Por Noël Burch
Em 1981, de volta dos Estados-Unidos, ainda tenho alguns laços com os Cahiers du Cinéma que publicam então o meu livro sobre o cinema japonês. Ingenuamente, eu lhes proponho em seguida uma coletânea de textos representativos da nova crítica anglo-estadunidense, particularmente feminista. Nenhuma resposta clara, o projeto se perderá nas areias. Michel Marie o retomará em 1993 para a coleção que dirige na editora Nathan (Revoir Hollywood). Será um fracasso nas livrarias, nenhum professor de cinema se dignou a indicá-lo aos seus estudantes. Mas eu levei dez anos para compreender a extensão do abismo que me separa doravante dos Cahiers e de tudo que eles representam. Ainda em 1993, essa tomada de consciência assumirá a forma desse artigo polêmico publicado na revista comunista La Pensée.
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Um filme é, acima de tudo, “um lugar de trocas sociais complexas entre as classes e os sexos, entre aqueles que possuem o poder e os que não o possuem, entre homens de negócios de diferentes origens, intelectuais de diversas tendências, e consumidores historicamente e socialmente definíveis”. Não suspeitávamos que ainda hoje um teórico poderia defender com a febre extremista e intolerante do recém-convertido um sociologismo tão simplista.
Crítica de Revoir Hollywood nos Cahiers du Cinéma (fevereiro de 1997)
“... o acompanhamento musical era a regra...” Como se quiséssemos restaurar a ideia de um divertimento puro, reencontrar a aura original do cinema espetáculo. Isso parece ao mesmo tempo vão, pusilânime e passadista, pois é como esquecer (ou recusar) o postulado que nunca mais poderemos (felizmente), o que quer que aconteça e que façamos, ver completamente da mesma maneira um Griffith nos anos 20 e hoje. Esse princípio não impede de maneira alguma, pelo contrário, Griffith de permanecer moderno justamente porque seus filmes conseguiram atravessar as crises e os desenvolvimentos sucessivos do cinema, resistir às variações de seu estatuto e da sua percepção pública, coletiva.
“Cinémémoire: ciné-bazar?”, Cahiers du cinéma, n° 463, janeiro de 1993.
Lendo tais ucasses, eu meço no fundo do meu amor-próprio (e daquele dos meus aliados) a distância que me separa do que voltou a ser por volta de 1979-1981 – quando eu estava fora de Paris – o discurso hegemônico, na França, sobre o cinema enquanto patrimônio cultural. No registro socioeconômico, nós outros, homens e mulheres de esquerda, vivíamos já penosamente esse pesadelo que a Trilateral e os Chicago Boys tramaram sabiamente a partir do começo dos anos 70. Para aqueles dentre nós que se preocupam com o registro mais modesto da cultura cinematográfica, é numa versão derrisória desse pesadelo com o qual nos debatemos, sobre o peso de um fantasma onipresente que nos legaram os jovens homens que criaram os Cahiers du Cinéma... num espírito decididamente menos maquiavélico que este que presidiu à redação de Crisis in Democracy[1].
Pois de onde falam essas citações dadas na epígrafe se não deste astro altivo, colocado em órbita pelos ilustres anciãos e morto há certamente muito tempo, mas cuja luz desbotada nos banha ainda, e que eu gosto de nomear Cinefilia?
Astro morto no sentido de que nada mais se produz – nem mesmo o entusiasmo descobridor da época heroica – mas cuja irradiação, no entanto, continua a afligir nosso microcosmo de uma verdadeira paralisia, facilmente verificável nos discursos da maior parte dos órgãos jornalísticos e das salas de classe onde “o cinema” é ensinado, na universidade... ou no colégio[2].
