O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Notas sobre o cinema de Brian de Palma





Por Pascal Kané

A primeira incursão de Pascal Kané na revista Cahiers du Cinéma data de fevereiro de 1967, quando o autor tinha apenas 21 anos. Sob as asas de Jean-Louis Comolli, Kané dedica seu primeiro texto ao filme Cul-de-sac. Em ocasiões posteriores, Polanski voltará a ser objeto de suas críticas: em dezembro de 1968, ele escreve sobre O Bebê de Rosemary e, em fevereiro de 1975, sobre Chinatown. Autores contemporâneos a Kané (Claude Chabrol, Med Hondo, John Schlesinger, Gian Vittorio Baldi ou os irmãos Taviani) interessam-lhe tanto quanto os antigos mestres que, em alguns casos, continuam produzindo (Alfred Hitchcock, George Cukor, Fritz Lang, Luís Buñuel, Billy Wilder, etc).

Leitor da psicanálise e do estruturalismo (em 1976, é ele quem leva a cabo uma entrevista com Michel Foucault), Kané desempenha um papel fundamental na revista durante o período de sua colaboração, que se estende até 1984. Quando ele começa a trabalhar como crítico, o cinema hollywoodiano, outrora celebrado, está em baixa na redação da Cahiers du Cinéma. Segundo Antoine de Baecque, quando Hollywood ressurge na revista (em textos sobre o Tubarão ou sobre o King Kong de 1976, por exemplo), é apenas como objeto de análises psicanalíticas ou sociológicas, preocupadas em restituir aos filmes sua qualidade sintomática: “o filme não é criticado em si, mas se torna objeto (poderíamos dizer pretexto?) de uma análise que o ultrapassa”. Lembremos que 1957 viu o nascimento de Mitologias, de Barthes.

Ora, Pascal Kané não passa ileso a essa metodologia, pelo contrário: em 1974, ele escreve um texto sobre O Exorcista onde pode-se ler, logo na primeira frase, que o sucesso desse “produto medíocre” lhe confere “valor de sintoma privilegiado”. O cinema de gênero, no entanto, nunca deixou de interessar o crítico: Martin Scorsese, Walerian Borowczyk, Terence Fisher, Ken Russell, Don Siegel, entre outros, são alguns dos cineastas cujos filmes inspiraram textos seus. Em março de 1978, curiosamente, ele escreve uma crítica elogiosa à continuação de O Exorcista dirigida por John Boorman.

Nos anos 1970, a Cahiers du Cinéma vê nascer um movimento – disperso, não sistematizado, fulgurante – que se dirige lentamente a um aprendizado do olhar: é preciso saber ver os monstros do cinema hollywoodiano, ou antes perceber o caráter monstruoso desse cinema. Para De Baecque, Pascal Kané é “o primeiro a lançar esse movimento”, sendo depois acompanhado pelo correspondente Bill Krohn. Para esse mini-especial dedicado a Kané, escolhemos dois textos que se integram a essa disposição maior de retorno ao filme de gênero hollywoodiano: o primeiro sobre o cinema de Brian de Palma, escrito em 1977 (o primeiro texto sobre o cineasta na revista), e o segundo, já citado, sobre Chinatown, escrito em 1975.

O terceiro e último texto, que não se liga especialmente aos outros, é uma resposta que o autor escreve ao famoso “Contra a nova cinefilia”, de Louis Skorecki, publicado em outubro de 1978. Nele, Kané critica certos pressupostos do mac-mahonismo e adere a uma visão menos obscura ou intransigente. A tradução dessa resposta torna-se uma forma não somente de apresentar alguns pontos de vista de Kané sobre a crítica e o cinema, mas contribuir ao panorama de desentendimentos históricos acerca da crítica mac-mahoniana cujos ecos reverberam até hoje. Boa leitura.

Luiz Fernando Coutinho

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Entre o fantasma indesejado de Fantasma do Paraíso, as gêmeas secretas de Irmãs Diabólicas e a jovem feiticeira de Carrie, A Estranha, há um evidente ponto em comum. Quer eles devam sua diferença a um acidente, a uma má-formação ou a uma educação particular, os heróis de De Palma são excluídos, isolados pela repulsão que cedo ou tarde eles suscitam em torno deles, e que decorre de uma espécie de horror físico, de nojo definitivo e incontrolável. Enfim: para aqueles ao seu redor, eles são monstros.

Claro, isso não é novo na história antiga ou recente de Hollywood: estamos mesmo presenciando, como sabemos, um retorno substancial da teratologia e do demoníaco; monstros metafóricos, prenúncios de desgraças futuras, preço a pagar para se redimir (é na redenção que se vê que houve culpa). Monstros por queimar, destruir, exorcizar, sempre um Outro sobre o qual nada queremos saber, exceto que ele é quem compromete a identidade plena do grupo. Esses monstros são sintomas, portanto, e sua figurabilidade encontra seus recursos na única dimensão do Imaginário.

Ora, a questão aqui é totalmente outra. Os monstros de De Palma não são metafóricos, eles não remetem a nenhuma ameaça, a nenhum Destino, senão a uma fatalidade puramente individual. Personagens explicáveis, divididos, sua monstruosidade se deve, em geral, somente ao acaso. Monstruosidade arbitrária, não sintomática e, portanto, não demonstrativa, que não exibe nenhuma deformidade aparente (o fantasma está mascarado, as siamesas “incógnitas”, etc). Essa monstruosidade não se desdobra na dimensão do Imaginário (que é sempre a dimensão da segregação e da exclusão), mesmo que esses sejam precisamente os temas que o cinema de De Palma, no que ele tem de mais interessante, se propõe a abordar.

