O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

“O traidor”: condenado à penitência




Por Camille Nevers 

Através do destino do mafioso arrependido Tommaso Buscetta que desencadeou um processo maior denunciando seus antigos aliados da Cosa Nostra nos anos 80, Marco Bellocchio assina um afresco magistral sobre a decomposição de um mundo sem valores. 

Neste grande filme que é O traidor, dois gêneros, um político e outro intimista, fazem um pas chassé: um filme de tribunal e um filme de “família” alternam-se e misturam-se. Em um filme de família, a abertura coral é signo de romanesco e de tragédia emboscados, maneira de atestar que, tão logo terminada a grande reunião (esse falso “teatro” libera o anfitrião dos lugares), a discórdia e a guerra se abaterão. O traidor começa, como não poderia deixar de ser, durante essa festa à guisa de trégua fingida: a festa de Santa Rosália, protetora e padroeira de Palermo, esse 14 de julho à siciliana. Os diferentes clãs da Cosa Nostra, corleoneses e palermitanos, abraçam-se, dançam, bebem, medem-se dos pés à cabeça em uma virilidade requirida, posam para a foto de grupo, uma arma sob a jaqueta depois dos fogos de artifício. Estamos na aurora dos anos 80. 

O traidor abre-se logo a uma sutileza desconcertante que não o abandonará mais, a essa espécie de polissemia no tapete — Marco Bellocchio, grande cineasta jamesiano[1]. Isso por causa da indiscernibilidade do sentido das palavras, de sua periculosidade: o voto de fidelidade ao meio que compromete para sempre, pela vida e pela morte. Esse duplo sentido constante, essa indecisão, recobre pouco a pouco o desenrolar dos fatos até alcançar uma ambivalência moral de envergadura: daí o sentido relativo de termos como “padroeira” e “chefe” (capo dei capi) da cidade, “honra”, “lealdade”, “traição”, “justiça” ou “família”, conferindo valores sucessivos e contraditórios ao bem e ao mal, cuja potência de evocação é função da variável de ajustamento de uma consciência moral: a de Tommaso Buscetta, o traidor leal. 

Vingança fria 

Toto Riina, corleonese, está prestes a decretar o massacre dos chefes de famílias rivais de Palermo para assentar seu poder absoluto sobre a Cosa Nostra. “A segunda guerra da máfia” que ensanguenta a Itália dos anos 80 (em torno de mil mortos) é declarada por ele, assim como é ele quem capitaneia o assassinato de edis do polo antimáfia que trabalham no encarceramento de 475 mafiosos e na sustentação do maxiprocesso em Palermo a partir de 1986, entre os quais, eminentemente, o assassinato deplorável do juiz Falcone, outro personagem central, assombrado, do filme. Bellocchio e seu grande ator Pierfrancesco Favino[2] se dedicam a fazer com que esse Buscetta, aquele por quem o escândalo vem, saia do anonimato de pano de fundo dos ditos “arrependidos”. A chama que permitiu acender o grande fogo é ele e é ele o assunto do filme, seu estranho herói, não Riina, o personagem-título: o Traidor. O homem honrado não cumpre seu voto, trai os traidores — ambivalência da ideia de traição —, devota-se a uma nova “causa” à qual se mostrar fiel, por coerência moral e não por arrependimento, como ele se defende: a luta contra o crime, inclusive de Estado, a justiça pública prestada, que é também o único meio de sua vingança fria, de se fazer justiça em memória de seus filhos que ele tem remorso de ter abandonado e que foram executados durante seu exílio no Brasil. 




A sutileza de Bellocchio consiste, mais uma vez, em filmar seu monstro “de lado”, em autorizar-se um ângulo de viés, entre hagiografia e verdade histórica, contrafábula edificante e literalidade do ponto de vista: por meio da esposa do Duce em Vincere ou de Buscetta aqui. O retrato do traidor oferece um ponto de vista privilegiado sobre Riina e a Cosa Nostra ao mesmo tempo em que sobre a sociedade italiana, sua justiça, seus arcanos, seus caminhos e descaminhos administrativos, penitenciários ou judiciários, cujos detalhes, a vida carcerária, os coquetismos, as caras, o cineasta escruta com grande minúcia, destacando a relação inédita entre Buscetta e Falcone, que só têm em comum o fato de fumarem muito. Esse respeito grave entre inimigos cúmplices, dois homens cuja cabeça foi posta a prêmio, que fumam um cigarro após o outro durante sua protelação. O universo de Bellocchio, profundamente assombrado pela morte desde sempre, encontra, com O traidor, sua meditação mais atordoante, o mais belo dos filmes-tratados do cineasta: um tratado dos tormentos. 