Genealogicamente, a cinefilia[3] resulta de uma espécie de cissiparidade com o surrealismo (Louis Delluc, o primeiro cinéfilo no sentido forte da palavra, é próximo dos surrealistas, e no Le Film, jornal de Delluc, Aragon anuncia com mais talento uma abordagem similar). A afinidade profunda entre essas capelas gêmeas se reconhece em dois gostos compartilhados: este do desvio – princípio que subentende, por exemplo, uma certa idealização do cinema popular estadunidense, que remonta precisamente a Delluc. Para a cinefilia (francesa, mas a cinefilia é francesa) dos anos 10-20, depois 40-50, a incensação do cinema de Hollywood, desonrado pelo establishment intelectual, é uma maneira de desafiar a academia com gostos “plebeus”. Mas a atitude condescendente frente à intriga, muito em evidência desde Delluc, atesta ora um desprezo elitista pelos verdadeiros destinatários desses filmes, ora uma projeção de gostos “sofísticos” sobre esse público popular. Ademais, a leitura cinéfila desses artefatos populares, leitura superficial (eu diria, quase que pela força das coisas: crassa ignorância da língua, da cultura, da história estadunidenses), deixa passar a riqueza de obras frequentemente muito importantes que um Delluc, um Epstein, um Bazin ou um Truffaut, de faro impecável, empenhavam-se em fazer conhecer. Essa primeira cinefilia compartilha também com todas as vanguardas o gosto da opacidade do significante, mesmo da abstração, esboçada na tela pelos experimentadores europeus dos anos 20, mas que receberá enfim a sua cidadania na França, no cinema narrativo e na crítica que o acompanha, com uma certa tendência da Nouvelle Vague, no sentido amplo da expressão: Godard, Resnais, Straub, Hanoun... Mas é preciso notar que o engajamento do primeiro surrealismo inscrevia-se em falso contra esse hermetismo abstracionista; o que pode ser lido ao contrário na palavra de ordem “Estrutura e abstração” da efêmera revista Cercle et Carré lançada contra o movimento de Breton em 1930. O fotógrafo dadaísta convertido, Raoul Haussman, escrevia aí que o gestual de Chaplin “esculpe de certa maneira no espaço”, enquanto os surrealistas viam em Carlitos, por outro lado e segundo seus gostos, um “sonhador revoltado”.
O observador de modos de Cinefilia constata que hoje as semelhanças entre o procedimento dos autores franceses supracitados e aquele de seu irmão inimigo do outro lado do Atlântico, o underground dos anos 60, se tornaram mais evidentes que outrora. Pois são esses dois estetismos que englobam uma categoria cinefílica que parece, doravante, seguir naturalmente: o cinema moderno. Para quem foi testemunha das gracinhas que aclamaram, durante mais de vinte anos, as projeções públicas de Stan Brakhage, Jonas Mekas e ainda Michael Snow em Paris, onde apenas os erotismos de um Warhol e de um Anger caíram em graça, é engraçado descobrir hoje a discreta “homologação” desse underground outrora desprezado, conversão ligada, evidentemente, desde Pompidou, à adoção do modernismo cosmopolita como arte oficial na França.
Na ocasião da minha longa estadia em Cinefilia, eu fui seduzido antes dos outros pelos filmes do romancista Alain Robbe-Grillet, que os inventores da política dos autores execravam. Hoje, o papel de Alain Robbe-Grillet na codificação do cinema moderno é aparentemente mais reconhecido, o que nos ensina talvez alguma coisa sobre a cinefilia tardia, esse homem das letras sendo, com Boulez, um dos grandes emblemas da oficialização das vanguardas desde 1970.
Mas, já na época heroica, o autor de Voyeur, sem talvez poder analisá-la, participa de uma convergência profunda entre cinefilia “autorista” e alto-modernismo literário. Quando no mesmo momento os Cahiers desenvolvem sua filosofia sob o signo de Bazin, Robbe-Grillet redige um credo da literatura modernista francesa que é estranhamente próximo daquele do grande profeta de Cinefilia. Em 1956, o futuro realizador de A Imortal invoca o cinema para ilustrar sua defesa a favor de um romance “anti-balzaquiano”, que recusaria tanto a profundidade psicológica quanto o realismo social.
No lugar desse universo de significações (psicológicas, sociais, funcionais), seria preciso então tentar construir um mundo mais sólido, mais imediato. Que seja, primeiramente, pela sua presença que os objetos e os gestos se imponham, e que essa presença continue depois a dominar, acima de toda teoria explicativa que tentaria lhes encarcerar em algum sistema de referência, sentimental, sociológico, freudiano, metafisico ou outro qualquer (Robbe-Grillet 1963a, 20).
Quando escreve essas linhas, Robbe-Grillet, que se mantém bem distante de qualquer espiritualismo, sabe até que ponto suas afirmações se aproximam da ontologia mística de André Bazin, tão influente para o autorismo cahierista?
