O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Esses castelos de acaso



Por Jean-Charles Fitoussi

O acaso dá os pensamentos, e o acaso os tira.” Pascal, Pensamentos.


É um costume na França que um realizador deva “acompanhar” seu filme em sua estréia nas salas. E constatamos que esta “presença do realizador” tem como efeito trazer espectadores que, sem isso, não iriam: ninguém quer saber, às vezes, dos dias em que o realizador existe e, esperamos, muitas vezes, pelos dias em que ele não existe. Existia a magia do cinema, existe a magia do cineasta. Chego a me perguntar o que motiva tais espectadores, e a ter, na ocasião, não a impressão de acompanhar um filme, mas de ser acompanhado por ele. Como se, depois de tudo, pouco importasse o filme, pouco importasse mesmo que houvesse um filme - desde que haja um realizador. A tal ponto que o exibidor possa pensar em desprogramar o filme se o realizador não for: “eu não terei ninguém se ele não vier”, desculpa-se então, gentilmente. Com certeza é muito agradável, e necessário, quando acabamos um filme, encontrar seu público, segundo a expressão usual. Ver e escutar como uma sala reage (ou não reage, ou não reage sempre) àquilo que produzimos para a sua atenção. Ver e escutar, precisamente, a variedade das reações, de uma sala a outra, de um público a outro, segundo o tempo e o lugar, os humores e os rumores. Está aqui uma boa maneira para o autor de livrar-se definitivamente de tudo que, agora, não tem mais nada a ver com ele, como a árvore que deixa cair seus frutos maduros. Mas do ponto de vista do espectador, eu devo confessar permanecer um pouco cético quanto ao interesse de um tal “encontro”. Se existe encontro, é, e deve ser, com um filme. O filme é tudo, seu autor nada: tal é meu credo. O autor é ainda menos que nada, por ser provavelmente o menos apto a formular qualquer julgamento pertinente sobre seu filme. Mesmo se Fritz Lang voltasse para nos apresentar, digamos, You only live once, não tenho certeza se minha curiosidade de ver o mestre não desapareceria diante do prazer em rever pela enésima vez sua obra. Digamos que neste caso preciso, essa presença do realizador pesaria um pouco na balança: ainda seria Fritz Lang, além disso, ressuscitado. Mas e quando não somos nem Fritz Lang, nem estamos mortos?

Ao escutar, às vezes, o belo silêncio que ninguém ousa romper indo ao encontro de sua questão, nós dizemos, porém, que o público tem de novo razão em pedir a presença do autor por esta ausência de questão. Porque, no fundo, não existe nada a pedir a um autor que, nesta posição, não tem nada a dizer - porque ele fez o que devia fazer, um filme. A um critico, quer dizer (deveria ser) alguém que discerne na obra, mais e melhor que os outros, sim; a um autor, não: é preciso perdoá-lo, pois ele não sabe o que faz. Não deveríamos fazer nada mais que permanecer um momento juntos contemplando a presença do realizador e a dos espectadores.

Este belo silêncio no qual poderíamos nos eternizar um pouco, talvez apagando as luzes, depois saindo da sala para encontrar os barulhos da cidade, este belo silêncio é, infelizmente, encurtado por duas questões fatídicas. Se o público não ousa perguntá-las, o animador, que, como a natureza o fez, tem horror do vazio (e esqueceu que nem o vazio, nem a natureza existem), se apressa imediamente em formulá-las e se pendura nelas como um náufrago à sua tábua de salvação. É preciso lembrá-las? Eu não resisto. Está aqui a primeira: “Como nasceu a ideia do filme?” e a segunda, que corre atrás: “Como você escolheu os atores?”. É para evitar então que esse silêncio, ponto alto do filme, não seja quebrado deste modo, que eu decidi pôr no papel as palavras que seguirão. Será suficiente, então, para poder continuar à contemplarem-se uns aos outros como puras presenças mudas, relembrar aos espectadores que essas questões dão vontade de subscrever os boletins de assinatura da Lettre du Cinéma que deverão ter sido distribuídos na entrada.

