Por Miguel Haoni
Desde sempre, o filme brasileiro precisou lidar com uma instância, concreta e abstrata, chamada “realidade brasileira”. Em virtude do acordo ontológico entre o cinema e o real, pode-se dizer isso de qualquer filme de qualquer país, mas no caso da nossa cinematografia e de seus ciclos históricos, este dado ganha o flagrante relevo de uma ambição, um programa. Trata-se aqui de uma categoria arbitrária, escorregadia, mas que compõe invariavelmente o repertório existencial de qualquer “brasileiro”. Vivemos esta realidade, a experimentamos diariamente com a nossa percepção, sabemos o que ela é, mas não conseguimos dizê-lo. Alguns, porém, estabeleceram aproximações fascinantes: poetas, músicos e poucos - e a cada ano, mais raros - cineastas.
Para minha amada morta (Aly Muritiba, 2015) é um exemplo sintomático da dupla traição que fundamenta os filmes brasileiros recentes: primeiro, uma traição ao cinema e às suas potencialidades expressivas; segundo, uma traição àquela porção de realidade que o filme pretendia dar a ver.
Ausência do corpo
O filme se ambienta no mundo adulto, mas este mundo é como que concebido por um adolescente: tão sério, tão triste, tão profundo... Testemunhamos nele a obediência cega a esta moda do cinema de festivais: vivemos num país sem-graça, povoado por autômatos castrados que falam sussurrando. Temos muita dificuldade em reconhecer este país e seus habitantes. Na criação dos personagens e na ponte que eles estabelecem com o referente material é como se houvesse uma extração arbitrária de tudo o que é verdadeiro e intenso. O que vemos na tela é um desfile de figuras destituídas de humor, tempero, vulgaridade e inteligência: as belezas invisíveis do adulto.
Reencontramos estes personagens em uma porção de outros filmes brasileiros recentes fundamentados num arrastamento mórbido, na apresentação de afetos destituídos de carne e sangue, que nos introduzem a uma espécie sem sexo nem risco (mesmo na exploração pornográfica), conectada por relações rarefeitas. São corpos frios estes que vemos nas telas.
Isto poderia ser um projeto dramatúrgico: o personagem sem-graça que leva uma existência sem poesia - mas carregada de um verniz de fácil efeito poético - parece uma forma de síntese decantada do olhar destes artistas sobre o real, na qual a extração de certas virtudes inerentes ajude a potencializar outras. Mas quais?
Nestes filmes a desdramatização parece reduzida a um cacoete vazio. Para entender isso, talvez seja conveniente recorrer ao cineasta mais imitado desta geração, o português Pedro Costa. A austeridade de Ventura, protagonista de seus últimos filmes, reflete uma depuração: o ator é destituído da totalidade de seus gestos porque interessa ao filme apenas os gestos essenciais. De seu comportamento real extraem-se apenas as partes reconhecidamente vibrantes, as que garantem acesso a um ideal do gesto. Nada disso, porém, aparece aqui. A escola oferecida pelos festivais ensina a arte da diluição estética fantasiada de novidade: tomam pedras brutas como as de Pedro Costa e as esfarelam através de suas imitações. E imitações das imitações, infinitamente.
Branco sai, preto fica de Adirley Queiroz (2015)
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Pensando ainda um pouco mais no cineasta português, a sua influência se prolonga também nos tão prostituídos “processos”, quando flagramos os cineastas - edital debaixo do braço - subindo o morro ou penetrando o sertão maranhense na busca por “vivências e imersões”. Alugam um quartinho, tomam cachaça e comem buchada de bode, mas esquecem que era condição estudar este espaço com um olho de pintor. O mesmo que Costa dedicou às Fontainhas; Estabelecem uma “residência”, mas ignoram que aquilo que o português consegue extrair advém também de uma relação muito genuína com o cinema e sua história.
Podemos pensar, por outro lado, que essa paralisia, esse acuamento dramático seja uma resposta a certa tradição de histeria no cinema de autor brasileiro. Nos filmes de Glauber Rocha e de Rogério Sganzerla os personagens gritam, filhos de um excesso radicalmente oposto ao que vemos hoje. Mas lá, eles respeitavam uma vulgaridade orgânica à realidade representada, que os atores precisavam conduzir a um limite dionisíaco de inspiração, a uma febre. Isso imprimia nos filmes uma energia de qualidade descomunal. Ouvindo os gritos de Helena Ignez nos filmes de Sganzerla ou de Antonio Pitanga nos filmes de Glauber acessamos a níveis sedimentares, primitivos do real e de um ethos brasileiro. O cansaço do ator no cinema brasileiro contemporâneo conduz tão somente a um teatro muito raso da sensibilidade de seus diretores.