As virtualidades estéticas da fotografia residem na revelação do real. Um reflexo na calçada molhada, um gesto de uma criança, não dependia de mim distingui-los no tecido do mundo exterior; somente a impassibilidade da objetiva, despojando o objeto de hábitos e preconceitos, de toda a ganga espiritual com que a minha percepção o revestia, poderia torná-lo virgem à minha percepção e, portanto, ao meu amor. (1958, 18)
Na verdade, essa vertente da arte pela arte provém de uma versão do alto-modernismo, eu diria “expurgada”, do surrealismo, que reprimira o que ele tinha de subversivo, de engajado (cf. a evolução de um André Masson).
A equipe de Positif era animada pelos herdeiros do surrealismo – e por isso, certamente destinados à cinefilia – mas de um surrealismo engajado. É por isso que ela se opôs com muita determinação aos Cahiers durante mais de trinta anos, mesmo se hoje essa revista parece ter aderido a um brando consenso. Sobretudo, será Positif que publicará, pouco tempo depois da morte de Bazin, a primeira grande crítica materialista das suas teorias (Gozlan).
Frente ao surrealismo, falta à cinefilia sobretudo essa contribuição essencial que foi o freudismo. Apesar de uma coabitação estratosférica e penosa nos anos 70, a psicanálise dá medo aos nativos de Cinefilia, sobretudo depois que as feministas anglo-estadunidenses se apoderaram dela. A partir da minha própria experiência dos acontecimentos de maio-junho de 1968, eu começava então a me dar conta da extrema pobreza do formalismo musicalista de (Uma) Práxis do cinema, eu me conscientizava que meus colegas e amigos, os “autoristas”, depois os estruturalistas influenciados pelo marxismo e pela psicanálise (eram por vezes os mesmos), faziam então o que eu não fazia, só podia sonhar em fazê-lo: eles interrogavam o conteúdo dos filmes, os sentidos complexos que esses podiam engendrar, sua inscrição social e histórica. Era a época de trabalhos muito importantes dos Cahiers: período que vai do texto coletivo sobre Young Mr. Lincoln de Ford (n° 223, 1970) a “Deux fictions de la haine” dedicado aos filmes Carrascos também morrem e Ser ou não ser (Comolli e Geré, n° 288-289, 1979). Sobretudo, essa época é rica devido seu combate contra a cinefilia. E lembremos que se a obra de Christian Metz escapa também desse formalismo, é precisamente porque ela é, sempre implicitamente, explicitamente ao menos uma vez, crítica da cinefilia: da sua própria em O significante imaginário, mas da de todos na medida em que Metz exige constantemente uma “escuta” não fantasmática dos filmes.
Mas no fim da década, quando minha manca evolução me permitiu enfim compreender mais ou menos esses trabalhos, eles tinham caído num alçapão e todo mundo tinha voltado ao astro morto, tentando fazer esquecer seu flerte aqui embaixo com o freudo-marxismo. Só os anglo-saxões “ainda liam isso”, e tudo estava dito.
Foi somente, durante os primeiros anos da minha tardia carreira na universidade francesa, que eu compreendi que na verdade toda a cinefilia e todas as práticas críticas e teóricas que dela provêm (hoje quase hegemônicas na França) são essencialmente formalistas. O termo pode ser discutido. Sobretudo para aqueles que ainda se lembram da ambição revolucionária do formalismo literário russo. Na área que nos preocupa, nada disso. Desde o começo, trata-se, sob diversos disfarces, de um formalismo a-favor-da-arte-popular baseado nessa simples receita: se necessário, para encontrar o que é valioso num filme, procurar em todos os lugares menos no roteiro, contornando cuidadosamente tudo que seria acessível à “analise temática” ou ao “sociologismo vulgar”, formulações sancionadas pela doxa cinéfila para desvalorizar a busca pelos significados nos filmes. Eu entendo, hoje, muito mais as razões do meu primeiro mentor, Pierre Kast, esse velho resistente, que me repetia sem parar que um filme “é, em primeiro lugar, um roteiro”, que o cinema “não é uma arte gráfica” e que terminou por sair dos Cahiers[4] batendo a porta.