Sejamos francos: eu tenho impressão, uma vez que o filme está feito, que ele se fez mais do que eu o fiz. É um dos numerosos casos de ilusão retrospectiva que Bergson se deleitava em desmascarar? Acredito que não. É evidente que um filme não se faz sozinho – longe disso! –, e que ele não seria, sem a vontade feroz da equipe que se esqueçe dele. Mas que o filme ou é uma coisa, ou o que ele é, é outra. Antes que ele seja feito, eu não sei o que ele será. Depois que ele é feito, eu já não sei mais. O paradoxo é que ao longo de sua fabricação, escrita, filmagem, montagem, nós possamos sentir precisamente o que se deve fazer, sem jamais saber ao certo o que fazemos. Nos encontramos então em uma situação próxima daquela dos personagens de Buster Keaton e de Jacques Tati, quando eles se voltam repentinamente às consequências gerais (impensáveis) de uma série de açoes particulares (bem pensadas): assim, entre cem outras, o espetacular desmoronamento da ponte em A General (e a sublime batalha que se segue, feita de fumaça, que não deixa de lembrar os fogos de artificio de As férias do Sr. Hulot – última consequência para Hulot de suas tentativas em escapar da obstinação de um cachorro). Hulot é então ao mesmo tempo surpreso e ignorante: surpreso pelos fogos de artifício que ele desencadeia, ignorante do efeito produzido pela sua catástrofe – o maravilhamento dos turistas. Me parece que o mais experiente dos cineastas deve se encontrar frente à frente com o seu filme na mesma situação, de surpresa e ignorância. Surpreso que ele tenha esse filme, ignorante do que ele provocará à distância. Sorte se ele encanta.



Eu tenho uma tal consciência do acaso que preside a fabricação do filme, como de toda obra, como de toda coisa no mundo – e por acaso, eu entendo ausência de qualquer principio ou, o que é o mesmo, ausência de qualquer principio reconhecível (daí ao mesmo tempo ignorância e surpresa permantes face ao que acontece) – que eu decidi, após ter agradecido nos créditos dos meus dois primeiros filmes, de reconhecer, a esse acaso (“esse querido acaso”, como dizia Nietzsche), a paternidade de todos os meus filmes agora reunidos com o título genérico: O castelo de acaso. Cada um de meus filmes é, agora, uma parte, ou melhor, uma peça, deste castelo construido por “acaso”
[1]. Sabemos que, como as batalhas, os filmes se preparam e custam caro. Tentamos, então, durante a preparação, não deixar nada ao acaso: é preciso controlar. Roteiro, casting (palavra horrível para uma coisa horrível), plano de trabalho, etc. Sem falar que os financiadores, produtores, assistentes de direção e diretores de produção, em sua grande maioria, não apreciam nada os riscos e os perigos. Mas é o que eu amo acima de tudo (não sem me tremer, às vezes), estes riscos e perigos, esta incerteza do que será o filme, se filme houver! Está aqui a incerteza mesma da vida – por que o filme deveria ser diferente, se ele pretende restituí-la? Está aqui o que obriga, ao menos no começo, um realizador sem roteiro a tornar-se seu próprio produtor; e a voltar a sê-lo de vez em quando, na medida da ausência de controle que ele deseja poder oferecer-se. Tal não foi, absolutamente, o caso da quinta peça do Castelo de acaso, O Deus Saturno, que se insere na coleçao de Portraits iniciada por Frank Beauvais para a Arte, conduzida por Michel Klein e Jérôme Lascher dos filmes Hatari. Tive de escrever um roteiro, e neste prazo muito curto imposto pela data de submissão da última comissão do Cosip, em agosto de 2003, sem a qual deveríamos renunciar a filmar com os últimos dias de sol do outono – o que para mim seria renunciar ao filme. O roteiro foi escrito muito rápido, escapando-se como algo que por muito tempo foi guardado dentro de si, nas gavetas secretas da imaginação. Eu poderia descrever os acasos que me deram o roteiro, mas aqui estão alguns finalmente e para ilustrar quais foram aqueles que presidiram a realização do filme. Um ano antes, eu havia encontrado Jean-Claude Passera, pai de um amigo de Charles Castella, a quem eu servia de tradutor e assistente em uma filmagem na Itália. Eu tive rapidamente vontade de filmá-lo, e de lhe criar um parentesco ficcional com Jean-Paul Bonnaire que eu havia encontrado graças à Antoine Chappey para Os dias em que não existo (eu lhe havia confiado o papel do patrão do bar, amante de corridas de cavalo). Sim, estes dois deveriam encontrar-se: era necessário inventar um filme para isto. Na maior parte do tempo, é do ator que eu parto para criar o personagem. A pessoa vem antes: eu escrevo para alguém, escutando sua voz, vendo seu rosto, seu jeito. Para Jean-Claude, eu adaptava Schopenhauer à língua falada, tentando ressaltar toda a potência cômica. Eis então Jean-Claude decidido a matar seus seis filhos, explicando a um deles as melhores razões do mundo para não vir ao mundo. Era preciso lhe encontrar um tal filho. Quando nós montávamos Os dias em que não existo, um jovem singular passava frequentemente para nos saudar antes de ir à sala de montagem vizinha onde operava um de seus amigos realizadores a quem ele prestava assistência, sem ousar colocar um pé na nossa: deferência tão bela quanto fora de moda, envelhecida, como o dizemos das melhores bebidas. Eu o revi na Cinemateca, depois fantasiado de doutor em Mods: o filho mais velho de Jean-Claude Passera não poderia ser ninguem mais que Laurent Talon. Nessa história, Bonnaire seria naturalmente irmão de Jean-Claude e tio de Laurent, que viria acolhê-lo no trem e lhe informaria do último capricho de seu pai. Somente o acaso quis que uma crise aguda da tireóide proíba Jean-Paul, cansado, de sair de sua casa. Nós estávamos a alguns dias da filmagem. Eu não imagivana confiar este papel do tio a um outro que não aquele para quem eu o havia concebido. Eu pensava nos atores que eu amava: por que Frederic Bonpart impunha-se imediatamente? Eu não me esqueci do seu pequeno papel no Van Gogh de Pialat. O acaso fez ainda com que ele fosse um amigo de Michel Klein. Nós o telefonamos na ante-véspera da filmagem, ele disse sim. Me restava repensar todo o roteiro: com trinta anos a menos que Bonnaire, ele não faria mais um tio, mas um irmão de Laurent. Eu reescrevi os dialogos, e me dei conta a que ponto todo o filme, sua dramaturgia, ganhava com essa mudança de tio para irmão. Eu jamais teria pensado nisso sem a deserção do pobre Jean-Paul, sem essa porcaria de glândula tireóide – que agora, espero, está mais tranquila. Eu (ainda) não tinha reunido esses dois, Jean-Paul e Jean-Claude, sendo então essa união imaginária que havia, em parte, me sugerido o filme. Eu poderia multiplicar os exemplos de acasos. Eu não resisto à vontade de evocar o que me fez a doação do primeiro plano do filme. Uma vez que a equipe voltou à Paris, eu permaneci na fazenda dos Caboche, e fiquei lá, na entrada, tal qual uma alma penada: seis dias de filmagem tão felizes e tão rápidos. Depois da plenitude, uma espéce de vazio. O trabalho acabado, quando amaríamos ainda continuar. Mas o vazio, decididamente, não existe. Eu fiquei na entrada. O cachorro e o lobo[2] de um dia de chuva azulava tudo. O que eu poderia fazer nesta entrada de fazenda, por onde, habitualmente, só passamos? Eu olhava. Havia, atrás de uma planta, uma tapeçaria. Eu a observava. Assim, sem razão alguma. Eu observava por observar, para fazer qualquer coisa com os meus olhos, qualquer coisa melhor do que nada. Eu acabei por descobrir um texto, escondido na penumbra. Escrito em francês antigo, eu o decriptava. E qual não foi a minha surpresa em ler, sobre essa tapeçaria nessa fazenda que havia suscitado e abrigado a filmagem, quatro versos evocando o tema principal do filme:

