O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Prefácio de “Eis o homem: diário de um filme proibido”




Por Noël Herpe

Problemas de gênero

Para escrever o roteiro de Eis o homem, eu me inspirei numa experiência pessoal: aquela que consiste em sair na rua vestido de maneira “diferente” e se confrontar com o olhar dos outros. Eu me dei conta assim do quanto o homem que se veste de mulher (segundo a consagrada expressão, embora se trate na verdade de se reapropriar dos elementos do vestuário que não são de modo algum sexuais a priori) transgride um tabu que permanece muito forte na nossa sociedade. Por exemplo, as boas almas assumirão que isso choca as crianças – que são ainda assim bem mais preparadas para acolher a confusão dos guarda-roupas que os adultos. São os adultos que se prendem à distinção pelas roupas, como se a diferença anatômica não fosse suficiente... E isso se acentua nos nossos dias em comparação aos anos setenta ou oitenta, que cultivavam um certo jogo entre os sexos.

Outro tabu, corolário do precedente e que não temos nem mesmo o direito de evocar: o da desigualdade dos vestuários masculino e feminino. Se as mulheres (e só podemos nos regozijar!) adquiriram o direito à toda a gama de possibilidades, se elas podem usar saias ou calças, saltos altos ou sapatos baixos, cabelos compridos ou cabelos curtos, os homens, por sua vez, não têm mais quase nenhuma liberdade. No que lhes concerne, observa-se a mais ou menos dois séculos uma inacreditável decadência do glamour. Eu entendo isso como a capacidade de pôr em cena os seus corpos, através da vestimenta. Em rigor, valoriza-se o seu torso, seu peitoral, negando literalmente outras partes de sua anatomia: as pernas em particular, elas que constituíram da Idade Média ao século XIX o lugar absoluto da beleza masculina. Seria misógino fazer uma tal constatação, como me acusam as supostas feministas que erraram de combate? Eu acredito, pelo contrário, que mudar o nosso olhar é uma forma (e não a menor) de lutar contra o machismo.

Há alguns anos, eu produzi para France Culture um programa de rádio que se chamava Na pele de um collant. Preparando-a, eu fiquei intrigado com todos esses heterossexuais que se travestem, mais frequentemente na sombra (eu os apelido de “o exército das sombras”), e que são aterrorizados pela ideia de que suas esposas possam saber, ou lhes ver assim. Há aí um lado patético que me parece dilacerante, e do qual eu me lembrei para o meu personagem principal.

Se eu me interesso por essas questões, é, necessariamente, enquanto cidadão. Elas permitem refletir sobre o limite de tolerância de uma sociedade, sobre a liberdade que ela é capaz de aceitar na representação do desejo. Mas eu não pretendo esconder (isso é, aliás, o tema principal de um livro autobiográfico, que intitulei Minhas cenas primitivas): essas questões fazem parte do meu universo fantasmático. O que me fascina acima de tudo, para recuperar a expressão de Judith Butler, são os “problemas de gênero”. Quer dizer, o momento no qual alguma coisa vacila, sempre que o homem se atribui os signos considerados femininos, sempre que ele põe a sua masculinidade à prova. É como uma prova do outro no interior de si.

De fato, meu personagem procura a sua própria feminilidade – e depois, no seu trajeto, ele encontra outra coisa: ele encontra a sua humanidade, uma humanidade que o aproxima de uma certa forma de transcendência. Uma humanidade que ele encontra na humilhação: não há mais vestimenta, não há mais nenhuma dignidade, seu status social desaba. É o pesadelo absoluto. Mas através disso, há talvez uma graça que se revela. Em todo caso, uma estrutura mítica (crística?) que renasce sob os seus passos.