Vejamos, para lembrar, o que isso gerou depois de noventa anos. Nos primeiros tempos, o culto dos rostos, das paisagens, dos acessórios, em uma palavra, da “fotogenia” cara a Delluc e seus contemporâneos. Mais tarde, entre outros, a descoberta por Bazin do “segredo do gênio” de Jacques Becker: “ele faz filmes sobre nada, e cujo grande valor reside unicamente no estilo” (Bazin, 1983), esse “nada” não sendo outra coisa que as relações sociais entre o masculino e o feminino, substância entretanto essencial a pelo menos 99% dos filmes de ficção: eis um aspecto do transcendentalismo baziniano que é simplesmente mais masculino que católico-existencialista.
Em seguida, o perfil místico e sempre retomado do filme de autor no qual, durante muito tempo, os Rohmer, Truffaut, e outros Rivette (ou Henri Agel, militante católico por excelência) encontravam invariavelmente uma imitação da Queda e da Redenção que suplantava e desvalorizava a narrativa evidente, fazendo parecer como trivial qualquer ressonância com o real. Em seguida, e mais confidencialmente, a versão laica desse reducionismo, quando Raymond Bellour acreditara poder conduzir todo o cinema hollywoodiano, não mais ao caminho da cruz, mas ao itinerário edipiano[5]. Enfim, nos nossos dias, esse consenso espantoso – parisiense no princípio, mas cujo poder esclerosante, eu constato, afeta todos os países francófonos e latinos – autoriza tal professor de faculdade a dar como instrução ao candidato à graduação: “Quando vocês analisam um filme, não procurem o significado”, outro professor a decupar em fatias esse imenso e complexo psicodrama da identidade racial que é Rastros de ódio para reduzi-lo à estilística fordiana e a alguns clichês que resumem a “visão de mundo” desse realizador e a evidência da sua beleza inefável.
Durante muito tempo, fiquei surpreso pela reconversão de Raymond Bellour que se afastou do western e de Hitchcock para abraçar a videoarte e as práticas de vanguarda. Ele não é, aliás, o único a ter seguido esse caminho, mas eu imaginava ingenuamente que esse dirigia, em qualquer circunstância, para longe de Cinefilia. Hoje eu entendo que Bellour, Kuntzel e outros eram na verdade percursores, tecendo laços entre as duas faces – desvio e hermetismo – de uma “cinefilia do amanhã”, essa que nós conhecemos de fato hoje, essa que ocupa na França os lugares de poder (revistas, cinematecas, comissões universitárias e governamentais), essa que entroniza agora no mesmo céu da ewige Kunst Edgar G. Ulmer, Robbe-Grillet e Peter Kubelka.
Essa “nova” cinefilia e seu poder se fundam sobre uma grande reconciliação que, suponho, ocorrera durante os anos 80, década do “fim das utopias” e do retorno simultâneo – como que por acaso – à arte pela arte. Essa reconciliação, que oficializou simultaneamente a convergência objetiva entre Robbe-Grillet e Bazin, reaproxima também, alguns vinte cinco anos depois, as duas grandes correntes da cinefilia parisiense: os defensores de um cinema de fatura clássica, mesmo acadêmico (de Murnau a Hawks, passando por Mizoguchi), e os adeptos de estéticas barrocas, mais ou menos em ruptura: essa de um Welles, de um Kurosawa ou de um Alain Resnais, colaborador de Duras e de Robbe-Grillet.
Muito pouco propenso às leituras “universalistas” dos fenômenos da sociedade, eu admito de boa vontade, no entanto, que essa reconciliação-interpenetração entre cinema clássico e de vanguarda num terreno balizado pelos emissários de Cinefilia se estende hoje a todos países desenvolvidos e além. Esses “grandes cineastas” da fanfarronice e da derrisão, os David Lynch, os irmãos Coen e outros Peter Greenaway, que surfam no esnobismo de um novo público pequeno-burguês, não são eles os rebentos dessa reconciliação... pós-moderna?
Quanto ao cinema do Hexágono, Serge Daney não concedeu outrora, visto a mediocridade ambiente, uma espécie de certificado de mérito a Beineix, Carax e Besson... devido sua qualidade de cinéfilos? Essa mise en abîme perpétua e estéril, esse umbiguismo corporativista se refrata através do conjunto da instituição, da fascinação das análises pela auto-reflexividade textual (um filme digno desse nome “só fala” do cinema) até à camaradagem do adiantamento das receitas e o nepotismo que reina nos meios ditos de criação, passando pela prática cada vez mais difundida, no meio dos realizadores da moda, da citação dos “clássicos”.