Voltando, enfim, ao Para minha amada morta acompanhamos em sua extrema contenção dramática a promessa permanente de uma explosão. Promessa frustrada, concentrada nas expressões imutáveis dos rostos dos personagens. O protagonista do filme, Fernando, não possui nuance nenhuma: veste uma máscara única e seu corpo é reduzido à função de sustentá-la.
Essa ausência do corpo encontra a culminância na deserotização do nu frontal. O close genital não incendeia. Ao contrário, reforça a experiência emasculada do filme. Não existe a menor provocação nestas imagens, elas apenas flutuam, como as outras, na piscina de letargia em que bóia o filme.
Reflexo também de uma visão ultraconservadora, ao sexo é impresso um caráter negativo, maligno. Segundo o filme não existe prazer, alegria ou beleza no ato sexual e sua energia revolucionária é sufocada por uma culpa burguesa. A este sentimento, por sua vez, é recusada uma possível abertura a um pathos incandescente à maneira de Nelson Rodrigues.
A insuficiência na “dinâmica” câmera-corpo-mundo atua também nesta espécie de jogo das decapitações, copiado da cineasta argentina Lucrecia Martel. Os quadros organizam impecavelmente todos os dados da fotografia e da direção de arte, mas subordinam o fator humano ao seu preciosismo: na tela, ou temos um rosto em cena ou um corpo sem cabeça.
Ausência do espaço
Esta ausência humana encontra eco em outra lacuna: a do mundo. As imagens prometem nos pôr em presença de um organismo urbano extraído da matéria sensível que compõe e conecta periferia e centro. Mas a linguagem adotada no filme bloqueia esse acesso. A periferia curitibana, que o filme pretende dar a ver, é reduzida a uma abstração: um pano de fundo difuso, informe, um espaço ausente, destituído da espessura e densidade da realidade. Não se trata apenas do desprezo pelos sentidos sócio-políticos exigidos por certo realismo crítico, mas pela pura e simples experiência bruta e pulsante da vida - que o filme parece desconhecer. A periferia aparece como um imenso portfólio para o diretor de fotografia, e esta “poética” da lente de foco curto. Tratamento oposto ao que vimos em outros tempos no cinema brasileiro, que sempre tomou a periferia das grandes cidades como espaço privilegiado para as suas imagens. Em Para minha amada morta não acompanhamos um olhar inspirado sobre o mundo, mas o mundo tomado como discurso. Neste regime a periferia vira um conceito de periferia.
O mundo é recusado como dado empírico e o ar que sopra no filme é o ar viciado destas grandes vitrines de uma vida de plástico, oferecidas pelos festivais. Ali é como se os filmes a serem feitos não mais estivessem em potência nas coisas do mundo, mas na letra fria dos pitchings e mesas de negócios.
Derivado “com grana” do cinema universitário, Para minha amada morta profissionaliza seus vícios. Apresenta uma atualização do “filme de apartamento” - o filme sem mundo por excelência. Um plano frustra em especial: quando no retorno do culto evangélico, Salvador e Estela, pai e filha discutem ao fundo, fora de foco, entregando uma cena sólida, a câmera escolhe reter-se em Fernando no primeiro plano, no gesto pseudo-poético de fumar na janela. O filme recusa deliberadamente a transpiração em troca da mais desgastada imagem de drama existencial infanto-juvenil.
Quando o espaço urbano consegue enfim aparecer na tela, causa a impressão de não ser habitado. No filme ecoa o desaparecimento das cidades vivas, tão recorrente no cinema brasileiro recente. Quando o filme vai ao espaço público, em vez de tomá-lo de assalto, como os cineastas faziam desde os irmãos Lumière, ele escolhe seguir as lições dos professores da faculdade de cinema: fechar o espaço, esvaziá-lo e substituir as pessoas por figurantes. Pelo menos é isso o que nos dizem as imagens.