Você que olha essa caça,
Seu exemplo vos ensinará,
É certo, que a morte vos caça,
Mas ninguém sabe quando vos pegará.


Era, me disse Régine Caboche, dona da casa, seu presente de casamento. Não poderia ser melhor!

Ela me emprestou a tapeçaria. Nós a filmamos antes de devolver a câmera, ao ar livre, com uma ponta de película recuperada. Durante o plano, o vento levantou-se, fazendo cair algumas folhas, descobrindo o sol em dois curtos momentos. Como agradecer?

[1] Devo este título à um capitulo da Lógica do pior de Clément Rosset, no qual a origem do nome é lembrada: “Guillaume de Tyr, cronista das Cruzadas cuja Historia rerum im partibus transmarinis gestarum foi escrito na Síria no século XII, relata “que Rodoans, li sires de Halape, ot contenz et guerre a un suen baron qui estoit châtelains d’un chastel qui avoit nom Hasart”; e seu tradutor do século XII acrescenta: “et sachiez que là fu trouvez et de là vint li jeus des dez, qui einsint a nom”. Antes de designar um certo jogo de dados (uma outra etimologia contestada, queria fazer derivar o acaso [hasard] do arabe “al sar”, “o dado”), “acaso” designa então um castelo, depois o nome de um certo jogo de dados praticado primeiro neste castelo, mais tarde espalhado entre todos os Cruzados, enfim importado à Europa por seu intermédio, (…) Mais tarde, acaso designa, de maneira mais geral, a ideia de risco, de perigo, de situação fora de qualquer possibilidade de controle.

[2] NdT.: “Entre chien et loup” é uma expressão francesa que designa o período do fim da tarde, quando a claridade é tal que mal conseguimos distinguir um cão de um lobo.

Ces châteaux de hasard foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma. Tradução: André Schaefer.

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