No mês de março, apresentamos um dossiê em homenagem ao centenário do crítico-cineasta Éric Rohmer, através de nove textos dos quais seis vieram da coletânea lançada um mês antes, Le sel du présent.
Editado pela Capricci, Le sel du présent se insere num esforço recente de redescoberta da Nouvelle Vague a partir dos seus textos: em 2019, a Gallimard organizou a coletânea Chronique d’Arts-Spectacles com textos de François Truffaut no periodo 1954-1958; em 2018, as Éditions Macula lançam as quase três mil páginas da obra completa de André Bazin; no começo do mesmo ano, a Post-Éditions edita todos os textos críticos de Jacques Rivette.
Este esforço veio acompanhado por um renovado interesse pelos filmes. Nos textos e nos filmes, a diferença entre a crítica e a realização é de grau, não de natureza. Descobrimos um cineasta também através da sua escrita. Como bem disse Jean-Luc Godard, já em dezembro de 1962 : “Frequentar os cineclubes e a Cinemateca era já pensar o cinema e pensar no cinema. Escrever, era já fazer cinema, entre escrever e filmar há uma diferença quantitativa mas não qualitativa. Enquanto crítico, considerava-me já um cineasta.”
Se por um lado, seguindo a pista de Camille Nevers, Le sel du présent se insere na linhagem do Dictionnaire du Cinéma de Jacques Lourcelles, por outro revela um Rohmer mais ou menos secreto: não aquele da eternidade, mas o da atualidade. Que se entusiasmou, como todo mundo, diante de Kalathozov, Bergman, Tashlin e Mizoguchi. Que arriscou e errou. Que não era só elegância mas também veneno. E cujos pequenos textos (para a revista Arts, por exemplo), muitas vezes ditados pelo telefone, no calor da urgência jornalística, revelam a fonte que desaguará nos grandes textos (para a Cahiers du Cinéma, por exemplo) e, sobretudo, nos seus filmes.
Noël Herpe foi o organizador de Le sel du présent. É, ele também, crítico-cineasta, bem como historiador do cinema, professor-ator e um dos pesquisadores mais importantes no campo dos estudos cinematográficos.
Para fechar a homenagem a Éric Rohmer, Noël Herpe “fura a fila” e abre a nossa série de entrevistas aqui na França. Pretendemos através dela apresentar alguns personagens, mais ou menos conhecidos, que ajudam a pensar o cinema no nosso tempo, através da crítica ou da realização de filmes, e que provam através dos seus trabalhos, do seu percurso e das suas ideias que, diferente do que pensamos muitas vezes, o cinema está vivo.
Nem que seja como fantasma. Conversamos com Noël Herpe sobre a história do cinema francês: sobre a Tradição de Qualidade, a Nouvelle Vague e seus herdeiros, sobre cinema e teatro, autores e atores e sobre como no quadro da pesquisa universitária é possível desenvolver um trabalho que ao mesmo tempo respeita a integridade dos objetos e permite uma observação pessoal, uma escrita íntima.
Boa leitura!
Miguel Haoni
Vestido sem costura: Nós conhecemos seu trabalho, ainda no Brasil, por meio da biografia de Éric Rohmer que você escreveu com Antoine de Baecque. A qualidade da escrita e o rigor da pesquisa nos cativaram imediatamente. Como foi, para você, a imersão na vida e no trabalho do cineasta?
Noël Herpe: Eu havia publicado vários livros sobre Rohmer, como Rohmer et les autres, a partir de um colóquio da época, quando fui professor em Chicago. Eu o havia entrevistado diversas vezes (principalmente para France Culture, na que foi sua última entrevista, em torno do seu texto O celulóide e o mármore). Foi na sequência de tudo isso que Antoine de Baecque me propôs de escrever a biografia com ele. Nós fomos juntos ao IMEC (Institut Mémoires de l’Édition Contemporaine) onde tinha acabado de chegar o fundo de arquivos do Rohmer – e nós escrutinamos o fundo, nós o descobrimos na verdade, pois na época ele era ainda inédito. Foi muito apaixonante descobrir as cartas de André Bazin, fotos de locação, fitas cassetes, entrevistas com seus atores (que ele tinha o hábito de registrar para preparar suas filmagens). Foi uma imersão.
Eu conhecia um pouco o IMEC, pois eu tinha dado aula em Caen durante alguns anos. E eu tenho esse gosto pelos arquivos que eu compartilho com Baecque. Os pesquisadores de cinema vão mais facilmente para a teoria ou a estética. O arquivo é ingrato, toma tempo, é solitário… De minha parte, eu sempre me dediquei aos trabalhos monográficos a partir dos arquivos. Me interessa tentar descobrir, não a face escondida de um autor, mas uma certa estrutura de seu trabalho artístico, uma certa estrutura em curso, um movimento em curso. No que concerne Rohmer, não se tratava de contar sua vida e sua obra, mas sim tentar compreender o movimento de sua criação, graças também às inúmeras entrevistas, com mais ou menos 80 pessoas que trabalharam com ele. Acredito que é preciso uma certa empatia para que isso funcione: é preciso ser capaz de se identificar ao artista de que falamos. Me parece que eu identifiquei em Rohmer algumas tendências que eu tinha, sem dúvida, em mim. No fundo, nós procuramos sempre no outro, no artista que admiramos, algo que temos vontade de descobrir em nós mesmos; é um jogo de espelhos.