É obviamente em Browning que pensamos, com quem De Palma certamente mantém mais relações (enquanto a referência a Hitchcock é mais superficial), já que em ambos a representação da monstruosidade frustra o reflexo humanista “eles são homens, no final das contas”, com o que ele implica de aparente uniformização. Em primeiro lugar, não se trata de uma infra-humanidade, mas de indivíduos, ao contrário, superiores (compositor super-dotado, super poder de Carrie...), de sentimentos extremamente profundos, que se recusam a admitir a semi-inclusão piedosa de que são o objeto. E é justamente no momento em que poderíamos reconhecer sem muita indelicadeza as suas falhas, já que se reconhece nos filmes certos personagens que buscam perdoá-los (professora de ginástica trazendo à tona a loucura mística da mãe de Carrie, jornalista de esquerda com boas intenções, ambiente compadecido do viúvo de Trágica Obsessão...) que eles demonstram, de uma só vez, sua recusa e sua alteridade.

No momento, então, em que eles pareciam assimiláveis, eles escapam duplamente: recusa em serem confundidos com os americanos médios, reduzidos à norma, e recusa em serem recuperados pelo grupo do qual eles vão se separar radicalmente por um ato cuja violência ou anti-sociabilidade deixará atônitas as boas intenções humanizantes. Assim, a afirmação da monstruosidade em De Palma aparece como um desejo de escapar da norma que, subterraneamente, produz essa monstruosidade (é a família que é monstruosa em Trágica Obsessão, o ambiente universitário em Carrie...).


Em todos os filmes, essa abjeção da norma assume o mesmo aspecto, aquele da segregação sexual imposta aos personagens. O sexo, instância suprema da normalização, é o que decide sobre a inclusão ou a exclusão no grupo. E é o posicionamento fora-do-sexo dos monstros que vai desencadear o drama: o que se produz de acordo com um duplo movimento muito sistemático: 1) desejo pela norma nos monstros, que é sempre o de ser reconhecido sexualmente por um parceiro normal, 2) impossibilidade de alcançar esse reconhecimento, seja porque o parceiro se afasta (Fantasma) ou desaparece (Obsessão), seja porque o meio resiste a isso (Carrie), seja porque, mais profundamente, uma parte de si mesmo recusa a fazê-lo (Irmãs Diabólicas).O que está em jogo nessa interrogação acerca do que sustenta a própria ideia de norma é o papel desempenhado pela função imaginária: o reconhecimento do corpo do outro em sua fundamental identidade própria. É a partir dessa identidade que se constrói o desejo normalizado, recalcando assim a realidade biológica do corpo do outro. E é essa presença do corpo biológico (a menstruação de Carrie, a má formação da gêmea, a queimadura do fantasma) que se torna tão insuportável nesses filmes: corpos inevitáveis e ainda mais inquietantes quando sua estranheza não é visível. Há em De Palma uma fascinação do corpo, do corpo fisiológico no qual ele quer descobrir, muito além da nudez, todos os segredos (em oposição, portanto, à abordagem hitchcockiana do recobrimento ou da substituição fetichista do corpo feminino pelo horror da descoberta da castração materna). É o interior mesmo do corpo, o que há sob a pele, que o cinema de De Palma gostaria de descobrir. Daí essa onipresença do sangue em seus filmes (o sangue que recobre o corpo de Carrie, criando a ilusão de uma carne viva, tal como a carne viva do fantasma queimado), o sangue menstrual – banido do cinema – sendo certamente a forma mais intrigante.

A monstruosidade é um caso particular no cinema de De Palma apenas na medida em que todo corpo lhe parece um caso particular, onde seu interesse não se direciona para o que é comum, mas para o que difere de um corpo a outro. Além disso, é característico que uma sociedade como a americana – que não cessa de se referir ao indivíduo como pedra de toque de todo seu sistema de valores – só apoie o sujeito que é intercambiável e que é tomado por um verdadeiro movimento de horror diante de tudo que lhe aparece em não-conformidade com seu modelo. O sujeito só pode ser um representante abstrato de uma maioria (é o sujeito da estatística).

Há no cinema de De Palma uma análise do inevitável racismo secreto de toda sociedade que funciona de acordo com a norma. Mas há também uma crítica do antirracismo humanista, aquele que recalca a ideia de diferença. Pois o que move De Palma a ir mais longe é justamente uma paixão pela diferença: é aí que ele se distancia da jornalista de esquerda de Irmãs (uma das personagens mais dissecadas de seu cinema), que pára ali, na denúncia do racismo pela polícia, e não quer avançar mais nesse caminho de uma diferença pela qual o discurso, a doxa (exemplo: “o direito à diferença”), não se responsabiliza mais.

É por isso que os filmes de De Palma mostram sempre dois tipos de amor pelos monstros: para além de uma solicitude humanista, bem-intencionada, a da professora de Carrie, da jornalista de esquerda, etc, que visa sempre restringir o indivíduo à norma, existem as paixões violentas, impossíveis, mortais (a mãe de Carrie, o cirurgião de Irmãs Diabólicas). Amores verdadeiros e loucos, destinados ao fracasso em sua única missão de preservar seu objeto do pior: o retorno à norma, ao reconhecimento, à indiferença.

Notes sur le cinéma de Brian de Palma foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinema nº 277, junho de 1977. Tradução: Luiz Fernando Coutinho.

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