Sobre Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Cordeiro
Por Serge Daney
Perto do final do filme, um homem ensina a seu filho – um menino – os rudimentos da pesca. O barco desliza sobre a água calma, a câmera enquadra as margens que são rochosas, salientes e calmas também. Uma voz (aquela da criança) se faz então ouvir. Ela diz: “Alemanha...”. Voz off – mas ela não afirma, não interroga, antes se aventura, sonha alto. Depois, no mesmo tom: “Espanha...”. O que a imagem indica, de fato, é a Espanha ali próxima, atrás da tela de montanhas. Mas a voz que diz “Espanha” não fala mais alto do que a outra, não a corrige. É que a Alemanha também está aí, na enunciação da criança. Mais tarde no filme, a rima se cumprirá: leitura de uma carta que envia um pai, da Alemanha justamente, para onde ele imigrou. Não se trata, portanto, de um ou de outro, mas dos dois países ao mesmo tempo, reduzidos cada um a uma palavra. Há a Espanha que é o off da imagem, para lá do olhar, e a Alemanha que é o off do som, para cá da voz. Uma zona de sonho e de angústia as separa e as liga: é o que chamamos de “plano”.
O afastamento é o tema do filme que António Reis e Margarida Cordeiro fabricaram na província de Trás-os-Montes (de onde o filme retira seu título) em 1976. No duplo sentido de estar longe (exílio) e do ato mesmo de se afastar (perda de visão, depois esquecimento). O afastamento, nos dizem aos poucos Reis e Cordeiro, é a história desse Nordeste de Portugal. É a dominação distante, incompreensível e incompreensiva da Capital (Lisboa) sobre o Trás-os-Montes. A tal ponto que as Leis, ditadas pela Capital, não chegam aos camponeses, que por sua vez se questionam: elas existem realmente? Cena-chave do filme em que Reis traduz em dialeto um trecho de A Muralha da China de Kafka, cena-chave por vermos o problema se instalar tragicamente, no real, em 1976. Afastamento que acultura a província, corta seus laços com o passado celta e pagão, torna folclore as migalhas da cultura popular sob a forma de cartões postais. Afastamento dos camponeses dos campos cultivados e das pastagens, primeiro em direção às minas da região (cena magnífica onde Armando, a criança do pião, visita a mina desativada, pingando de chuva), depois em direção à América (o pai, nunca visto, subitamente retorna da Argentina para logo partir), por fim em direção à Europa das usinas e das cadeias de produção, França, Alemanha.
O afastamento (ou seu oposto: a aproximação) que interessa os autores de Trás-os-Montes se produz no hic et nunc do presente. Não se trata de desempoeirar desoladamente o que está enterrado, de lamentar o tempo que passa ou de exibir os tesouros que não o são para ninguém (senão para um público necrófilo, do tipo “Conhecimento do mundo[1]). Trata-se de uma operação mais exigente: chamar atenção para o que no plano (zona, eu insisto em lembrar, de sonho e de angústia) remete para além e construir assim, pouco a pouco, o que poderíamos chamar de “estado fílmico de uma província”. E para isto, Reis e Cordeiro partem não do fato da existência oficial de Trás-os-Montes (aquele dos mapas de geografia ou da burocracia de Lisboa), mas do contrário: da escavação, do rasgamento de cada “plano”, como aquele rio já citado que cava seu leito entre a Espanha e a Alemanha e que deságua, então, em Portugal.
O afastamento não é somente um tema (sobre o qual podemos tagarelar, demonstrar sabedoria, fazer críticas apressadas), mas também a matéria do filme Trás-os-Montes. A surda enunciação de cada plano profere a mesma pergunta: haverá graus no off? Pode-se ser mais (Alemanha) ou menos (Espanha) off? Em outras palavras: qual é o estatuto – a qualidade do ser – do que sai do plano (do que o plano exprime e do que ele expulsa)?
Supomos que nossa resposta seja esta (dela depende toda uma fruição do cinema): no off, não há graus. Quando você está distante, mesmo à porta ao lado, no cinema, você está perdido para sempre. Assim se poderia resumir, a partir de uma fórmula tipicamente obsessiva, o que é a dialética do in e do off no cinema moderno. E seria necessário acrescentar, para que a indeterminação seja total: e se você voltar, o que me prova que você é você mesmo?
O “vestido sem costura do real”, com o qual Bazin sonhava, é sempre recortado pelo enquadramento, pela montagem, por tudo que escolhe. Mas mesmo remendado (revestido) com um contracampo que lhe dá ponto, ele é habitado por um horror fundamental, um mal-estar: o que o plano A exibia e o plano B escamoteou pode muito bem retornar no plano C, mas travestido, sem que se possa provar que não foi transformado em outra coisa. Tudo o que passa pelas bordas do off é suscetível de retornar outro. Mesmo narrativos ou representativos como eram, pessoas como Lang ou Tourneur (seguidos hoje por Jacquot ou Biette) filmavam tão somente porque esse outro, essa dúvida no seio do mesmo, era possível, gerando horror ou comicidade (cf: Buñuel, para quem este era o motivo principal). Pareço esquecer o filme de Reis, mas não. Para comprová-lo, pensemos na espantosa última cena do filme, onde um trem fura a noite, seguido, poderíamos dizer forçosamente, pela câmera que nem sempre o distingue da escuridão e que não cessa de redescobri-lo (fort/da), seja sob forma de fumaça (para o olho), seja sob forma de apito (para o ouvido).
Para ele, já não há graus nem de afastamento temporal e nem de afastamento espacial. Também não há mais memória recente e nem memória distante. Tudo o que não está ali está, a priori, igualmente perdido – e, portanto, é este o ponto importante, igualmente a se produzir. Ruptura com uma concepção linear, gradualista da perda (de vista ou de memória) em benefício de uma concepção dinâmica, heterogênea, material. Pois produção quer dizer duas coisas: produz-se uma mercadoria (pelo seu trabalho), mas produzem-se provas (quando necessário). Cinema = exibição[2] + trabalho. É assim que, apesar de sua erudição, Reis e Cordeiro se comportam incansavelmente como se houvessem acabado de aprender o que eles comunicam a um espectador também totalmente ignorante. É preciso levar Reis a sério quando ele fala, em sua entrevista, em “tábula rasa”[3]. E ele não tem certeza de que essa atitude seja, no final das contas, preferível àquela que consiste em trabalhar a partir do conhecimento ou do suposto conhecimento do espectador, quando não a partir de uma doxa comum (geradora, como toda doxa, de preguiça saciada, particularmente devastadora nas ficções de esquerda). Inclino-me antes a pensar que o melhor – não importa em qual lado estamos da câmera – é colocar em prática o ditado mizoguchiano: lavar os olhos entre cada plano.
[1] NdT: Organização francesa fundada em 1945 que produz e distribui filmes “postais” de diferentes partes do mundo.
[2] NdT: Exhibition, em francês, pode se referir tanto à exibição no contexto cinematográfico quanto à apresentação de documentos a autoridades judiciárias e executivas. Daí a relação com as “provas” (pièces à conviction) na sentença anterior.
[3] NdT: Entrevista publicada na mesma edição da revista Cahiers du Cinéma em que consta o texto em questão.
Loin des Lois foi originalmente publicado na revista Cahiers du Cinéma nº 276, maio de 1977. Tradução: Luiz Fernando Coutinho.
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