O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

A céu aberto



Por Bernard Benoliel

Jean-Charles Fitoussi é um construtor. Com paciência — aprendida ou confirmada na proximidade a Straub-Huillet, dos quais foi um dos assistentes —, ele edifica uma obra ou uma série simultaneamente consciente de si mesma e incessantemente aberta às forças da fortuna. Antigo estudante de arquitetura, ele constrói um mundo cinematográfico batizado de “castelo de acaso”. Desse castelo, cada um dos filmes, terminado, recém-começado ou em construção, é um “peça”[1] ou uma “dependência”, peças numeradas com uma espécie de plano de conjunto que vem posteriormente, tal como, na abordagem de Fitoussi, uma vontade de filmar e mesmo uma filmagem precedem frequentemente o que comumente chamamos de roteiro. Peças destacadas de um grande corpo animado pela ideia e pelo acaso que presidiram seu nascimento. A obra é o resultado de uma experiência em curso.

No campo

Cada peça se elabora à imagem desse conjunto sem fim, igualmente aberta ao acidente, ao enxerto, à expansão, à retomada ou à interrupção, e agora, por esse único motivo, a criação proíbe-se todo recurso à produção habitual, ganhando, contudo, em liberdade, ou seja, em tempo redescoberto. É o tempo quem produz os filmes de Fitoussi. É assim com a ficção que o tornou conhecido, Os dias em que não existo (2001), filmada ao longo de diversos anos, iniciada por seu meio, avançando sem roteiro, interrompida diversas vezes e abandonada, deteriorada e comprometida, encontrando justamente por essa dificuldade o meio de continuar, de desenvolver-se em longa-metragem e aceder à plenitude de sua forma: a que concilia o drama fantástico de um homem ameaçado na continuidade de sua existência e um elogio à vida até em suas mais ínfimas manifestações, a que restitui a sensação de uma arte essencialmente inventada para eternizar todo ser de passagem. Dir-se-ia, distorcendo Jankélévitch, citado no filme: “aquele que foi (filmado) doravante não pode mais não ter sido”. Da mesma forma, Nocturnes pour le roi de Rome (2005), que não previu ser um filme, sendo uma reação do cineasta a uma situação que “demandava” ser registrada (ele grava com um celular o que se tornará um longa-metragem): um banquete no exterior, 200 convivas, o balé mecânico e improvisado dos garçons, os vestidos pretos e os casacos brancos, as manchas de cor do dia e na noite, a dança dos pixels de uma imagem pobre, comprimida, imprecisa — o oposto absoluto da acutância sensual de seus outros filmes. O resto de Nocturnes decorre disso: um mundo percebido como turvo por um velho compositor alemão no limiar de seu próprio perecimento, ele mesmo invisível, sua voz murmurada e sua entonação inesquecível, uma música clássica que dramatiza o teor de um plano e monta sequências inteiras, instantes de cinema que se inserem subitamente como um estilhaço no olho (Roma cidade aberta, Tempo de guerra) e trazem de volta a guerra, imagens de imóveis que desmoronam enquanto um filme se eleva, partindo do nada e feito com quase nada. Inacabado por essência, o castelo é visitado em partes ou inteiramente, no sentido que se quiser — e mesmo na ordem, “peças” enfileiradas. Peças existentes e peças por vir travam relações insuspeitas, por muito tempo desconhecidas pelo próprio cineasta, frequentemente reveladas progressivamente à medida que o projeto se precisa alargando-se. Os filmes atravessam uns aos outros: O Deus Saturno (2003) visita L’enclos du temps (2012), diversos personagens — sobretudo masculinos, os femininos, por enquanto, se revelam mais prisioneiros de seu lugar de aparição — reaparecem aqui e ali e, mais tarde, novamente em outro lugar. Assim, a série reserva surpresas, ela surpreende quem penetra em seu domínio. A obra de Fitoussi está relacionada simultaneamente ao mapa e ao território, nós nos localizamos nela: personagens e atores em movimento conduzindo consigo os fios de uma narrativa que se desloca, todas as línguas estrangeiras que se escuta em Je ne suis pas morte (2008) e que se compreendem entre si, diálogos ou monólogos que não são avaros em termos de explicação e de sentido, um quadro alinhado (lembrança dos Straub e de Ozu) e o tempo todo uma luz sublime que parece infalivelmente um revelador de beleza e a resolução de cada coisa. E, ao mesmo tempo, nós nos “perdemos” aí tal como o andarilho errante de Je ne suis pas morte, buscando seu caminho no interior da França com um mapa da Áustria na mão e figurando o espectador do filme, felizmente desconcertado, sem outro guia que sua memória e sua crença.

Por caminhos estranhos



Filme soma e filme mundo, filme de porvir e por vir, Je ne suis pas morte prolonga e incandesce uma maneira de fazer cinema ou de refazê-lo como no tempo do mudo em que Chaplin buscava e encontrava sua inspiração no palco: “E filmávamos, a cada dia, escrevendo primeiro os diálogos à noite, que ensaiávamos de manhã para filmar à tarde. Depois, à medida dos períodos de filmagem (foram sete), a confiança e o ofício aumentando, não havia mais nada a escrever”[2]. Ao mesmo tempo, Je ne suis pas morte manifesta essa faculdade de desorientar aquele que assiste, como se pode ver em sua terceira e última parte, intitulada “Por caminhos estranhos”, o encadeamento de sonhos realistas de diferentes personagens. Da mesma forma, a montagem, que ousa fazer surgir um plano heterogêneo no corpo de uma cena ou o raccord que Fitoussi realiza tão bem e de tantas maneiras que o reinventa, re-encanta seu uso: “o raccord é, para mim, um dos prazeres mais fortes, um gozo que somente o cinema pode trazer. (…) Esse prazer do raccord, que é um pouco como a passagem de uma nota a uma outra na música”. Como no documentário sobre os Straub (Sicilia! Si gira, 2001) que não se constrange em subverter a cronologia do trabalho, Je ne suis pas morte joga com suas intrigas, passa de ou liga uma à outra, faz com que elas bifurquem para reencontrar, mais tarde, a história “principal” e segui-la até reatar, no final, com o início em um último plano fixo: um rosto de luto, lentamente, desliza para a escuridão da noite à medida inversa de sua iluminação interior. A obra em curso luta contra a obra no escuro, Fitoussi não nega a parte obscura da existência humana, ele filma o funesto sem floreios e, para toda arma, acrescenta-lhe, em contrapartida, a magnificência do mundo de que seu cinema é um captador fascinante.

[1] NdT.:O termo pièce, em francês, pode significar tanto “peça, parte” quanto “cômodo, aposento”, ambiguidade utilizada pelo autor ao longo do texto e que não pode ser inteiramente vertida em português.

[2] “Como eu não escrevi alguns dos meus filmes”, por Jean-Charles Fitoussi: http://vestidosemcostura.blogspot.com/2020/05/como-eu-nao-escrevi-alguns-dos-meus.html

À ciel ouvert foi publicado no site da Cinemateca Francesa, como apresentação da retrospectiva dedicada à Jean-Charles Fitoussi, de 22 de janeiro a 2 de fevereiro de 2014 (https://www.cinematheque.fr/cycle/jean-charles-fitoussi-98.html). Tradução: Rafael Zambonelli.

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