O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

“Nossa Senhora dos Turcos”: Entrevista com Carmelo Bene


Por Jean Narboni 

Carmelo Bene: Por que todas essas fitas cassete, vamos ser breves... 

Cahiers du Cinéma: Sim, breves, mas por bastante tempo. 

Bene: Sabe, em geral, eu detesto jornalistas... 

Cahiers: Mas não somos jornalistas. 

Bene: Na minha coletiva de imprensa, pedi que todos os jornalistas e críticos italianos saíssem ou então eu mesmo iria embora. 

Cahiers: O que houve? 

Bene: Fizeram algumas injúrias e eu saí. 

Cahiers: Então, por que estar aqui? 

Bene: Porque vocês não são italianos. 

Cahiers: Durante seu filme, você esteve sobretudo diante ou atrás da câmera? 

Bene: Os dois ao mesmo tempo. Estou em quase todos os planos, mas, se eu não atuasse, acho que estaria tanto quanto diante da câmera durante a filmagem. Para mim, rodar um filme — atuando nele ou não — é estar em igual medida de cada lado. 

Cahiers: Seu personagem, para ser encarnado, reclama (usemos um eufemismo) “um certo estado de delírio”. Ao mesmo tempo, os quadros, a progressão, são calmos, rigorosos, precisos, refletidos... 

Bene: Tudo estava concertado, sobretudo o delírio. Pelo menos a intenção do delírio. O delírio, mas isso só depois, era um verdadeiro delírio. Primeiro penso em viver, depois eu vivo, a mesma coisa continua. Eu improviso a partir do que é muitíssimo elaborado. 

Cahiers: Frequentemente, os filmes dão a impressão de uma confusão completa entre a desordem que o metteur en scène quer filmar e a maneira como ele a filma. Aqui, não. 

Bene: Porque eu contesto meu próprio delírio, delirando e no momento em que o tenho. Tento não me comprazer com isso. É a única liberdade completa. Senão é delírio. 

Cahiers: Todas as obsessões, todos os mitos italianos estão presentes e do avesso em seu filme: a Virgem, o bel canto etc. 

Bene: A Itália é o que menos me interessa no filme e na vida. Os mitos italianos não me dizem respeito. A Virgem e os Evangelhos são para o Pasolini. 

Cahiers: Isso não impede que esses mitos estejam lá e que o filme não será recebido da mesma maneira na Itália e em outro lugar. 

Bene: Culturalmente, eu não sou italiano, mas árabe. 

Cahiers: Mas a Itália do sul é árabe... 

Bene: Nessa medida, então, sim, sou italiano. Culturalmente, sinto-me mais próximo de Borges ou de Huysmans que de todos os escritores daqui. É preciso tentar desfazer-se de seu próprio condicionamento cultural. Todos os italianos falam do oriente, da China, mas não refletem sobre si mesmos. 

Cahiers: Você gostaria de trabalhar em outro lugar? 

Bene: Não. No fundo, é verdade, há coisas em Nostra Signora dei Turchi que poderiam ser vistas como especificamente italianas. A grande referência na Itália é o melodrama, não a literatura, como na França. A tradição italiana é a música. Vocês têm uma língua, nós, não. Os italianos desprezam o melodrama e, no entanto, é sua única tradição, eles vivem na má consciência intelectual, cultural... Eles cantam e não pensam. 


Cahiers: Qual momento do filme foi o mais importante para você? 

Bene: A filmagem, sem nenhuma dúvida. Tive que ver o filme para montá-lo, mas é um trabalho mais modesto, que não me interessa. Filmando, contesto a mim mesmo, contesto meus projetos, sua realização e, fazendo isso, contesto tudo, contesto o mundo inteiro. 

Cahiers: Por que fazer um filme de seu livro, você que faz teatro? 

Bene: Eu tinha refletido muito no cinema como meio “específico” e tive vontade de filmar isso. O que me importa são as pessoas que têm, inicialmente, uma ideia do cinema. A ideia de cinema contém, sem dúvida, um cinema de ideias, mas o contrário não é verdade. O demônio das onze horas é um filme genial por isso e Week-end à francesa é falho por isso também. Mas, hoje, ama-se e pratica-se o cinema “de ideias” em que as pequenas ideias se chapam sobre a película sem necessidade. Você vai ver quem vai ganhar o Leão do Ouro[1]

Cahiers: E Lewis? Pensamos nele vendo o filme e vendo-o atuar. 

Bene: Não vi seus filmes, ele não me interessa. 

Cahiers: Realmente? 

Bene: Realmente. 

Cahiers: Não acreditamos nisso. Agora há pouco você dizia: contestar-se é contestar o mundo. Portanto, é preciso engajar-se francamente na subjetividade e atravessá-la, e não evitá-la a priori e arbitrariamente? 

Bene: Exatamente. Mas, sobre isso, Valéry disse coisas inteiramente justas. Nós as lemos. 

Cahiers: Se nos detivermos no meio do caminho, há um risco: o narcisismo. Para evitar o narcisismo, é preciso levar o eu até o fim. 

Bene: Justo. Se todo o mundo entrar no filme, aí é o narcisismo completo. É o respeito completo pelo mundo. Não tenho uma modéstia de enfant terrible. Se o mundo inteiro entra em mim, então sou um grande Narciso e levo em consideração o mundo inteiro. Então, não desprezo os outros. Estimo-os como “irmãos”. Os cristãos não entenderam nada. 