Atualmente, eu preparo para a editora Capricci uma coletânea de textos inéditos de Rohmer (Le sel du présent) São artigos que ele publicou na revista Arts nos anos 50. Escritos muito polêmicos, nos quais ele fala de toda a atualidade cinematográfica desse período. É um Rohmer que conhecemos pouco, frequentemente maldoso e injusto, muito marcado pela ideologia: todo um aspecto que ele tentou, em seguida, fazer ser esquecido. Dito isso, eu falei com ele, pouco antes de sua morte, deste projeto de reedição e ele o aprovou.
Quais são os seus filmes preferidos do Rohmer ?
Eu gosto muito de O raio verde, que é para mim o mais surpreendente. É um filme que, pessoalmente, me tocou muito quando o vi na sua estreia e que, sem dúvida, desencadeou em mim meu grande amor por este cineasta. Foi como um amor à primeira vista, um raio verde que eu tive como cinéfilo. Antes, existiram outros filmes que eu não tinha entendido muito bem quando os vi na televisão (à meia-noite, adolescente, nas brumas do quase-sono): O signo do leão e Minha noite com ela. Eu descobri a sua importância mais tarde.
Noël Herpe: Eu havia publicado vários livros sobre Rohmer, como Rohmer et les autres, a partir de um colóquio da época, quando fui professor em Chicago. Eu o havia entrevistado diversas vezes (principalmente para France Culture, na que foi sua última entrevista, em torno do seu texto O celulóide e o mármore). Foi na sequência de tudo isso que Antoine de Baecque me propôs de escrever a biografia com ele. Nós fomos juntos ao IMEC (Institut Mémoires de l’Édition Contemporaine) onde tinha acabado de chegar o fundo de arquivos do Rohmer – e nós escrutinamos o fundo, nós o descobrimos na verdade, pois na época ele era ainda inédito. Foi muito apaixonante descobrir as cartas de André Bazin, fotos de locação, fitas cassetes, entrevistas com seus atores (que ele tinha o hábito de registrar para preparar suas filmagens). Foi uma imersão.
Eu conhecia um pouco o IMEC, pois eu tinha dado aula em Caen durante alguns anos. E eu tenho esse gosto pelos arquivos que eu compartilho com Baecque. Os pesquisadores de cinema vão mais facilmente para a teoria ou a estética. O arquivo é ingrato, toma tempo, é solitário… De minha parte, eu sempre me dediquei aos trabalhos monográficos a partir dos arquivos. Me interessa tentar descobrir, não a face escondida de um autor, mas uma certa estrutura de seu trabalho artístico, uma certa estrutura em curso, um movimento em curso. No que concerne Rohmer, não se tratava de contar sua vida e sua obra, mas sim tentar compreender o movimento de sua criação, graças também às inúmeras entrevistas, com mais ou menos 80 pessoas que trabalharam com ele. Acredito que é preciso uma certa empatia para que isso funcione: é preciso ser capaz de se identificar ao artista de que falamos. Me parece que eu identifiquei em Rohmer algumas tendências que eu tinha, sem dúvida, em mim. No fundo, nós procuramos sempre no outro, no artista que admiramos, algo que temos vontade de descobrir em nós mesmos; é um jogo de espelhos.
Atualmente, eu preparo para a editora Capricci uma coletânea de textos inéditos de Rohmer (Le sel du présent) São artigos que ele publicou na revista Arts nos anos 50. Escritos muito polêmicos, nos quais ele fala de toda a atualidade cinematográfica desse período. É um Rohmer que conhecemos pouco, frequentemente maldoso e injusto, muito marcado pela ideologia: todo um aspecto que ele tentou, em seguida, fazer ser esquecido. Dito isso, eu falei com ele, pouco antes de sua morte, deste projeto de reedição e ele o aprovou.
Quais são os seus filmes preferidos do Rohmer ?
Eu gosto muito de O raio verde, que é para mim o mais surpreendente. É um filme que, pessoalmente, me tocou muito quando o vi na sua estreia e que, sem dúvida, desencadeou em mim meu grande amor por este cineasta. Foi como um amor à primeira vista, um raio verde que eu tive como cinéfilo. Antes, existiram outros filmes que eu não tinha entendido muito bem quando os vi na televisão (à meia-noite, adolescente, nas brumas do quase-sono): O signo do leão e Minha noite com ela. Eu descobri a sua importância mais tarde.
Eu gosto muito também de A mulher do aviador, um de seus filmes mais livres junto com O raio verde. Por outro lado, Minha noite com ela que é uma obra-prima muito bem trabalhada, muito preparada, e O signo do leão um pouco entre os dois: um filme onde existem elementos de liberdade, mas o único em que Rohmer fez uma decupagem técnica. Na verdade, todos os filmes de Rohmer são muito bem preparados, mesmo O raio verde.
Você descreve dois filmes que a meu ver são os mais acessíveis e dois que são mais difíceis de amar. Minha noite com ela e O signo do leão impõem muitos desafios ao espectador…
Existe, em Rohmer, esse lado exigente e mesmo “hostil”, são filmes em preto e branco… Em O signo do leão, tem quase uma hora sem nenhum diálogo. Mas nós também não podemos dizer que O raio verde seja um filme fácil. A mulher do aviador tem um lado Truffaut, um pouco divertido - mas O raio verde se baseia na irritação que inspira a personagem. Durante anos, eu lutei contra as pessoas que detestavam esse filme, que ficavam muito irritadas com Marie Rivière, por suas frescuras, por todo o lado banal e feio das situações.
