Por Noël Burch
Showgirls está certamente entre os três filmes dirigidos na América por Paul Verhoeven que mais merecem respeito. O Vingador do Futuro e Instinto Selvagem também foram – juntamente com Showgirls – escritos por Joe Eszterhas, o que provavelmente não é uma coincidência. Showgirls é notável, sobretudo, pela maneira como associa questões de gênero e sexuais com as contradições de classe, tão frequentemente encobertas nos filmes hollywoodianos. Esse é, de fato, um autêntico “filme sobre a ruína de uma mulher” (fallen woman film) na grande tradição hollywoodiana: o passado pecaminoso de uma mulher trabalhadora a alcança justamente quando ela acede ao mundo da riqueza. Esses melodramas dos anos 1930 eram intrigas de prazeres proibidos e injustiça social; eles tratavam da condição das mulheres que, sob o patriarcado, sempre pagam o preço.
Verhoeven e Eszterhas planejaram celebrar as atrações perfeitamente genuínas (não apenas para olhares masculinos, eu sugeriria) das apresentações sensuais de Las Vegas – e de cerimônias mais íntimas, como as danças eróticas – somente para minar gradualmente essas representações com a exposição da exploração feroz sobre a qual elas são fundadas. Alguns críticos que eu li invariavelmente enfatizam a “vulgaridade” do filme, percebida como consubstancial ao mundo que ele retrata. Ainda assim, a história de Nomi Malone, uma dançarina de talento inegável (cujo destino prenuncia estranhamente aquele da extraordinária Elizabeth Berkley, cuja carreira fora cortada por uma reação crítica suspeitamente violenta), é para mim a de uma mulher trabalhadora, que ascende da sarjeta à glória e que finalmente se reencontra com sua classe, quando uma sucessão de episódios torpes culmina no estupro de sua melhor amiga por uma estrela do pop.
É a própria Nomi que demonstra o princípio do “cada um por si”, que preside este mundo e a sociedade americana como um todo, quando ela empurra a atual estrela do show escada abaixo para que assim ela possa ocupar o seu lugar. Ela é aclamada pela audiência abastada de uma boate noturna elegante, mas esse sucesso é então duplamente ironizado pela gratidão inesperada da estrela – essa última pode finalmente sair da corrida dos ratos, diz ela a Nomi, deitada na sua cama de hospital – e pelo desprezo de seu chefe quando esse desenterra o passado sombrio de Nomi. Sua nova estrela cospe no seu rosto, finge ceder ao desejo do estuprador unicamente para puni-lo com chutes de karatê (em uma cena perversamente erótica, sugestiva de um filme de rape-revenge) e volta para a estrada, com o canivete em riste. Uma espécie de final feliz: a vida na sarjeta é uma corrida de ratos também, mas de alguma forma mais limpa... Vale também notar que a única solidariedade possível para Nomi, neste mundo do show biz, vem de membros de sua própria classe: dois afro-americanos, e também, em uma cena inesperadamente comovente, do gerente da boate barata de strip-tease onde ela começa sua carreira em Las Vegas que, ainda que ela lhe abandone brutalmente, vem prestar tributo ao seu talento e parabenizá-la por seu sucesso.
O filme foi destruído pelos críticos dos dois lados do Atlântico, nos Estados Unidos por razões que foram claramente identificadas por um internauta no IMDb: “Como todos os filmes americanos de Paul Verhoeven, Showgirls é uma visão exagerada da cultura e dos valores americanos. O coro ruidoso de respostas negativas à estreia do filme demonstra o quão defensivos os americanos podem ser. Todos os críticos de cinema do pedaço pareciam desenvolver de repente uma postura de ‘Se-você-não-gosta-daqui-então-vá-viver-na-Rússia’, atitude típica dos membros da NRA.” Ele acrescenta também que Verhoeven se baseou, frequentemente, em “qualidades melodramáticas, ‘novelescas’ a fim de compor um estilo e um método satírico”.
Essa condenação universal da crítica geralmente usa como pretexto a vulgaridade da cultura de massa, que Showgirls emprega abundantemente e com a qual foi preguiçosamente identificado, tanto na forma quanto no conteúdo – mesmo que, para o espectador consciente a quem os autores estão se dirigindo, o filme esteja criticando a “economia sexual” daquela mesma cultura de massa. Nenhuma feminista ou simpatizante masculino do feminismo, a quem eu mostrei o filme, falhou em observar que Verhoeven não está jogando o jogo ambíguo entre o desprezo sarcástico da cultura de massa e a exploração complacente de seus códigos, que caracteriza ambos os filmes escritos por Edward Neumeier: Robocop: o policial do futuro e o revoltante Tropas Estrelares. Na França, ao menos, a celebração desses últimos filmes como os melhores de Verhoeven, está intimamente ligada à maneira como eles continuamente cutucam os espectadores adultos de classe média sobre as cabeças, por assim dizer, do público-alvo juvenil. Showgirls, pelo contrário, leva a cultura de massa a sério, como um local ao mesmo tempo de fascínio e de luta. E leva a sério também o desprezado melodrama, como de fato um excelente veículo para a crítica social.
A resposta francesa a esse filme tem sido bem significativa de uma certa estratégia de reação, como neste comentário do Télécâble Satellite Hebdo (22-28 de dezembro, 2001): “Verhoeven se delicia neste mergulho no mau gosto... Seu talento [como diretor] redime o estúpido roteiro assinado por Joe Eszterhas, que se especializou em assuntos heréticos e falsamente provocativos”. Um filme sobre a exploração de corpos femininos e proletários é colocado no mesmo saco da abjeção que ele denuncia, justamente para que os críticos não tenham que se bater com esse tipo de exploração. Tipicamente o suficiente para a França: embora essa revista seja direcionada a uma audiência de massa, os valores da cinefilia prevalecem, com o tributo à maestria autoral de Verhoeven compensando a categoria de valor inferior, esta que foi atribuída ao filme pelos peritos (apenas uma estrela).
Claro, a consciência de gênero não é uma qualidade amplamente compartilhada entre os críticos da França, homens ou mulheres. Mas também não é tão universal quanto poderíamos acreditar em países em que o feminismo teve mais sucesso. Na Sight and Sound, uma crítica britânica (Linda S. Williams) culpou o filme por não ter sido sexy o suficiente! O que serve para ilustrar a verdade mais ampla: a natureza polissêmica do discurso fílmico hollywoodiano, de D.W. Griffith até os dias de hoje.
Embarrassing Showgirls foi publicado originalmente na revista Film Quarterly, n° 56, na primavera de 2003. Tradução: Yasmin Rahmeier.
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