Essa ausência talvez seja explicada pelo fato de que pelo menos nos últimos vinte anos o cinema foi tomado por equipes de publicidade. Profissionais “vacinados” nos macetes dos direitos de imagem insuflaram nos nossos cineastas-empresários um pânico jurídico que os coage a extirpar as pessoas reais de seus planos. Com a burocratização, o filme brasileiro não pode mostrar os brasileiros e na ausência de uma escola de figurantes, os filmes ganham este pano de fundo de telenovela. São filmes paralisados pelo medo de ir à realidade.
Não que seja uma obrigação a captura direta do espaço real. Por muito tempo filmou-se em estúdio na Alemanha, nos EUA, na Itália e em muitos outros países, e aquelas reconstruções foram essenciais para a investigação de alguns estratos do real. A mentira é uma das formas mais interessantes de dizer a verdade. Pensemos em Vincente Minnelli e o vigor com que a vida flui na saturação de suas construções. Ou, para não irmos muito longe, pensemos nos últimos documentários de entrevista de Eduardo Coutinho em que o depoente é isolado em um fundo quase neutro, de estratégica simplicidade, para que toda uma experiência de mundo se desdobre com a sua fala. Da mesma forma que nos trabalhos mais interessantes de desdramatização do ator, a redução espacial abre um novo campo de experiência sensível. O que, novamente, não é o caso.
Para minha amada morta é “cinema da idéia”: idéia pronta, protocolar, sufocada pelas certezas. Por exemplo, a família que representa o lado mal, traidor e hipócrita do filme é também evangélica. Um dado gratuito, superficial, concebido como que para atender a fúria das retóricas engajadas de sua clientela. Que cineasta é esse que consegue ir aos cultos evangélicos da periferia e não nos trazer rigorosamente nada do seu sentido e da sua beleza, nada além daquilo que já “sabia”, que já havia concebido e testado em labs de roteiro? Pensando a maneira do crítico André Bazin, a virtude mais bela do cineasta talvez seja, ainda, a humildade. No trato com o real, falar menos e ouvir mais.
Neste sentido, parafraseando Tom Zé, o cineasta brasileiro está, cada vez mais, “parecido com um machado, que fere o sândalo e ainda quer sair perfumado”. Desrespeita como pode a matéria do filme, mas sempre a usa como blindagem discursiva: neste caso, reduz o morador de periferia a uma caricatura grosseira enquanto se pretende a “voz do povo”.
Para minha amada morta é concebido como puro enunciado. Não convida, em momento algum, o espectador a jogar com ele, por mais que se trate de um thriller com a pretensão de dialogar com a tradição do gênero. O filme não equilibra as energias na sua duração, não articula o encadeamento dramático no tempo: emite uma única voz, numa única intensidade. A vida, em sua complexidade inerente, não é convidada a penetrar nessas imagens. O diretor não é mais um observador, mas o rígido executor de uma ordem do dia que vai ao mundo com o filme pré-fabricado, e converte o imprevisto, que, historicamente, foi o maior aliado dos cinemas pobres, em seu inimigo.
Ao mesmo tempo, cava uma distância gigantesca de sua própria dramaturgia: o filme não se posiciona na trama, não arrisca uma escolha. Todas as arestas são polidas, tudo é amortecido. Não sabemos nada sobre os personagens, nada é acessível, apesar de tudo se encontrar na superfície. O enredo se cola ao protagonista, mas não existem estratégias formais para que o espectador atravesse a experiência junto com ele. Não somos conduzidos a penetrar o drama. Podemos acreditar que, já que o filme não se passa no mundo, ele deveria ao menos se passar na cabeça doentia de Fernando, mas esse regime de platitude vaporosa elimina o peso que as ações deveriam ter. No que concerne ao motor central do filme - a traição -, será mesmo que fazer o viúvo cheirar os vestidos e organizar os sapatos da falecida esposa é suficiente para nos dar a dimensão da importância dela na vida dele? Será mesmo que aquelas poucas imagens de vídeo são suficientes para que o espectador embarque numa vingança doentia? Outro problema: existe uma promessa de relação interessante entre Fernando e Estela (minha personagem predileta), mas que esbarra nesse jogo de insinuações: nasce uma amizade entre eles? Trata-se aqui de atração física? Quanto maiores as promessas, maiores as frustrações. E não se trata do cultivo da ambigüidade no sentido da riqueza e complexidade dos significantes, mas sim no sentido da pobreza, da fragilidade na condução dramática. O filme é como alguém que só se comunica por frases vagas, e comercializa uma sensação de inteligência. É uma comodidade fantasiada de desafio ao receptor.