Hoje, eu constato que O raio verde adquiriu o status de filme cult: ele finalmente ganhou a batalha da posteridade. Por outro lado, O signo do leão continua um filme mal amado, talvez por ser um personagem masculino, com um lado sentimental menos presente: nós nos identificamos menos. Deste ponto de vista, de fato, é sem dúvida seu filme mais difícil. Talvez não tanto quanto Agente triplo, cuja opacidade chega mesmo a me incomodar.
A significação espiritual de O signo do leão continua misteriosa, ela não se dá assim no primeiro olhar. Essa dimensão existe em todo o cinema de Rohmer, mas é mais evidente em Minha noite com ela. No Signo, existe um caminho secreto que se esconde por trás das aparências, por trás do silêncio.
De que maneira se faz essa reconfiguração da visão sobre certos cineastas como René Clair e Henri-Georges Clouzot, por exemplo, à partir do contato com os arquivos? O que muda?
Em primeiro lugar, nós vemos um cineasta no trabalho, nós vemos como ele trabalha, quais são seus mecanismos de pensamento, de imaginário, as diferentes versões. Não é simplesmente o aspecto genético. A partir da imersão nos arquivos, trata-se de evidenciar um ponto de vista crítico que não será o mesmo de alguém que se contentou em ver os filmes. Por exemplo, se você assiste os filmes de René Clair, você tem a impressão de um universo muito leve, um pouco fácil - mas quando você mergulha em seu trabalho, de cineasta mas também de escritor e crítico, você descobre toda a complexidade de um pensamento. Se queremos compreender profundamente o projeto de um cineasta, me parece quase indispensável passar pelos arquivos.
É o arquivo que, de repente, movimenta as coisas, que vai suscitar meu imaginário, minha criatividade de pesquisador. A partir dos arquivos, eu tenho a impressão de inventar um outro Clouzot, um outro Rohmer, um outro Clair, um outro Guitry, diferentes daqueles que conhecíamos.
Rohmer, Clouzot, Clair e Guitry. Este último é provavelmente o menos conhecido fora da França, mas quem era Guitry?
Ele era, como Rohmer, um cineasta da palavra, que se apoiou na sua experiência de dramaturgo e ator para fazer um cinema muito original. Aliás, muito desprezado na sua época pelos intelectuais e do qual descobrimos posteriormente cada vez mais a importância. É alguém que acreditou na palavra como motor da criação cinematográfica em uma época em que estávamos ainda na nostalgia do cinema mudo. O que faz de seu cinema muito inovador. Se ele é menos conhecido no exterior, é justamente…
…Talvez por causa da lingua?
Eu não sei, pois Rohmer é conhecido no exterior. Eu constatei, em todo caso, quando dei aula nos Estados Unidos, que eles conheciam René Clair que, na França, foi bem esquecido, mas não conheciam Guitry. Tirando talvez O romance de um trapaceiro, o cinema de Guitry foi mal exportado na sua época.
Eu adoro Guitry desde minha infância. Devido sua relação com a História como espetáculo, de seu amor pelos atores, de seu lado lúdico, seu humor, sua leveza, etc. Eu retornei à Guitry muito mais tarde através precisamente dos arquivos pois eu descobri, por volta de 2005, um fundo de arquivos na Biblioteca Nacional Francesa que era inédito na época. Com Noëlle Giret que fazia seu inventário, eu propus à Cinemateca Francesa de fazer uma exposição a partir deste fundo, que permitia mostrar um outro Guitry, diferente daquele que conhecíamos. Não somente seu lado teatro de boulevard um pouco fácil, mas um Guitry que trabalhava enormemente seus roteiros e suas peças. Um Guitry no trabalho.
Sempre com a vontade de identificar um mecanismo criador. Em Guitry, é talvez o complexo de Arca de Noé, este lado conservador que o fez recuperar todos os signos da arte, todos os vestígios do gesto artístico. É a noção de coleção aplicada à prática do artista, através de todas as formas de arte experimentadas por Guitry. No começo, eu não tenho ideia pré-concebida, eu tento identificar algo que organiza a obra, algo que a estrutura. É talvez meu lado psicanalítico, não sei: decifrar um mistério, compreender o que faz um artista avançar em sua criação.
Mais uma vez, não é biografismo (saber com quem ele dormiu, conhecer sua vida privada, etc). Eu não sei se eu pude influenciar na redescoberta de certos autores – mas, de certa maneira, eu gosto bastante de fazer com que a obra seja vista de forma diferente, através da revelação de um motor artístico do autor. Tem sempre este aspecto um pouco detetive.
Qual é a primeira pista para descobrir Sacha Guitry ? Um primeiro filme, um primeiro trabalho para o conhecer.