As imagens de cinema

Quando se conta uma história como esta, muitas imagens de cinema se apresentam ao espírito: o travestismo burlesco de Quanto mais quente melhor, sua reaparição mais nuançada em Tootsie, etc. Mas foi necessário esperar Éric Rohmer (com seus Amores de Astrée e Céladon) para ver esse tema ser tratado de uma maneira elegante, perturbadora, comovente. Não apenas porque o rapaz é bonito. Porque seu disfarce feminino, seu devir mulher no meio das mulheres, é a quintessência de um erotismo rohmeriano que nunca tinha sido desvelado a esse ponto. Advinha-se aí a reticência em afirmar sua identidade sexual, o desejo de permanecer numa posição de voyeur, de ver sem ser visto (tantos temas eminentemente cinematográficos). Quando esse filme foi lançado em 2007, eu tive a oportunidade de debater na École Normale Supérieure com uma sabichona universitária – que se indignou ao ver se encarnar tão francamente os simulacros retóricos de Honoré d’Urfé. Citando Horácio parodiado por Diderot (Ut poesis, pictura non erit), ela defendeu que a convenção do homem travesti, tolerável na literatura, não saberia sê-lo na tela: a “freira-caminhoneiro” figurada por Andy Gillet atropelava o seu bom gosto... Assim, mesmo diante dessa Astrée cujo travestismo é vivido na graça e na beleza absolutas, o sorriso de escárnio e o ceticismo continuam.




É um outro Rohmer cuja influência eu modestamente reivindico: o do Signo do Leão ou do Raio verde, o que utiliza de bom grado o documentário para verificar a ficção. Eu tentei, na minha escala, projetar um personagem de ficção (um personagem que sonha com a ficção?) na vida real, e observar o que acontece. Eu queria que os transeuntes na rua, no começo do filme, ou que os aldeões no fim viessem validar com as suas próprias reações a situação dramática que eu tinha escrito. Como se assistíssemos a um verdadeiro evento, surgindo sob os nossos olhos num tremor indeciso. E longe das caretas à la Fellini, ou à la Mocky – o que não exclui uma parte de estilização. O que eu procurei foi uma espécie de mistura frágil da teatralidade e do natural.

Para essa cena do linchamento, que estava no cerne do meu projeto, eu tinha primeiro considerado dois modelos canônicos. Dois modelos ligados ao meu amor pelo cinema, mais do que a uma observação social. Em primeiro lugar, a sequência final de O inquilino de Alfred Hitchcock. O protagonista desse filme é tomado por Jack, o Estripador e perseguido por uma multidão odiosa. Algemado, ele acaba por quase se empalar numa grade, num gestual crístico. No final desse calvário, ele será salvo por uma mulher – como são frequentemente os herois hitchcockianos, como é talvez o “heroi” de Eis o homem. O segundo modelo vem de Pânico de Julien Duvivier: é a longa cena na qual o Monsieur Hire (a partir do seu verdadeiro nome Hirovitch, e que o rumor público designa como um assassino) se encontra perseguido até a morte pela gentinha da sua vizinhança. É uma das cenas mais extraordinárias do cinema francês. Eu tive vontade de reencontrar essa amplitude trágica, esse sentido do pathos que desapareceu completamente da nossa cinematografia naturalista e apaziguada. Uma tal excesso não responde mais aos critérios atuais de verossimilhança, mas é justamente isso que me fascina: o fato de criar uma forte tensão dramática, de ir ao fundo de uma situação, de fazer ver o homem na sua totalidade.

Por que esses modelos narrativos não poderiam se aplicar à nossa sociedade, tanto quanto àquela dos anos trinta ou quarenta? Enquanto terminava a rodagem do meu filme, eu li uma notícia estranhamente próxima do roteiro. Tratava-se de um árabe que os habitantes de uma cidade suburbana tinham molestado, porque eles o tomaram por um estuprador de crianças. A sequência do linchamento em Eis o homem não é, portanto, tão inverossímil quanto podíamos acreditar – mesmo se é preciso às vezes engrossar o traço para mostrar a humanidade tal como ela é. Não denunciá-la, só mostrá-la.

A construção de personagens?

Foi Laurent Achard (grande defensor do roteiro) que me deu a vontade e a coragem de interpretar, eu mesmo, o papel principal do filme. Eu assumo plenamente essa escolha, que acabou por transformá-lo num anônimo. Um quadragenário comum, que poderia ser o espectador. Eu acho essa banalidade mais potente que a representação de um travesti patenteado, profissional ou militante. Ela valoriza a humanidade do meu personagem, ao mesmo tempo que a sua caminhada onírica e sua total solidão.