Um dos traços mais evidentes do mal cinefílico é a supervalorização do cinema, das obras assim como da atividade que as produz. Ela é particularmente evidente na França, onde a algazarra midiática em torno desse “evento cultural” derrisório, que é o grande bazar de Cannes, só é a face mais vulgar dessa supervalorização. Mas essa se assenta, antes de tudo, sobre esse formalismo que eu denuncio, a auréola do sobrevalor podendo residir somente além do vulgar “o que isso conta” – na magia da mise en scène. A cinefilia é certamente uma maravilhosa maneira de se manter acima dos outros: ser cinéfilo hoje é ver, como se fosse uma evidência, o porquê que Woody Allen habita o mesmo panteão que... os romances de Raymond Queneau, por exemplo.
Mas imaginemos a luta que devem liderar hoje os habitantes do astro morto para preservar, neles mesmos, esse senso de nobreza da “arte deles”, essa última cada vez mais ameaçada pelos mecanismos do dinheiro, do oportunismo comercial, da exploração cínica das pulsões e fantasias populares, do sincretismo sensualista etc. Ao ponto de que, aliás, grande parte dos professores – para um crítico, é mais difícil – desviam-se completamente do cinema atual (podemos compreendê-los, mas isso os afasta de seus alunos) para se dedicar à manutenção de uma galeria de obras-primas, detalhadas, formalizadas, sublimadas.
Como surpreender-se uma vez que os estudantes de elite estadunidenses, desembarcando em Paris para respirar o mesmo ar que Bazin e Metz (ou Foucault e Barthes!), descobrem que seus professores de cinema não têm nada para lhes dizer? Um pensamento que morde a sua própria cauda e que só mobiliza um espírito muito particular, predisposto ao fetichismo cinefílico, um ser jovem sem dúvida, impregnado dos valores do universal masculino hexagonal.
Porém, o preço a pagar por essa decadência não se detém às observações indelicadas dos estudantes estadunidenses. Ele pode ser calculado, a cada ano, pela pobreza das revistas e dos livros que aparecem, na confusão dos estudantes franceses, e também sem dúvida na mediocridade da produção de autor francesa, enviscada na crônica narcisista e na recusa de qualquer engajamento.
Da minha parte, e por ter praticado durante muito tempo a fuga perante o significado, eu sei até que ponto isso é imaturo e empobrecedor. A própria substância de um filme, de todo filme, “ficção” ou “documentário”, produzido no interior da instituição, e isso desde que ela existe, é ideológica (que eu defino num sentido não-pejorativo: conjunto de representações através do qual um certo grupo humano tenta compreender o mundo, sem julgar previamente o modo de constituição, mais ou menos espontâneo, dessas representações). É certo que semelhante afirmação vale mais ou menos também para todas as outras “práticas significantes” – como dizíamos outrora para marcar nossa desconfiança em relação aos conceitos de “arte” e de “criação”. Mas o cinema, devido meramente a lógica material e econômica de sua produção, é filtrado através de todo um conjunto feito de organismos sociais e de indivíduos, que exercem em cada filme, potencialmente ou efetivamente, um poder certamente mais diversificado mas infinitamente mais pesado que aquele que exerce, por exemplo, uma editora no trabalho de um escritor. Esses organismos, esses indivíduos são todos por definição portadores de ideologia, e sua influência se acrescenta então à dessas outras “vozes” que cada criador carrega em si, mas que não são verdadeiramente as “suas”. Por causa do seu lugar na cadeia de produção que multiplica as instâncias de mediação (todas nas mãos das camadas dominantes, obviamente), mas também por causa de seu status de arte popular (quase 100% popular até a metade dos anos 50), o filme é uma criação cuja própria substância é um fundo de imagens e de pensamentos coletivos provenientes do imaginário social.