Eu coordenei um número especial da revista Double Jeu sobre Guitry e, nesta ocasião, eu entrevistei Dominique Païni que me falou sobre a ideia do desfile. Eu achei isso muito interessante: o desfile de moda, o desfile de máscaras, o desfile de atores, o desfile judicial, o desfile militar. Eu adoro, no trabalho de Païni, essa arte de encontrar as chaves da resolução de um enigma artístico. A partir daí, eu pensei no tema da galeria que me permitiu englobar a coleção - e o desfile. É o lado obsessivo de Guitry: colecionar os signos externos da beleza, os signos da arte, os signos da História. É uma abordagem totalmente fetichista e, ao mesmo tempo, alegre e criativa.
Em contato com seu trabalho, nós temos a impressão de que você estende seu interesse para o cinema francês inteiro, observando com a mesma atenção cinemas historicamente opostos como, por exemplo, o da Tradição de Qualidade e o da Nouvelle Vague. Uma questão que você talvez possa responder: existe um aspecto de continuidade entre essas duas estéticas ? Porque a história diz que a Nouvelle Vague é A ruptura…
Sim, isto é sem dúvida a minha originalidade: eu acredito ser um dos únicos historiadores do cinema a não opor a Nouvelle Vague ao que chamamos de Tradição de Qualidade! Em todo caso, de não os opor de maneira tão sumária como se faz habitualmente. Para mim, essa história de Tradição de Qualidade não quer dizer muita coisa. Esse não é, absolutamente, um termo de François Truffaut, é um termo de Jean-Pierre Barreau que foi retomado por Truffaut. Digamos que o cinema dos anos 50 se inscreve num prolongamento (André Bazin disse isso muito bem) do cinema dos anos 30, com temas vizinhos, atores que são frequentemente os mesmos, cineastas que retornam como Marcel Carné, Julien Duvivier, Jean Grémillon. Que haja aí uma tendência ao academicismo, eu não discordo, que há uma esclerose institucional, eu o admito. Mas que a Nouvelle Vague tenha marcado uma ruptura decisiva, me parece contestável. Sem falar dos últimos Truffaut, dificilmente podemos falar de ruptura quando comparamos o cinema de Claude Chabrol e o de Decoin ou de Duvivier.
Quanto à Rohmer, inscrevendo-se totalmente na política dos autores da Cahiers du Cinéma e em polêmicas muito próximas daquelas de Truffaut, ele reafirma até o fim a sua dívida com o grande cinema francês do pré-guerra, aquele de Carné ou de Clair. Mais do que romper, ele tem o desejo de renovar os laços com certo cinema mudo, o de D.W. Griffith ou F.W. Murnau. Resta evidentemente o caso de Jean-Luc Godard, o único cineasta de verdadeira ruptura.
Além disso, me parece que a Nouvelle Vague foi menos o começo de uma nova era para o cinema francês do que o seu último grande movimento. Tivemos a vanguarda dos anos 20, o realismo poético, tivemos uma certa tendência neorrealista nos anos do pós-guerra, tivemos a Nouvelle Vague – mas eu temo que sofremos hoje do academicismo dos seguidores da Nouvelle Vague. De um natural que se tornou falso e esclerosado. O cinema francês já não consegue arrastar o fantasma da Nouvelle Vague, cultivar uma fantasia de modernidade sem o gênio de seus criadores. Se eu fosse maldoso, falaria de um cinema de qualidade francesa se escondendo sob o verniz Nouvelle Vague.
Serge Bozon, por exemplo, disse que depois da Novelle Vague a última escola importante no cinema francês foi a Diagonale.
O que não deixa de ser verdade. Nos anos 80, quando entrei na cinefilia, eu já me consternava com a mediocridade do cinema francês. Eu, que desde a minha infância tinha sido nutrido por Carné, Guitry, Clouzot, Renoir, não via seus equivalentes em lugar nenhum. Só Maurice Pialat e Rohmer continuavam a encarnar o prestígio do cinema francês; e a fazer filmes ainda extremamente inovadores, livres e que falam do seu tempo. A tradição do cinema francês é a sua tendência idealista e teórica. É um cinema de boas intenções (e, de boas intenções, o inferno está cheio).
Eu não gosto de tudo que a Diagonale fazia mas, na época, eu amei o trabalho de Gérard Frot-Coutaz ou de Paul Vecchiali (que foi ajudado por Rohmer). Houve ali um momento interessante, que Serge Bozon e alguns franco-atiradores tentam perseguir. Mas o cinema francês está cada vez mais fechado para as individualidades, ele se tornou muito normativo.
Em resumo, eu aponto a falsidade de um ponto de vista que diz: antes havia um cinema antiquado e, de repente, teve a Nouvelle Vague que fez milagres. Na minha opinião, os problemas que eram aqueles do cinema francês dos anos 50 continuam presentes ainda hoje: os pesos institucionais, a preocupação pela qualidade, a vontade de fazer um cinema para a exportação, a adaptação literária, o psicologismo, o naturalismo, tudo isso ainda está aí. O que a Nouvelle Vague mudou é que, de repente, começamos a filmar em locações naturais e depois filmamos jovens quando antes filmávamos velhos.
No fundo, os cineastas da Nouvelle Vague só deram testemunho deles mesmos; Godard é absolutamente único, não podemos reinventá-lo. No entanto, na França, continuamos imitando o que já foi feito, acreditando ao mesmo tempo, por falta de cultura, que se é original. Estamos eternamente refazendo Rohmer e Bresson, poderia citar muitos exemplos, mas não quero fazer muitos inimigos.