Hipertrofia do quadro técnico
Em virtude desta pobreza na dramaturgia dos corpos, na ausência de um trabalho com o espaço, na falência do olhar de síntese que o cineasta lança para o mundo, o filme escolhe “compensar” com a intervenção paquidérmica de seus colaboradores.
Reencontramos aqui a estridência da bem-feitura publicitária. O cinema do “plano bonito”, que toma a complicação cosmética do quadro como um fim em si e que dispõe de uma maquinaria sofisticada para tornar uma imagem inócua em algo interessante, rentável. O filme como fábrica de belos frames desligados de um percurso visual, destituídos de drama.
Imagens cujo sentido é o exato oposto daquele que Jean-Luc Godard localizava em Amargo triunfo (Bitter victory, Nicholas Ray, 1957) quando escreveu: “Por que razão ficamos gelados perante as fotografias de Amargo triunfo, embora saibamos que são as fotografias do mais belo dos filmes? Porque não exprimem nada. E por boas razões... a fotografia de Curd Jurgens, perdido no deserto de Tripoli, ou de Richard Burton ridiculamente vestido com um albornoz branco, já não tem qualquer relação com Curd Jurgens ou Richard Burton na tela. Um abismo que é todo um mundo. Qual deles? O do cinema moderno.” Cada quadro em Para minha amada morta promete um filme melhor do que aquele que experimentamos na duração de sua projeção.
Isso deriva em primeiro lugar da velha seqüestradora do cinema brasileiro: a “fotografia belíssima”. Aqui o filme tangencia a moda do “longo-plano-seqüência com câmera fixa”, alegria dos curadores internacionais. Um bolo de noiva: impressiona, mas é oco, sem substância, intragável. No lugar da luz, o look; e no lugar do mundo, a direção de arte, cuja disposição dos objetos em vez de oferecer um acesso profundo ao universo dos personagens atende perfeitamente às ambições de perfumaria do filme.
Enfim, a nova estrela do cinema nacional: o design de som; cuja colaboração atua como uma grande muleta para o acuamento das cenas. Destaco pelo menos duas intervenções de desmedida agressividade: a apresentação de Fernando no culto evangélico, em que a cena é interrompida por uma mistura de turbina de avião com liquidificador; e o primeiro longo plano-sequencia em que se desenrola mais um dos muitos diálogos esvaziados (nos quais pesa esta distância entre cada linha do texto, como se a máxima distensão garantisse densidade ao recito). Os personagens dialogam, a câmera se concentra no rosto de Fernando e antevemos mais uma promessa de transbordamento das tensões. A ação física é então transportada para o som: o ator em primeiro plano remove pedras com uma pá, mas em vez de mostrar o jogo que este corpo vai desenhar com a ação no espaço (lugar essencial no cinema), ele transfere esta responsabilidade. No alcance insuficiente do olhar do diretor, os ruídos se encarregam à função de imprimir drama e intensidade ao filme. O resultado é a cristalização do refrão tão comum no cinema universitário: um filme nitidamente “resolvido na pós”.
Sabemos que é preciso generosidade com os jovens cineastas brasileiros. O incentivo e o apoio são fundamentais para que este cinema possa se fortalecer. Mas não a qualquer preço. Pelo menos, não ao preço da desonestidade. Não me parece saudável a unanimidade em torno da promoção deste assassínio da sensibilidade e da inteligência no nosso cinema. Por mais que se pense estrategicamente, que da quantidade virá a qualidade, à maneira dos cinemas industriais e dos mercados já consolidados, não é justo ignorar que a falta de talento senta no trono do cinema brasileiro há pelo menos 20 anos. Desde a “retomada” celebramos filmes ruins na espera que os bons apareçam. A algum tempo o curto-circuito da mediocridade, atrelado ao grande circuito internacional, se consolida como um poder no nosso meio cultural. Para minha amada morta é apenas uma face deste processo.
Enfim, cinema não se faz com a técnica (com muito ou pouco dinheiro). Cinema se faz com a alma. E no caso do cinema brasileiro, com a realidade brasileira.
Pelo menos se fazia.
Crítica implacável. Posso replicar no meu blog ?
ResponderExcluirMuito obrigado, Roberto.
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