A cinefilia, parece-me, pode aceitar tais asserções, com a condição de que a noção de “substância” não evoque nada além da relação entre a argila e a modelagem. Que a substância esteja destinada, em suma, a se dissipar na forma e na transcendência, prova suprema da existência do autor autônomo, inabalável promessa do frisson “visita de ateliê” proporcionada ao adorador pela intimidade de um gênio criador. O que lhe é menos fácil de admitir é que o que gera um belo filme, é quando um autor genial (com ou sem aspas) retrabalha, geralmente, mas não sempre à contracorrente, essa substância comum. Ou que essa beleza não pode ser analisada sem conhecer a substância sócio-histórica que lhe dá corpo (pois as configurações ideológicas são delimitadas no tempo e no espaço, mesmo se os motivos que as compõem parecem às vezes se perder de vista). Enfim, que essa substância, longe de ser uma essência desencarnada, existe unicamente através de outras milhares de representações moldadas no mesmo meio, na mesma época e no coração de uma mesma cultura. O que significa que estudar e comparar o número “infinito” de representações a partir dessa mesma substância, é progredir na compreensão das obras-primas sem dúvida, mas ainda na de muitas outras coisas, no imaginário como no real. E isso é válido, sobretudo, para o espectador simples que pratica espontaneamente essa abordagem ética das obras quanto para os “profissionais”, críticos ou universitários.
Nas críticas, públicas ou confidenciais, adereçadas outrora aos animadores do Cinémémoire[6], um lugar de destaque parecia reservado à ideia de que esses se dariam o direito de exibir qualquer coisa. Fazendo isso, eles desperdiçavam certamente o dinheiro dos contribuintes e patrocinadores mas, sobretudo, corriam o risco de ofuscar (de entediar) o olho delicado dos habitantes de Cinefilia, esse olho trans-histórico à procura do êxtase mas que para isso mobiliza todo o peso da cultura, do gosto e do saber próprio àquele que sabe ver um filme, ou seja, não lá onde os imbecis o procuram, do lado da narrativa-pretexto, da veracidade factual da intriga e dos personagens, mas em outro lugar, lá onde isso se passa, lá onde opera o inefável Aha-Effekte caro a Kant e do qual Walter Benjamin zomba em algum lugar.
Ora, existem outras maneiras de ver filmes, menos introvertidas, mais produtivas de conhecimentos e outros prazeres. Sem dúvida que os filmes são todos “iguais” apenas nos olhos do arquivista (mas é indispensável que eles o sejam aos seus olhos: “é preciso salvar tudo”, dizia Jacques Ledoux, cuja Cinemateca Real da Bélgica se situava nas antípodas do elitismo de Henri Langlois). O que é certo, em contrapartida, é que todos os filmes produzidos numa mesma época e numa mesma formação social estão unidos entre si por ligações infinitamente mais consistentes e significativas – para um espírito curioso pelas coisas do mundo – que aqueles que associam os filmes de um autor, seja ele verdadeiro ou falso. Nos anos 30 na França, por exemplo, a misoginia que estrutura fundamentalmente A cadela (Renoir, 1932) é a mesma que a de David Golder (Duvivier, 1931) ou de Naples au baiser de feu (Genina, 1937); ao mesmo tempo, o personagem de puta composto por Viviane Romance, nesse último filme, contém já em germe não somente a parisiense revoltada pela descoberta da condição das mulheres muçulmanas em L’Esclave Blanche (Sorkin/Pabst, 1938), mas também o “ídolo pagão” convertido em madona da revolução nacional em Vénus Aveugle (Abel Gance, 1940) (Burch e Sellier).
Quantas obras-primas eu citei? Para mim, nenhuma e pouco importa. A história do cinema não se estrutura em obras-primas, mas de uma maneira muito mais complicada e mais interessante para aquele cujo prazer de espectador é aquele de compreender... Não muito complicado para o espetador médio de manifestações como Cinémémoire, mas muito doloroso – eu compreendo-os – para os cinefilianos na sua caverna (eu esqueci de especificar que os habitantes do astro morto passam a maior parte do seu tempo acorrentados no fundo de uma caverna a contemplar sombras que se agitam numa parede?).
Três considerações sobre um “gênio do cinema”:
1. A equipe da Vitagraph, entre 1906 e 1913, segundo o que podemos supor hoje, fez filmes sistematicamente mais sutis, mais humanos, mais atraentes e mais diversamente inovadores que aqueles de D.W. Griffith na Biograph durante o mesmo período, em parte talvez porque eles se endereçavam a um público citadino mais sofisticado que o público provinciano do qual Griffith é próximo.