Seria interessante parar de olhar somente para os anos 60 e para o seu Panteão esmagador, e olhar um pouco mais para o lado do cinema anterior e, em particular, do cinema mudo. Me parece que Louis Feuillade ou Jacques Feyder têm tanto a nos ensinar quanto Truffaut e companhia.
Como é que você tenta demonstrar isso aos seus alunos na universidade, à pessoas que querem fazer filmes?
Eu conduzi um seminário sobre Rohmer durante anos, e convidei os seus colaboradores para esclarecerem a sua maneira de trabalhar. Sua independência, sua singularidade, o fato de fazer filmes com muito pouco dinheiro, de não ter que prestar contas ao Estado, de criar a sua própria estrutura de produção… É um exemplo notável e que merece ser indicado aos estudantes para que eles saiam um pouco desses caminhos batidos, deste cinema francês que vive por aparelhos, que espera tudo do Estado. Admiro esta liberdade feroz do Rohmer, e a sua recusa em exibir o cinema, filmando com equipes pletóricas. Só se é considerado um cineasta, na França como nos Estados Unidos, exibindo os sinais e os rituais do poder e do dinheiro. Tento lembrar que também se pode fazer cinema como Rohmer, ou como Alain Cavalier que faz obras-primas com pouquíssimos meios.
Em resumo, eu aponto a falsidade de um ponto de vista que diz: antes havia um cinema antiquado e, de repente, teve a Nouvelle Vague que fez milagres. Na minha opinião, os problemas que eram aqueles do cinema francês dos anos 50 continuam presentes ainda hoje: os pesos institucionais, a preocupação pela qualidade, a vontade de fazer um cinema para a exportação, a adaptação literária, o psicologismo, o naturalismo, tudo isso ainda está aí. O que a Nouvelle Vague mudou é que, de repente, começamos a filmar em locações naturais e depois filmamos jovens quando antes filmávamos velhos.
No fundo, os cineastas da Nouvelle Vague só deram testemunho deles mesmos; Godard é absolutamente único, não podemos reinventá-lo. No entanto, na França, continuamos imitando o que já foi feito, acreditando ao mesmo tempo, por falta de cultura, que se é original. Estamos eternamente refazendo Rohmer e Bresson, poderia citar muitos exemplos, mas não quero fazer muitos inimigos.
Seria interessante parar de olhar somente para os anos 60 e para o seu Panteão esmagador, e olhar um pouco mais para o lado do cinema anterior e, em particular, do cinema mudo. Me parece que Louis Feuillade ou Jacques Feyder têm tanto a nos ensinar quanto Truffaut e companhia.
Como é que você tenta demonstrar isso aos seus alunos na universidade, à pessoas que querem fazer filmes?
Eu conduzi um seminário sobre Rohmer durante anos, e convidei os seus colaboradores para esclarecerem a sua maneira de trabalhar. Sua independência, sua singularidade, o fato de fazer filmes com muito pouco dinheiro, de não ter que prestar contas ao Estado, de criar a sua própria estrutura de produção… É um exemplo notável e que merece ser indicado aos estudantes para que eles saiam um pouco desses caminhos batidos, deste cinema francês que vive por aparelhos, que espera tudo do Estado. Admiro esta liberdade feroz do Rohmer, e a sua recusa em exibir o cinema, filmando com equipes pletóricas. Só se é considerado um cineasta, na França como nos Estados Unidos, exibindo os sinais e os rituais do poder e do dinheiro. Tento lembrar que também se pode fazer cinema como Rohmer, ou como Alain Cavalier que faz obras-primas com pouquíssimos meios.
No caso deste, é ainda mais notável o fato de ter começado a fazer filmes com estrelas. Eis alguém que se livrou completamente dos seus próprios clichês e que reinventou o cinema continuamente. Cavalier, como Rohmer, nem sempre encontra o que procura, mas procura até ao fim.
O que é esse naturalismo próprio ao cinema francês?
É uma tradição forte do cinema francês, proveniente do naturalismo literário que teve grande importância. Grandes cineastas que começaram nos anos 20, como Renoir ou Duvivier, foram muito marcados por Émile Zola, Octave Mirbeau, Jules Renard, por um naturalismo voluntariamente cruel, pessimista e fatalista.
Não é o aspecto da literatura francesa que mais me interessa, mas constato a sua longa influência. Até hoje, existe esta vontade de testemunhar o estado da sociedade e de uma forma muitas vezes demonstrativa ou fabricada. O naturalismo inspirou grandes cineastas, como Renoir, obviamente, ou Pialat. Mas esses reencontram a própria essência do naturalismo: a crueza, a crueldade, a violência dos sentimentos. Pialat é Zola melhorado. É Zola reinventado no nosso tempo.
Eu não odeio necessariamente a "ficção de esquerda" - como dizia Serge Daney. Defendo, por exemplo, o cinema de André Cayatte (e a sua crueldade!). Eu sou menos entusiasta desse naturalismo de ilusão de ótica que nos servem hoje, com as suas boas intenções, os seus diálogos significantes, seu discurso social, que pretende abraçar a realidade e só abarca clichês.