Cahiers: O que você faz no teatro tem uma relação com Bussotti? 

Bene: Nós dois somos “mártires”, Bussotti é um músico que só pensa em fazer teatro e eu, um homem de teatro que sonha em ser músico. Eu sou um músico e ele, um homem de teatro, mas eu conheço a música e ele não conhece o teatro. É Debussy e d’Anunzio. 

Cahiers: Mas você acha que vai no mesmo sentido? 

Bene: Temos afinidades em nossa atitude em relação à cultura... Sou músico, mas jamais escreverei música. O mundo fala a mim como a um músico, e não a um cineasta. 

Cahiers: Você viu o filme de Straub sobre Bach? 

Bene: Não e me arrependo disso. O que me incomoda hoje em dia é que todos os músicos se esforçam em explicar a música em vez de fazê-la. 

Cahiers: Mas é preciso que alguém fale dela, os críticos são incapazes disso. Ainda que um pouco menos grave, é a mesma coisa para tudo. 

Bene: Sim. O filme de Kluge é horroroso por isso. Ele não gosta de cinema, ele tem suas pequenas ideias já prontas sobre o mundo, aliás, não desprovidas de interesse — e ele chapa tudo isso sobre um semblante de filme. Além disso, ele não gosta de circo. 

Cahiers: Você quis que seu filme não falasse absolutamente do cinema? 

Bene: Que fale dele, sim, mas não sobre ele. O quadro é uma coisa biológica, natural. Ele recebe o que há no plano. Ele tenta não asfixiá-lo nem desidratá-lo. 

Cahiers: Há um bom tempo, aqui mesmo e com vigor, escuta-se proclamações do fim da arte? Qual é sua opinião? 

Bene: Não somos obrigados pelo governo a fazer arte, a inutilidade da arte garante a existência da arte. Quando se começa a decidir sobre ela, acabou. Li uma vez nos “Cahiers”: “a arte não tem mais que desaparecer se sua própria inutilidade não é mais compreendida”. Estou de acordo. Os estudantes revolucionários tornaram-se dogmáticos, tomaram o lugar dos professores. Rudi Dutschke entendeu bem isso, Lefebvre também. 

Cahiers: E qual papel o cinema tem que desempenhar dentro disso, se ele tiver um? 

Bene: Ele também é inútil e essa é sua força, graças a isso e sabendo disso ele pode quase tornar-se útil. A primeira coisa a ser feita é constantemente incomodar as pessoas, por ora é sua única utilidade. Incomodar com força suficiente para que você não seja recuperado cedo ou tarde e que as pessoas não paguem para “ser incomodadas”. Que não comecem a degustá-lo. 




Cahiers: No seu filme, a alimentação é muito pouco apetitosa. Um pouco como a “brouchtoucaille” de Queneau... 

Bene: Sim, mas não se deve ficar enojado demais e esquecer o que o ator diz no mesmo momento. Na cena da omelete, o teste entre o bom e o mau espectador é que o segundo desvia o olhar e não ouve nada, ao passo que o outro também escuta. Nesse momento, eu digo: “Quando não se tem criada à disposição, tem-se menininhos na cozinha e, se não houver menininhos, tem sempre o forno...” 

Cahiers: É nojento no plano, mas não complacente. 

Bene: Sim, porque não é o desgosto que deve predominar, mas o gosto do desgosto. Ao mesmo tempo, há toda a história do paradoxo do comediante... 

Cahiers: Nessa cena, há um pequeno lado eisensteiniano... 

Bene: Certamente, é Ivan, o Terrível. Em uma cena tão engraçada e com um quadro tão ridículo, a última coisa que se podia fazer era alusão às cenas sublimes em cores de Ivan. E foi por isso que o fiz. 

Cahiers: Quando você se maquia diante do espelho, pensamos também em Welles... 

Bene: Ouve-se aí a música do Terceiro homem. A ideia é que a cena se encontra logo após a do duplo. Aqui, é o título da música que importa, e não a música. Se alguém escutá-la e não lembrar o título está perdido. 

Cahiers: O lado Welles vem também da maquiagem. 

Bene: Bem, aí é puro acaso. Uma referência cultural inconsciente, mas não menos importante, se você a viu. 

Cahiers: Quais são os cineastas que você gosta? 

Bene: Eisenstein e Godard, o único homem de cinema atual, exceto em Week-end à francesa, pelos motivos que lhe disse. 
Adoro Tempo de Guerra, muito próximo de Jarry, que é um de meus autores favoritos. 

Cahiers: Você montou Jarry no teatro? 

Bene: Sim, Ubu Rei

Cahiers: Em Jarry, há referências constantes à trituradora. Seu filme parece um pouco o que deve ser o resultado de uma passagem pela trituradora. Você aceita essa referência? 

Bene: Totalmente. 

Cahiers: No Festival, você viu filmes que gostou? 

Bene: Não. Odeio o Kluge. Tinha vontade de ver, eu lhe disse, o filme sobre Bach e acho que teria gostado do Sócrates de Lapoujade. 

Cahiers: Seu filme vai sair na Itália? 

Bene: Espero que não. 

[1] NdR: Isso se confirmou. 

Carmelo Bene : Nostra Signora dei Turchi é um dos textos que compõe a cobertura do 29° Festival de Veneza, originalmente publicado na revista Cahiers du Cinéma n°206, novembro de 1968. Tradução: Rafael Zambonelli.

Nenhum comentário:

Postar um comentário