2. Os longas-metragens que esse realiza a partir de 1913 empalidecem perante tudo que fazem de melhor os grandes países produtores da Europa (França, Itália, Suécia, Rússia) e mesmo frente a bons artesãos estadunidenses como os irmãos Ince ou os irmãos DeMille[7]... Evoluindo muito pouco depois de Intolerância (1916), seus filmes se encostarão ainda nos códigos do melodrama popular mais tosco na época da sua “maturidade”. Qual é o peso, como obra de arte, visto que é disso do que se trata aqui, de Lírio Partido (1919) ou de Órfãs da Tempestade (1920)[8] frente a esses outros melodramas que são Assunta Spina (Gustavo Serena, 1915), The Lass from the Stormy Croft (Victor Sjöström, 1919), Father Sergius (Protozanov, 1919), La Terre (André Antoine, 1921) ou A Roda (Gance, 1923)?
3. O pertencimento de classe, de raça e de sexo que determina as histórias contadas por Griffith informa, tanto quanto o “curso de história da linguagem”, as inovações que associamos ao seu nome. É a luta patética da pequena burguesia contra o Outro odiado – o lúmpen que cobiça suas economias ou seu cofre (a maioria dos filmes da Biograph), o mestiço que cobiça a virtude de sua mulher (Nascimento de uma nação) – que tornam necessárias as principais figuras da escrita griffithiana quando ela fora nova: o suspense justiceiro da montagem paralela, os “raccords” perfeitos entre estar-dentro e estar-fora, entre interior privado seguro e exterior público ameaçador. Podemos dizer sobre a arte de Griffith, e sobretudo na sua época mais inovadora, que ela é sobressaturada de ideologia, e da pior, tanto que para elogiá-la é preciso efetivamente torcer o pescoço da significação. A variante estruturalista da cinefilia tem uma outra maneira de inocentar esse “mestre”: análises narratológicas eruditas que evidentemente não têm que ter em conta o sentido social (ideológico) já que estão acima de “tudo isso” (Aumont).
Griffith está tão longe quanto o possível desses grandes cineastas que, no que me concerne, eu admiro mais, precisamente porque eles trabalham à contracorrente o imaginário social no qual eles estão imersos (Hitchcock, a equipe de Val Lewton, os filmes noir de Fritz Lang, Vidor nos melodramas, Nicholas Ray até Johnny Guitar, citando apenas alguns criadores de Hollywood). Certo que, no seu tempo, Griffith agradava. Mais ou menos nas mesmas bases que o evangelista Pat Robertson, defensores dos valores mais integristas dos Estados-Unidos contemporâneos.
Então, vá provar a sua tolerância e moderação quando chega um novato que conhece seus clássicos e apoia-se na perenidade imortal do grande Griffith para bater com os corajosos animadores de Cinémémoire.
A história do cinema vista pela cinefilia é como a História para as classes fundamentais há cinquenta anos: uma sucessão de Grandes Homens (com o bônus da virtude miraculosa dos novos monarcas que permanecem “sempre modernos”). O culto de Griffith, como o de Howard Hawks, por exemplo, é certamente a prova dos nove da maravilhosa capacidade dos cinefilianos de desdenhar do sentido evidente dos filmes, de repetir incansavelmente de geração a geração uma doxa que só se mantém graças ao afastamento no tempo (o qual autoriza, por exemplo, a reabilitação de um “grande mestre” como Leni Riefenstahl), graças à “inocência da América” e a um certo gosto inconfessado pelo kitsch (entre kitsch e desvio, a fronteira é difusa). Serge Daney, numa semi-confissão (Daney, 1994, 80 ff.), confirma o que transparece evidentemente numa leitura minimamente atenta dos textos dos primeiros jovens autoristas: eles privilegiavam os filmes hollywoodianos porque o cinema francês era muito adulto para eles.
Alguns poderiam objetar que o apadrinhamento de Eisenstein reconforta, à minha esquerda, o seu culto de “D.W.”. Mas se, em 1920, os neologismos de Griffith são eminentemente úteis a jovem escola soviética e a sua vontade de tábula rasa, esse grande formalista que era Eisenstein toma cuidado de sublinhar que ele sabe a que ponto Griffith representa tudo o que ele odeia. Aliás, essa doxa não aparece mais em nenhum lugar nos Estados-Unidos, onde apenas alguns pesquisadores submetidos ao formalismo parisiense conseguem se abstrair do conteúdo dos filmes de Griffith para conservar o seu culto.