Eu penso, por exemplo, na passagem dos anos 90 para os anos 2000. Havia uma espécie de fascínio por aquilo que a Cahiers du Cinéma chamava de estética do fluxo: Claire Denis, irmãos Dardenne…
Os irmãos Dardenne são um exemplo de um naturalismo aceitável para o público em geral, que ganha prêmios em festivais, que não incomoda ninguém. Eu gostei disso no começo, mas se tornou como um uniforme colocado sobre o estilo cinematográfico francófono.
O que é esse naturalismo próprio ao cinema francês?
É uma tradição forte do cinema francês, proveniente do naturalismo literário que teve grande importância. Grandes cineastas que começaram nos anos 20, como Renoir ou Duvivier, foram muito marcados por Émile Zola, Octave Mirbeau, Jules Renard, por um naturalismo voluntariamente cruel, pessimista e fatalista.
Não é o aspecto da literatura francesa que mais me interessa, mas constato a sua longa influência. Até hoje, existe esta vontade de testemunhar o estado da sociedade e de uma forma muitas vezes demonstrativa ou fabricada. O naturalismo inspirou grandes cineastas, como Renoir, obviamente, ou Pialat. Mas esses reencontram a própria essência do naturalismo: a crueza, a crueldade, a violência dos sentimentos. Pialat é Zola melhorado. É Zola reinventado no nosso tempo.
Eu não odeio necessariamente a "ficção de esquerda" - como dizia Serge Daney. Defendo, por exemplo, o cinema de André Cayatte (e a sua crueldade!). Eu sou menos entusiasta desse naturalismo de ilusão de ótica que nos servem hoje, com as suas boas intenções, os seus diálogos significantes, seu discurso social, que pretende abraçar a realidade e só abarca clichês.
Eu penso, por exemplo, na passagem dos anos 90 para os anos 2000. Havia uma espécie de fascínio por aquilo que a Cahiers du Cinéma chamava de estética do fluxo: Claire Denis, irmãos Dardenne…
Os irmãos Dardenne são um exemplo de um naturalismo aceitável para o público em geral, que ganha prêmios em festivais, que não incomoda ninguém. Eu gostei disso no começo, mas se tornou como um uniforme colocado sobre o estilo cinematográfico francófono.
É certo que existem os caminhos de travessia percorridos por Bozon, Yann Gonzalez ou Bertrand Mandico - mas esta tradição sufocante, da qual o cinema francês nunca saiu completamente, é hoje reforçada pelo modo de financiamento do cinema. A partir do momento em que os filmes só se tornam possíveis através do Estado e dos canais de televisão, o testemunho social vai prevalecer. É pouco provável que isso gere um Orson Welles ou um Jean Eustache.
Por outro lado, há Robert Bresson que é ao mesmo tempo um cineasta único e cheio de imitadores.
Na França, somos muitas vezes esmagados por um superego literário, cinematográfico e cultural. É uma riqueza, mas também pode ser um freio à criação. Fica ainda mais complicado quando se é um crítico que faz filmes, o que é frequente na França.
Por outro lado, alguém como Jean-Claude Brisseau tinha um universo totalmente original, ele veio de lugar nenhum. Ele foi praticamente descoberto por Rohmer, a propósito. Eu acredito mais nestes caminhos de travessia do que no cinema estabelecido.
Você dedicou alguns artigos a Bresson e um aspecto parece se destacar : a presença dos animais. Como uma espécie de arte perdida, carregada de ressonâncias religiosas muito fortes. Eu me lembro, por exemplo, do seu artigo sobre A grande testemunha.
É verdade que sou sensível a isso em Bresson. É justamente um cineasta que, ao contrário do que descrevemos há pouco (e mesmo que ele tenha um discurso teórico sobre os seus filmes), faz um cinema contra o discurso. Ele persegue um além da linguagem, uma espécie de fenomenologia.
O meu paradoxo é que eu me apaixono tanto por cineastas do discurso, ou mais exatamente da palavra (o que não é a mesma coisa), como Guitry e Rohmer, quanto por cineastas que transcendem o discurso ou mesmo a palavra (Bresson), ou que a evitam de forma irônica (Clair, Ophüls).
Talvez este seja o tema central de qualquer cineasta: o que fazer com a linguagem? Como expressar um além da linguagem, mesmo quando se faz um cinema muito falante? Quando realizo, eu mesmo, filmes a partir de peças de teatro, não quero dizer que só a palavra conta. A partir do momento em que adapto uma peça escrita por outra pessoa, tento tornar o espectador atento aos efeitos de pura mise en scène; menos ao texto do que ao que se desenvolve nas entrelinhas. Alguém que admiro muito por isso é Alain Resnais, que fez filmes de teatro magníficos.
Em que momento nasceu o seu interesse pelo teatro?
Comecei na minha infância, e faço teatro ainda hoje, pelo menos nos meus filmes. Acho que Jacques Rivette disse que o único tema do cinema era o teatro. Embora não goste muito dos seus filmes, concordo plenamente. Não há nada que eu goste mais do que filmes que falam do teatro, não me refiro apenas às adaptações de peças (claro que adoro O pecado original de Jean Cocteau, Mélo de Resnais ou as adaptações de Manoel de Oliveira), mas também aos filmes que se passam no meio do teatro: este é um tema maravilhoso.
Os filmes de Jean-Claude Biette, por exemplo.