Meus sequestradores, eles também, poderiam ser qualquer pessoa. Há apenas um certo desequilíbrio entre a pessoa qualquer que eu encarno e a que eles brincam de ser... Revendo hoje Eis o homem, eu constato que os desconhecidos filmados na rua, em Paris, que as pessoas do município de Tousson, tem uma existência maior. Talvez eu devesse ter tornado meus interlocutores (ou pelo menos um deles) mais impressionantes, e mais independentes do meu desejo. Talvez isso seja um mal-estar que eu sinto em relação à “construção do personagem”, dos diálogos psicológicos, de todos esses artifícios do cinema francês que me entediam. Se eu tivesse que refazer o filme, eu tentaria dar aos meus agressores uma dimensão mais alegórica – sem que isso passe necessariamente pelo diálogo. O estilo de Eis o homem poderia ter sido (ainda) mais próximo do cinema mudo.

Os meios que tínhamos

Desde o começo, meu projeto atraiu a ira das comissões institucionais – mas eu tive a sorte de ele agradar à Missão Cinema da Cidade de Paris, que nos concedeu uma ajuda de quinze mil euros. Meu produtor de então teria desejado um orçamento dez vezes maior. Mas para obter tal ou tal apoio regional, era preciso fazer concessões, apagar as asperezas do roteiro e reescrevê-lo num espírito politicamente correto... É assim, hoje em dia, que se financiam laboriosamente os curtas-metragens: cortando tudo o que excede, para agradar o ponto de vista médio do senhor das comissões. De minha parte, eu escolhi fazer meu filme com um jovem produtor menos ambicioso e com, relativamente, pouco dinheiro. Mas conforme o que eu queria.

Eu sabia (demais?) o que eu queria. Eu até escrevi antecipadamente os eixos das tomadas. O que amarrou um pouco meu jovem diretor de fotografia, que teria desejado filmar com câmera na mão, intervir de maneira mais pessoal. No que me concerne, eu prefiro esse método clássico à rodagem de uma infinidade de planos diferentes entre os quais escolheríamos na montagem (o que implica uma considerável perda de tempo e de energia). Isso não impediu que a escritura do filme tenha se transformado, em função de cada etapa do trabalho. No começo, eu tinha imaginado muitos planos-sequência, e foi preparando a decupagem, discutindo com meu co-roteirista David H. Pickering, que eu fui levado a conceber um número maior de campos/contracampos. Os poucos planos-sequência que nós rodamos tiveram finalmente que ser cortados na montagem, porque eles não funcionavam: muito difíceis para iluminar ou para interpretar. De uma vez, eu aprendi que para acertar um plano-sequência é necessário tempo e meios. Dois trunfos que nos faltavam cruelmente.

Uma certa tendência do cinema francês

Nos dois anos que se seguiram, Eis o homem foi submetido a uns cinquenta festivais. Somente três entre eles o selecionaram. No festival “Persona” de Évreux, o filme foi programado fora da competição, um sábado de manhã, acompanhado de um aviso sobre seu caráter potencialmente chocante. No festival do “cinema digital” de Lyon, ele foi projetado diante de três pessoas... Em toda parte, recusas – que na maior parte das vezes não vem acompanhadas de nenhum comentário. Num tal estado, é impossível não pensar que é o conteúdo do filme o que dá medo, a enunciação que eu propunha ali das minhas fantasias (é uma reprovação que frequentemente adivinhava nas entrelinhas). Como se fosse embaraçoso que um cineasta pudesse se inspirar no seu imaginário erótico! É, além disso, uma fantasia muito banal, se fazer sequestrar e estuprar na floresta. É a de muitas mulheres e também de alguns homens. Por que ela não poderia ser filmada?

