O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

A cidade dos fingimentos (Chinatown)



Por Pascal Kané

Duas maneiras principais de abordar, hoje, os gêneros antigos do cinema clássico: reproduzi-los e prolongá-los de forma incrementada para mascarar, no excesso de sexo ou de violência, a figura do mesmo; ou então “desviá-los”, “pervertê-los”: pequenas mais-valias de código, minitransgressões ao abrigo da lei. Nos dois casos, recusa da História; utilização do gênero como espaço fechado a-histórico, recalque da historicidade própria do gênero em questão. Seja como for, trata-se sempre de saber ou do gozo de dados a mais, garantia de novidade.

Mas em Chinatown, ao contrário, é a repetição que desempenha esse papel; é o mesmo que é valorizado.

Em primeiro lugar, são pelas determinações históricas próprias ao gênero thriller que o roteiro marca um certo interesse. A saber, trata-se, de partida, de um gênero social, conduzido por escritores geralmente progressistas (Hammett, Chandler), e empoleirando-se diretamente no só-depois [1] da grande crise de 1929. Desta, ele refletiu sintomaticamente o efeito de mal-estar em torno das classes médias, reproduziu o clima moral da época em sua violência, seu cinismo, seu pessimismo, e tentou aferir algumas lições (perversão do mundo do dinheiro e da grande burguesia em Chandler e Hammett).

Essas características próprias, reproduzidas minuciosamente em Chinatown, desenham um quadro em que hoje conseguimos reconhecer, sem dificuldades, ressonâncias estranhamente familiares. Para isso, não há necessidade de caricaturas. Basta a apresentação de situações ameaçadoras e de personagens perdidos e infelizes em busca de uma verdade que lhes é ocultada sem cessar. Nenhum anacronismo nessa reprodução (anacronismo que tanto assusta os autores de filmes fantásticos ou de vampiros atuais). E ainda, a contrario dos “policiais incrementados”, acentuação da própria ideia de errância, de opacidade do mundo, de perturbação das condutas: artimanhas complicadas (os dois relógios sob a roda do carro), atos chamativos e ruidosos inúteis (a página arrancada com a régua), deduções ruins, gafes (Evelyn Mulwray que Gittes não vê em seu escritório) etc. Inverso exato (mas não paródico) da imagem do “durão”, do gestual da “potência e da desenvoltura" para o qual o thriller pendeu um pouco mais tarde. A verdade lamentável do mito: impotência e medo.

Além disso, essa relação com a origem é reproduzida en abyme como tema: aquele da inocência perdida, do mesmo que retorna com todo conhecimento de causa. Esse tema é Chinatown.

Gittes, o detetive, alude a uma história antiga na qual uma mulher que ele amava havia encontrado a morte. Isso se passava em Chinatown, distrito onde trabalhava como investigador para a polícia. Esse caso o perturbou e ele havia fugido definitivamente do lugar maldito. Ora, pouco a pouco, o mundo de Chinatown faz seu retorno na vida de Gittes (as domésticas chinesas de Mulwray, o tenente Escobar, o encontro final). Assim, o pesadelo de Chinatown vai se reproduzir em termos quase idênticos: a mulher amada será destruída por seu pai incestuoso – Noah Cross, o chefe da cidade – diante de um Gittes impotente, que não soube prevenir ou evitar nada.



Chinatown é esse passado traumático, esse destino do qual não se escapa, o retorno inelutável do mesmo, da lei abominável e não natural. E também, por que não?, da grande crise vivida como momento traumático, violência, castração da mãe, monstruosa cena primitiva do capitalismo. Daí o personagem de Noah Cross, imagem do superpoder ilegítimo de um capitalismo devastador, estéril (a seca do campo e o descarte de água doce, símbolo da fertilidade, provocado por ele; sua ausência de descendente “viável”...).

Por trás de tudo isso, melhor seria não procurar muitas intenções “críticas”. Pois essa representação da América (angústia e miséria moral) voltada ao passado é acompanhada de uma recusa absoluta e perfeitamente conciliada de olhar além: aversão, talvez, mas certamente também fascinação por Chinatown, pelo cenário falso, pela violência primitiva, pela morte. Chinatown é também Hollywood, uma Hollywood crepuscular de luzes quase apagadas, mas da qual não se pode decidir sair. E Gittes, o duplo do espectador, voyeur impotente contando os pontos de uma partida que acontece sem ele (porque ele também não tem para onde olhar).

Quadro lúgubre, à base de desencanto, regressão, pulsão de morte. Mas ele não é, no fundo, adequado a satisfazer todo o mundo hoje? Ele não remete também à inutilidade do saber (o dele, por exemplo), ao niilismo cômodo, ao catastrofismo estereotipado, ao fim derrisório das ideologias e dos profetas? Por trás disso está a ideia de que o capitalismo coloca a si mesmo em perigo, que ele não precisa de ninguém para acabar com ele. Polanski, enquanto isso, prefere usufruir o cadáver requintado, mesmo que ele cheire um pouco à carniça.

[1] “Après-coup”: Kané faz referência ao termo que Lacan utiliza em sua tradução do conceito freudiano de Nachträglichkeit [N.d.T].

La ville des feintes (Chinatown) foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, n° 256, fevereiro/março de 1975. Tradução: Luiz Fernando Coutinho.

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