquiátrica, quando ela terá violentamente renunciado qualquer raccord com o mundo exterior, que ela encontrará, ela também, o raccord absoluto e sua verdade: “Para estar ligada a todos, é preciso que eu não esteja ligada a nada.” É procurando um raccord impossível com Nápoles, Pompeia e seus antigos mistérios que a mesma Ingrid Bergman, que se chama dessa vez Katherine (Karin, Irène, Katherine, eis um cineasta que dá continuidade ao significante), também está, sem o saber, no caminho para reatar o laço que ela sente irremediavelmente se desfazer com seu grande inglês desengonçado, seu marido. 


Seria preciso um longo ensaio para analisar um tanto quanto seriamente essa grande questão da alteridade e do raccord em Rossellini. Eu falei até então, sobretudo, do Real (mesmo na qualidade em que esse tema está destinado a não se realizar) e do grande Outro, mas meu último exemplo introduzirá os múltiplos avatares do pequeno outro (e Deus sabe que eles existem) nos filmes de Rossellini. Eu os pegarei em dois curtas-metragens, obras consideradas “menores”, obras de divertimento onde a vigilância sendo menor, a censura o é também frequentemente. Trata-se da questão, nos dois casos, do raccord com um pequeno outro, ele também considerado menor, um animal doméstico, como revelador dos desejos e da culpabilidade dos personagens. Em A inveja, adaptado de Colette, a mulher tem ciúmes do raccord muito bom do homem com sua gata e irá cometer até uma tentativa de assassinado contra o animal. Em um longo afrontamento em tête-à-tête, em campo-contracampo, a alteridade da mulher e da gata são negadas, elas são filmadas igualmente, como semelhantes, simétricas no que diz respeito ao amor pelo homem: o ciúme nasce precisamente desse sentimento de equivalência, dessa possibilidade de identificação com o outro sem a qual não poderia haver rivalidade. A identificação da mulher com o animal que lhe assemelha, mesmo sendo de uma outra espécie, é um “mau raccord” que resulta no crime e na culpabilidade. O bom afeto, em Rossellini, só saberia se articular através da franca alteridade, aqui o homem e a gata, ou através da fusão de identidade, jamais pelo entremeio. Em Ingrid Bergman, terceiro episódio de Nós, as mulheres, um home movie incrivelmente moderno filmado por Rossellini em 1952 na vila do casal em Santa Marinella, Ingrid tem um raccord muito bom (un très bon raccord) com seu bom e corpulento cão Lajocono, que encarna para ela, visivelmente, uma figura masculina, doméstica e protetora, tranquilizadora, ela lhe fala aliás como a um companheiro. O mesmo não acontece com a galinha da vizinha, que ela acusa de devastar as suas rosas e que ela vai sequestrar, colocando-a no armário da cozinha, para poder receber tranquilamente seus convidados. A vizinha, ela própria se parecendo com uma galinha, vem reivindicar seu animal: Ingrid Bergman finge-se de inocente quando ela é traída pelo animal que começa a gritar, no momento oportuno, no armário. A vizinha indignada recupera seu bem e vai embora tratando-a como uma ladra de galinhas em frente aos seus convidados. Aí também, a alteridade radical entre a mulher e seu cão é a garantia de um bom raccord, o péssimo desejo e a culpabilidade que daí resulta ligam-se ao que é, ao mesmo tempo, semelhante e diferente, ou seja, a outra mulher equiparada a uma galinha. Através desses dois roteiros animalescos, bastante simples, manifesta-se claramente uma constante da problemática rosselliniana e de seu bestiário.


No cinema de Rosselini, a alteridade é ora negada pela possibilidade de uma total identificação com o outro como semelhante (por uma vontade de crer na perfeita reversibilidade das posturas e dos sentimentos), ora dada como irredutível, e nesse caso ela se torna enigma, fonte de mal-estar e de sofrimento, mas também é a causa da reflexão, de bruscos progressos da consciência, de mutações. O que permanecerá sempre mau, incompreensível, sinal de perturbação e decadência aos olhos desse homem que, contudo, tentou toda a sua vida tudo compreender, é o que vem perturbar essa separação da qual ele precisa que permaneça sempre bem definida entre o outro como alteridade e o outro como semelhante. O raccord, para Rossellini, deve manifestar claramente essa bipartição. Ele deve ser justo se ele une o semelhante, falso se ele une a alteridade. Entre os dois, não há nada a negociar nem a transigir: é sobre isso que ele não quer saber de nada. 

O texto Faux Raccords foi extraído do livro Roberto Rossellini, publicado em 1990, sob a direção de Alain Bergala e Jean Narboni. Tradução: Letícia Weber Jarek.

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