Desde cerca de quinze anos, desde a época em que eu trabalhava como conselheiro de Gilles Jacob para o festival de Cannes, eu temo que tenha diminuído o interesse por um cinema sulfuroso ou audacioso (a menos que ele venha da Ásia ou do outro lado do Atlântico). O que é privilegiado nos festivais de curtas-metragens é, mais do que nunca, uma “certa tendência do cinema francês”, herdeira paradoxalmente da Nouvelle Vague, e do novo academicismo que ela gerou: um realismo psicológico ou sociológico sem surpresas, coberto de um vago verniz de modernidade. Tolera-se, nesses limites, o que é amavelmente deslocado. Na condição de não ir além do deslocamento autorizado.




Se meu filme deixou desconfortáveis tantos curadores, foi primeiro, me parece, por causa de um arcaísmo formal assumido. Um lado fantástico, excessivo, expressionista que não está mais nem um pouco no ar do tempo. É sem duvida também porque Eis o homem não entra em nenhuma caixa comunitária e, particularmente, na do reinante culto à juventude. Se ele fosse realizado ou interpretado por Louis Garrel, todo mundo gritaria: “Que subversivo! Que radicalidade!”. Se se trata, pelo contrário, de um honorável acadêmico? Só se escutam os risos constrangidos, como se só tivesse ali uma trip de pervertido... Mas é, sobretudo e simplesmente, porque as pessoas (ao menos aquelas que decidem no seu lugar) não querem que lhes falem sobre o desejo de travestismo, nem das relações de força e de dominação que estão no cerne do erotismo. Na grande noite moralizante em que estamos afundando, não é mais uma questão ver “isso”. “Isso”, porém, é o homem.

Minha consolação, se eu ouso dizer, é que Eis o homem foi proibido aos menores de dezesseis anos, em razão do parecer da comissão de censura que merece passar para a posteridade: esse filme doentio, ela escreveu, dedicado às humilhações a que um grupo de indivíduos submete um travesti. Não saberíamos resumir melhor o grande medo dos bem-pensantes.

Autocrítica

É preciso enfim que eu esboce minha autocrítica. Eu acredito que o que impede certas pessoas de “encontrar o seu lugar” em Eis o homem é a falta de uma mediação: não se sabe quem deseja essa história, não se sabe de onde ela vem. Além disso, eu quis que subsistisse esse ponto cego: meu personagem é um masoquista, e é próprio do masoquismo delegar a crueldade ao outro lhe dizendo: “Destrua-me.” Mas, sobretudo, era preciso que essa crueldade não parecesse emanar do seu desejo, em direção a ele (foi por isso que eu evitei a facilidade que teria consistido em identificar a narrativa como um sonho do personagem em questão). Gilles Deleuze fala bastante dessa equação sem solução que é o masoquismo – porque na realidade não existe ali o sádico nem, em todo caso, correlação entre masoquismo e sadismo. Nenhum parceiro possível.

O filme conta tudo isso, inclusive às suas próprias custas. A ausência de um “verdadeiro” vilão, que nem o meu duplo, nem eu mesmo encontramos. Não mais do que o espectador sonhado – que poderia ser um espectador voyeur e assumindo seu gozo, ao menos enquanto espectador de cinema. Ou ainda um espectador que se identificasse com a vítima, o que é muito complicado porque ignora-se o que a vítima verdadeiramente deseja... No novo roteiro que eu escrevo com David H. Pickering (Minha Torre de Nesle, a partir de uma peça de Alexandre Dumas), nós fizemos entrar em cena uma criança, que vem encarnar mais claramente o desejo de se aniquilar na ficção.

Eu paro aqui as tentativas de explicação e as tentações do arrependimento. Nas páginas de diário que se seguirão, eu quis que os arquivos de Eis o homem (de sua escritura, de sua rodagem, de sua distribuição suspensa) contassem sozinhos uma história que dispensa comentários. Se os comentários existem, é para dizer os sentimentos que me inspiraram – e que ainda me inspiram – esse filme mal amado.

Avant-propos foi extraído do livro C’est l’homme : Journal d’un film interdit. Lormont, Editions Le bord de l’eau, 2013. Tradução : Miguel Haoni.

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