Há filmes de Biette que eu gosto - mas Saltimbank, por exemplo, que se passa no meio do teatro, não me convenceu completamente. Gosto do trabalho de Vincent Dietschy. O que me irrita é quando o teatro é objeto de uma mitologia um tanto falsa, como no Último metrô de Truffaut, que eu acho um filme muito ruim. Por outro lado, adoro Miquette et sa mère de Clouzot, um filme absolutamente fantástico sobre os bastidores, a mise en abyme.
Chegando aqui na França, encontramos as suas crônicas publicadas na revista La Lettre du Cinéma e descobrimos um outro lado da sua escrita, um lado autobiográfico. Nos anos 90 e 2000, você publicou diários cinéfilos na Lettre e na revista Positif. Do quê falam esses textos?
Da minha relação com o cinema, evidentemente, mas sobretudo da relação com a memória, ou seja, com a maneira como os filmes envelhecem na memória: o que a cinefilia revela da passagem do tempo. Era sobretudo isso que me interessava na época. Quando revemos um filme que vimos quando éramos crianças, não vemos o mesmo filme. Como você nunca reviverá de maneira idêntica um momento que viveu quando era criança, a experiência mais concreta da passagem do tempo é realmente essa.
Hoje, talvez eu esteja um pouco menos focado nessa questão do tempo, que me preocupava muito na época. O cinema e a cinefilia eram para mim uma forma de parar o tempo, de reviver as memórias da minha infância, às quais permaneci bastante fiel: os cineastas que defendo hoje são cineastas que eu amo desde os 10 anos de idade! Aliás, é raro que eu mude de opinião sobre os filmes descobertos nessa época, descobertos essencialmente na televisão. Tenho uma certa fidelidade às minhas visões de infância.
Em que momento nasceu o seu interesse pelo teatro?
Comecei na minha infância, e faço teatro ainda hoje, pelo menos nos meus filmes. Acho que Jacques Rivette disse que o único tema do cinema era o teatro. Embora não goste muito dos seus filmes, concordo plenamente. Não há nada que eu goste mais do que filmes que falam do teatro, não me refiro apenas às adaptações de peças (claro que adoro O pecado original de Jean Cocteau, Mélo de Resnais ou as adaptações de Manoel de Oliveira), mas também aos filmes que se passam no meio do teatro: este é um tema maravilhoso.
Os filmes de Jean-Claude Biette, por exemplo.
Há filmes de Biette que eu gosto - mas Saltimbank, por exemplo, que se passa no meio do teatro, não me convenceu completamente. Gosto do trabalho de Vincent Dietschy. O que me irrita é quando o teatro é objeto de uma mitologia um tanto falsa, como no Último metrô de Truffaut, que eu acho um filme muito ruim. Por outro lado, adoro Miquette et sa mère de Clouzot, um filme absolutamente fantástico sobre os bastidores, a mise en abyme.
Chegando aqui na França, encontramos as suas crônicas publicadas na revista La Lettre du Cinéma e descobrimos um outro lado da sua escrita, um lado autobiográfico. Nos anos 90 e 2000, você publicou diários cinéfilos na Lettre e na revista Positif. Do quê falam esses textos?
Da minha relação com o cinema, evidentemente, mas sobretudo da relação com a memória, ou seja, com a maneira como os filmes envelhecem na memória: o que a cinefilia revela da passagem do tempo. Era sobretudo isso que me interessava na época. Quando revemos um filme que vimos quando éramos crianças, não vemos o mesmo filme. Como você nunca reviverá de maneira idêntica um momento que viveu quando era criança, a experiência mais concreta da passagem do tempo é realmente essa.
Hoje, talvez eu esteja um pouco menos focado nessa questão do tempo, que me preocupava muito na época. O cinema e a cinefilia eram para mim uma forma de parar o tempo, de reviver as memórias da minha infância, às quais permaneci bastante fiel: os cineastas que defendo hoje são cineastas que eu amo desde os 10 anos de idade! Aliás, é raro que eu mude de opinião sobre os filmes descobertos nessa época, descobertos essencialmente na televisão. Tenho uma certa fidelidade às minhas visões de infância.
O cinema, para mim, é evidentemente uma forma de guardar o passado, é necessariamente um objeto passado, é da ordem do fantasma. Se eu denigro tanto o cinema atual, é também porque ontologicamente eu não posso amá-lo. É preciso que haja algo um pouco morto para o cinema começar a me interessar. Além disso, como cineasta, eu filmo fantasmas, histórias antigas, faço referência a formas ultrapassadas. O que é muito menos o caso no meu trabalho de escritor, no qual procuro cada vez mais me libertar desta dimensão fantasmagórica para ir em direção ao contemporâneo. Sem dúvida não é a mesma timeline.
Desta época, creio que o texto mais belo é “A nostalgia das imagens”, publicado em 2001 na Lettre du Cinema, n.º 16. Há uma articulação muito honesta entre a história do cinema e a sua história pessoal, a história da sua família. Fale um pouco dessa relação.
Eu falava ali sobre o meu amor por Gaby Morlay, essa atriz hoje um pouco esquecida que era quase a sósia da minha mãe, ou sobre o meu amor por Gérard Philipe. Eram figuras paternas um pouco míticas, eu me fiz assim, desde muito cedo, uma comédia humana, cinematográfica, através de atores que amava e que vinham sublimar os meus verdadeiros pais.