O traidor é entregue ao fardo infinito de uma consciência criminosa. Seu único medo é feito de pura espera, a espera de seu castigo. O que há de impressionante no estilo de Bellocchio é seu falso naturalismo — não fingido: falso. Já que todo naturalismo estético provém do fingimento, da imitação mais “natural” possível de uma realidade relatada, representada e reproduzida. Mas então, o que é esse “falso natural” que torna o filme tão belo e cambiante, modulando sua tonalidade de modo tateante, sequência após sequência? Digamos que é esse algo de jamesiano de Bellocchio. Esse “fantástico naturalista”, esse gosto pelo claustro, pelo altar, pelas alcovas e confissões, pelas casas assombradas, pelas celas e penitências. Pelos buracos de fechadura e pelas imagens no tapete. Retratos opacos, mais cerebrais que psicológicos, ao sabor de diálogos brilhantíssimos, muito agudos, em que cada palavra é familiar, mas sua totalidade, indecifrável, sentido suspenso no enigma como nos lábios das personagens. Veja a figura magnífica de Totuccio Contorno, o ignorante raivoso que só fala siciliano, o único amigo que resta, ele também arrependido por ter se safado de sua execução. É a ocasião de cenas de tribunal babélicas, hilárias, com os olhares e as línguas dispersos como ao longo de todo o filme: italiano, romano, siciliano, português e a canção em espanhol. O traidor, como todo grande filme de família, segue o processo de uma dispersão. 

De jaula em jaula 

Bellocchio tem uma maneira genial de deixar “dias” entre os planos, os rostos, os tempos de sua crônica. Essa maneira de pôr a questão da montagem e da decupagem em termos de junções visíveis e de intervalos deixados, por uma qualidade de solidão, e de saber isolar os corpos, os olhares, as presenças postas. O traidor, sem satisfazer-se com uma virtuosidade sistemática, deixa ver os vazios entre as coisas inajustadas. Os saltos insensatos no vazio (a esposa de Buscetta segurada acima do vazio entre dois aviões) formam os traçados grossos e finos de um filme incessantemente renegociado. É o que há de mais fascinante, o tempo que o filme passa nisso, administrando esses pequenos enclaves, esses momentos curtos que são povoados apenas por esperas e deslocamentos, de um cômodo a outro, de um país a outro, de uma cena à seguinte: como o momento estonteante de repatriação do Rio no avião, todos esses homens esparramados, cochilando, ou mais tarde, após a paranoia no restaurante, a fuga de carro em direção a um novo exílio americano. Idem para os tempos passados entre sala de espera e sala de tribunal e retorno, de jaula em jaula dos mafiosos que fazem o circo. 




Filmar seu concidadão como um estrangeiro é a melhor maneira de captar à distância desejada seu território interior e seu país objetivo, sem folclore do em casa. Bellocchio precede Buscetta, arrasta-o através de países e línguas, ao sabor do cara-a-cara que se deve chamar de “cara-a-costas” (cenografia magistral no tribunal). É o retrato perfeito de um siciliano. E de sua resistência sem glória e sem desonra. É a prova de que, diferentemente do cinema francês, o cinema italiano existe, persiste, documentando sempre, resistindo a si mesmo e a sua pátria. Não uma mise en scène pura, puramente uma mise en scène: a liberdade conquistada de uma velhice relaxada, anárquica, nada a perder, desse cineasta que realiza um filme de gênio, queimando os olhos. 

[1] https://next.liberation.fr/cinema/2019/10/29/marco-bellocchio-representer-le-proces-comme-une-symphonie-du-desordre-et-de-la-provocation_1760424
[2] https://next.liberation.fr/cinema/2019/10/29/pierfrancesco-favino-calme-d-or_1760428

“Le Traître”, gibier de pénitence foi publicado no jornal Libération em 29 de outubro de 2019 (https://next.liberation.fr/cinema/2019/10/29/le-traitre-gibier-de-penitence_1760427). Tradução: Rafael Zambonelli.

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