Cinémémoire tinha certamente defeitos, alguns dos quais eram atribuídos a necessidade de comprazer à parte cinéfila do seu público. Mas seus grandes méritos – incluindo precisamente o de se lembrar que o cinema mudo é uma arte lírica, que os filmes dessa época são incompletos sem uma partitura musical adequada (original ou não) – provêm precisamente do fato que aqueles que o animavam não eram, no princípio, nativos de Cinefilia.
Denunciando essa hegemonia cinefílica, eu acredito combater, aqui onde estou, esse desengajamento sociopolítico, esse pessimismo cultural impulsionado pelo novo estrato de intelectuais na mídia. Sob esses múltiplos disfarces, esse cinismo desiludido é sem dúvida o adversário mais tenaz ao qual devem, hoje, confrontar os professores, pesquisadores e criadores que continuam achar pertinente a análise materialista dos fenômenos sociais – e o filme é certamente um fenômeno social, não apenas nele mesmo mas como um lugar de troca. Para jovens estudantes, jovens leitores(as), se acostumar a considerar como inexistente e nulo o sentido produzido pelos filmes, é se acostumar a fazer o mesmo com o sentido dos fenômenos sociais.
[1] Uma espécie de esquema diretor do duro neoliberalismo a partir de Thatcher e de Reagan, elaborado pela Comissão Trilateral. Os editores estadunidenses tendo recusado a tradução numa língua de um país tão tumultuado como a França, as Editions Sociales encomendaram assim um resumo analítico a Maurice Goldring em 1978.
[2] Gostaria de distinguir nesse “quase”: 1) alguns artigos de certos colaboradores da Positif e da rubrica de cinema do Libération que de vez em quando rompem com o formalismo ambiente 2) esses sociólogos da cultura que, depois de Pierre Bourdieu, falam do cinema fora da seção do CNU “Arts et Esthétique” que reúne os estudos de cinema na universidade francesa.
[3] Que fique bem entendido que a “cinefilia” visada aqui não é a inocente prática que consiste em ir muito ao cinema, mas sim uma instituição produtora de textos, de aulas – e, desde a Nouvelle Vague, de filmes – detentora de um poder e, em princípio, de um saber. Certo que, na França, muitos cinéfilos comuns aderem à visão que eu denuncio, mas não todos, felizmente.
[4] Só foi muito recentemente que, por meio do visionamento do surpreendente Férias portuguesas que eu entendi que esse homem, tão generoso nos seus esforços para fazer entrar esse pequeno jovem ingênuo que eu era na profissão, mas para o qual o cinema me parecia então o sumo do tédio, era na verdade mais ou menos o único da Nouvelle Vague a ter provado, nos seus filmes, uma abordagem adulta, não-misógina, das relações homens-mulheres. (Cf. Sellier 2005)
[5] Receita que durante muito tempo fascinou o grupo mais importante de teóricas feministas estadunidenses, animadoras da revista Camera Obscura. Existe ainda hoje uma vertente modernista no coração da crítica feminista transatlântica que reivindica a autonomia da estética, essencialmente em nome da psicanálise.
[6] Tratava-se de uma iniciativa, sob a autoridade de Jack Lang e pilotada por Christian Beylague, que consistia em mostrar anualmente as últimas descobertas e/ou restaurações dos arquivos do mundo para o maior público, particularmente, graças ao acompanhamento musical dos filmes mudos. No final de três anos, ela foi anexada e depois suprimida pela Cinemateca Francesa que, por elitismo cinefílico, era profundamente contrária à iniciativa.
[7] Ralph Ince e William DeMille foram redescobertos precisamente, esses últimos anos, na ocasião das Jornadas do cinema mudo de Pordonone, manifestação criada por colecionadores nostálgicos, mas que conseguiu seduzir toda uma cidade de trabalhadores, e cujo saudável ecletismo fora a fonte de inspiração para Cinémémoire.
[8] Filmes certamente fascinantes a analisar para quem procura compreender importantes dimensões do imaginário social estadunidense por volta de 1920 (cf. Marchetti, Williams 1998).
Cinéphilie et politique foi republicado na coletânea De la beauté des latrines : pour réhabiliter le sens au cinéma et ailleurs, Paris, L’Harmattan, 2007, p. 63-76. Tradução : Leticia Weber Jarek.
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