Quando voam as cegonhas (Mikhail Kalatozov, 1957)
Por Éric Rohmer
Nós sabíamos bem que o cinema russo estava evoluindo. Mas, desta vez, é uma mutação brusca. Pela primeira vez a originalidade de um filme soviético não se definiu mais por aquilo a que ele se recusa (o uniforme apertado do realismo socialista, ou o traje não menos gasto do neorrealismo, padrão caro às democracias satélites), mas por aquilo que ele admite: ouçam todas as conquistas do cinema ocidental em seus anos mais recentes. A quem pretendesse negar que não se passou nada de novo sob o sol desde o começo do falado, vou propor duas visões respectivas não de, digamos, O delator e Um rosto na multidão, mas de The grasshopper de Samsonov, apesar de ter sido julgado ousado na sua época, e de Cegonhas: trinta anos de história do cinema separam estas duas obras, realizadas com três anos de intervalo.
Encontramos tudo aqui: a profundade de campo e os tetos de Orson Welles, os travellings acrobáticos de Ophuls, o gosto viscontiano do ornamento, o estilo de interpretação do Actor’s Studio. Que não falemos de “formalismo”, pois ao culto da forma os compatriotas de Eisenstein sempre, embora eles o tenham, pagaram largamente a sua contribuição. O que importa, não é que neste filme a expressão tenha a primazia sobre o conteúdo, mas que ele se exprima numa língua que, do outro lado do Elba, não conhecíamos, ainda há pouco, o abc. O importante, aqui, não é que um cineasta russo tenha escolhido a estética em detrimento da ideologia, mas uma certa estética, escolha que não tem talvez mais importância que aquela, por exemplo, dos alfaiates moscovitas decidindo um belo dia encurtar em dez centímetros a barra da calça: mas não é menos importante. Admitir a existência de uma moda universal, é dar um grande, um enorme passo.
Notemos que nesta empresa de ajuste do vestuário, a U.R.S.S. se mostra infinitamente mais à vontade que certa nação menor da Europa burguesa: nenhum traço em Kalatozov da rusticidade de um Bardem ou de um Cacoyannis ensaiando copiar o modelo italiano ou hollywoodiano. A Rússia é uma nação forte, à qual não falta nem dinheiro, nem critério; basta que ela concentre na profundidade o que ela desperdiçava antigamente na superfície, que ela arranje sobre dez metros um movimento de grua que ela estendia anteriormente sobre cem, que no lugar de nos oferecer o espetáculo de um milhão de homens, ela nos mostre algumas dezenas, mas preocupados com a mesma precisão, animados pelo mesmo fervor que os protagonistas. A Rússia é uma nação velha, rica em uma das mais gloriosas tradições teatrais: se Tatyana Samoylova nos parece às vezes guiada pela batuta de Kazan, a pátria de Stanislavski não faz, em suma, mais do que retomar o que lhe pertence. A própria cintilação de certas montagens rápidas assume antes a forma resultante de um moderno gosto pelo barroco que de um resíduo do impressionismo pudovkiniano.
Tal é o alcance deste filme. Qual é agora o seu valor? Digamos segundo a fórmula consagrada, que “só o futuro poderá julgar” e aprovar ou não a decisão de um júri que o preferiu ao Tati ou ao Bergman. Pacientes exegetas conseguirão sem dúvida decidir se a paternidade da obra deve ser imputada ao diretor Mikhail Kalatozov – cujo Amigos verdadeiros não permitia em nada prever uma tal explosão –, ou ao fotógrafo Urussevski que foi aquele de O quadragésimo primeiro e se mostra, ao contrário de seus colegas ocidentais, muito mais moderno na utilização do preto e branco que na da cor – na verdade o quão ingrata, sobre a terna e frágil paleta do Sovcolor.
Da minha parte, fui alternando: agitado pela novidade do tom; irritado pela vontade sistemática e um pouco anárquica de brilhar, deslumbrado, ainda assim, pelo brilho dos ornamentos na cena das despedidas perdidas, na do bombardeio ou naquela da morte de Boris; tocado, mas não muito, pelo trágico saroyanesco de um mal-entendido muito literário; emocionado, apesar de tudo, pelo que me seduz em muitos filmes russos, stalinistas ou não, a exaltação da coragem, da fidelidade, do sacrifício e outros valores espiritualistas, apesar da mise en scène em si implicar uma visão do homem muito mais fenomenológica: mas a cena final do buquê de flores é de um lirismo e de uma beleza fotográfica em que forma e conteúdo alcançam uma conciliação por muito tempo esperada.
O salto foi dado: tomemos nota. Qualquer retrocesso é daqui pra frente proibido. Mas se o caminho no qual ele se engaja não é necessariamente semeado de rosas, o cinema soviético, vistas as mesquinhas vantagens de seu esplêndido isolamento de ontem, não tem nada a perder e tudo a ganhar votando pela sua integração total e definitiva no sistema ocidental.
Néo-baroque foi publicado originalmente na revista Arts nº 675 em 18 de junho de 1958 e republicado na coletânea Le sel du présent, organizada por Noël Herpe.Tradução: Miguel Haoni.
Tal é o alcance deste filme. Qual é agora o seu valor? Digamos segundo a fórmula consagrada, que “só o futuro poderá julgar” e aprovar ou não a decisão de um júri que o preferiu ao Tati ou ao Bergman. Pacientes exegetas conseguirão sem dúvida decidir se a paternidade da obra deve ser imputada ao diretor Mikhail Kalatozov – cujo Amigos verdadeiros não permitia em nada prever uma tal explosão –, ou ao fotógrafo Urussevski que foi aquele de O quadragésimo primeiro e se mostra, ao contrário de seus colegas ocidentais, muito mais moderno na utilização do preto e branco que na da cor – na verdade o quão ingrata, sobre a terna e frágil paleta do Sovcolor.
Da minha parte, fui alternando: agitado pela novidade do tom; irritado pela vontade sistemática e um pouco anárquica de brilhar, deslumbrado, ainda assim, pelo brilho dos ornamentos na cena das despedidas perdidas, na do bombardeio ou naquela da morte de Boris; tocado, mas não muito, pelo trágico saroyanesco de um mal-entendido muito literário; emocionado, apesar de tudo, pelo que me seduz em muitos filmes russos, stalinistas ou não, a exaltação da coragem, da fidelidade, do sacrifício e outros valores espiritualistas, apesar da mise en scène em si implicar uma visão do homem muito mais fenomenológica: mas a cena final do buquê de flores é de um lirismo e de uma beleza fotográfica em que forma e conteúdo alcançam uma conciliação por muito tempo esperada.
O salto foi dado: tomemos nota. Qualquer retrocesso é daqui pra frente proibido. Mas se o caminho no qual ele se engaja não é necessariamente semeado de rosas, o cinema soviético, vistas as mesquinhas vantagens de seu esplêndido isolamento de ontem, não tem nada a perder e tudo a ganhar votando pela sua integração total e definitiva no sistema ocidental.
Néo-baroque foi publicado originalmente na revista Arts nº 675 em 18 de junho de 1958 e republicado na coletânea Le sel du présent, organizada por Noël Herpe.Tradução: Miguel Haoni.
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