Para mim, o cinema francês dos anos 30, 40, 50 tornou-se desde muito cedo uma família. Era paradoxal porque ele contava apenas histórias horríveis, como Manèges (Yves Allegret), histórias de drogas, de famílias dilaceradas, de incesto, de aborto. É verdade que o cinema francês dos anos 50 era muito noir, muito sombrio. Mas eu passeava por ele com muito prazer, talvez porque ele era um pouco desvalorizado e eu encontrei dentro dele uma realeza retorcida. Eu tinha esse poder mágico de reanimar aquelas sombras que só existiam para mim. E ainda sinto isso hoje. Se eu não estivesse aqui para defender René Clair ou André Cayatte, não tenho certeza de que haveria muita gente para fazê-lo.
Eu me tornei uma espécie de guardião de uma paisagem cinematográfica encoberta e que eu gostaria de continuar a tornar presente. Não de maneira fetichista, mas tentando fazer descobrir o que há de interessante neste cinema. É o meu lado Don Quixote, de sentinela absurda. É o desejo de manter a ligação com algo que irá, em parte, desaparecer comigo. Existem muitos atores de cinema ou de teatro que ninguém, depois da minha morte, saberá identificar.
Talvez Paul Vecchiali que também é apaixonado por este cinema.
Espero que ele continue vivendo por muito tempo depois de mim! (Risos)
Quais são os seus atores preferidos?
No cinema francês atual, gosto muito de Karin Viard. Ela me lembra justamente Gaby Morlay. O que eu gosto nesta, como naquela, como na Bette Davis por exemplo, é a loucura; uma atriz que joga com a sua loucura, acho isso muito interessante. Há aqui uma fragilidade que me toca. Que me toca também na Valeria Bruni Tedeschi: saber pôr em cena seus abismos e suas vertigens, os limites da sua razão. Se não houver essa disponibilidade para correr riscos, essa conduta perigosa… Você vai me dizer Isabelle Huppert - mas nela eu sinto muito o controle, eu sinto que há um domínio; acredito mais na beleza da entrega.
E a última performance de um ator que lhe perturbou?
Por exemplo, admiro o Denis Lavant em Holy Motors, coisas assim. Mais uma vez, um ator que joga com a sua loucura. Mas hoje não é mais a mesma coisa, não vou ao cinema para ver um ator, não tenho nenhum fetiche em relação a isso. Talvez não haja distância suficiente para que eu chegue a me exaltar. Isso concerne sobretudo às atrizes, há uma perda de aura. Seria esse um efeito do amor pelo passado de que falávamos, desta deformação pessoal que me convida a encontrar beleza apenas no passado, ou de algo que falta cruelmente no cinema francês de hoje (uma dimensão mítica, fantástica, fantasmática)? Ainda assim, tenho dificuldade em encontrar o que me inspira em Jules Berry ou Michel Simon - que tinham uma dimensão bigger than life. Tem um pouco disso em Karin Viard, mas o cinema francês, infelizmente, a limita muitas vezes a papéis acanhados, quando ela poderia desempenhar papéis extraordinários.
É óbvio que eu não me consolo com esta perda da aura. Não sei se o cinema está morto, mas tenho certeza de que deixou de ser uma arte mágica. Mágica, proibida, misteriosa, enigmática. Ele se aproxima de nós através da televisão, primeiro, e depois através da Internet, e toda uma banalização da imagem que faz com que qualquer Youtuber possa se tornar tão famoso quanto Isabelle Huppert. Acredito que para poder admirar o trabalho de um cineasta, eu preciso que ele seja ao mesmo tempo raro, precioso, difícil de alcançar e ligado a um ritual.
Este ritual ainda existia na televisão, com os cineclubes, os cinemas à meia-noite. Os filmes eram raros, nós os víamos a certas horas, o que me levou a fantasiar sobre O ano passado em Marienbad, que eu não gostei nada quando descobri mais tarde. Mas quando tinha 10 anos, eu ficava frustrado por não conseguir ver aquele filme que só passava naquela hora. O filme era um objeto um pouco proibido, desvanescia assim que aparecia. Havia ali uma dimensão de revelação, e de sagrado.
Nem por isso eu vou dizer que “era melhor antes”. Eu tento apenas elucidar o que me fascina no cinema, decifrar o que se esconde por detrás da minha má-fé de crítico e do meu espírito de contradição. Eu me esforço, como escrevi, a fim de olhar para o meu olhar - mas também para me pôr em cena, ao mesmo tempo como cinéfilo um pouco órfão e como alguém que tentaria continuar a atuar num filme que já não existe mais. Foi um pouco o que fiz no meu último livro, Souvenirs/ Écran, onde conto a minha turnê pela Provença para apresentar os filmes de Clouzot. Ando por lá como um caixeiro viajante um pouco ridículo, acabo por desaparecer nesta paisagem cinzenta, a me misturar no cenário como um personagem de Carné. É uma cena imaginária que só existe no meu espírito, e na qual eu evoluo sozinho. Se você não quiser ser prisioneiro dos fantasmas que admira, é preciso talvez se tornar um deles.
Entrevista realizada por André Schaefer e Miguel Haoni em 10 de novembro de 2019
Transcrição: André Schaefer e Leticia Weber Jarek
Transcrição: André Schaefer e Leticia Weber Jarek
Tradução: André Schaefer e Miguel Haoni
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