Por Pierre Eugène
“Quando uma ideia exterior lhe atingir, por mais emergente que seja sua reputação, pergunte-se: qual é o corpo que está lá embaixo, que viveu lá embaixo?”
Henri Michaux
Dos cerca de vinte filmes realizados pela empresa de produção-distribuição-restaurante Diagonale, fundada em 1976 por Paul Vecchiali, Cécile Clairval e Pierre Bellot, encontram-se cinco longas-metragens que são os primeiros de seus autores: O Teatro das Matérias (1977), de Jean-Claude Biette, As Belas Maneiras (1978), de Jean-Claude Guiguet, Simone Barbès ou a Virtude (1980), de Marie-Claude Treilhou, Cauchemar (1980), de Noël Simsolo, e Beau temps mais orageux en fin de journée (1986), de Gérard Frot-Coutaz. Os três primeiros, que permanecem inesquecíveis para mim (o filme de Simsolo é esquecível, o de Frot-Coutaz é um pouco menos surpreendente), por fim se impuseram como um ponto de inflexão discreto, mas determinante, no campo de força da cinefilia, contradizendo a sua modéstia econômica de origem, o parco reconhecimento de seus contemporâneos e os eclipses de visibilidade mais ou menos longos impostos pelas leis do mercado [1]. Dizer que amo esse trio de filmes milagrosos revela imediatamente, creio eu, como se dá a minha relação com o cinema: não tanto pelas demonstrações de habilidade dos autores, sua correção moral e suas preocupações sociais; ainda menos pelo acabamento das obras, cuja arte sem falhas é animada pela vontade de finalizá-la, onde a compactação dos roteiros e a plenitude visual dissimulam o medo do que está faltando; de forma alguma, enfim, pelas tentativas de companheirismo dos filmes que me designam, me asseguram, me destinam à força de cotoveladas e direcionamentos para um lugar nítido em uma intriga à minha medida. Não admiramos esses filmes de Biette, Guiguet e Treilhou: nós os amamos. Não de uma só vez, frequentemente nem mesmo da primeira vez, mas através de um sentimento incômodo que se elabora com a duração, passando pelas zonas obscuras, pelos recantos escondidos e pelos buracos de ar desses filmes e que se dobra num átimo ao desejo de revê-los.
Retomando-os, revisitando periodicamente uma cena, um plano, um gesto, valendo-me de sua profundidade inesgotável de detalhes, eu acabei pouco a pouco por sentir o olhar que os conduz e por adivinhar a segurança incômoda e terna, ligeiramente ansiosa, daqueles que fazem sua estreia. Biette me toca quando, como que para exorcizar seu medo, ele começa seu filme com um final silencioso, mergulhado na noite artificial, interior, de seu Teatro das matérias. Seu filme se abre sobre uma dupla cartela langiana, de verdadeiros pedaços de papelão que anunciam que esta é a “Últimas” apresentação de Pelléas et Mélisande no Teatro das matérias, cartela essa que sinaliza, com suas informações a serem decifradas em cascata, a atenção e o humor que serão exigidos neste filme que se anuncia. A câmera passa então para a senhora no vestiário (Denise Farchy), que é forçada a se encolher para sair por baixo da prancha que bloqueia o balcão. Ela sai desajeitadamente atravessando um quadrado escuro sobre um fundo vermelho, como se estivesse passando por um buraco de rato. Chega Hermann (Howard Vernon), que desliga e guarda a irrisória pequena árvore luminosa colocada sobre o balcão, adicionando um pouco de tristeza à quietude do fechamento. Segundo plano: a câmera está à espreita na escuridão do teatro, esgueirando-se atrás de Hermann enquanto ele fecha duas portas, deixando tudo cada vez mais escuro, até ganhar velocidade e entrar na luz da terceira porta, ainda aberta, que revela uma mulher (adormecida, morta?), Dorothée (Sonia Saviange), deitada sobre um lance de escadas, como mais uma pista nesse rébus de estreia. Com esse plano, Biette transfere o medo do escuro dos seus primeiros passos para o espectador: eu avanço em sua ficção e me agarro cegamente num espaço ainda não delimitado, procurando identificar as questões do sentido. À semelhança do balcão bloqueado, esse filme labiríntico nunca cessa de me apresentar as luzes como pistas falsas, becos sem saída ou pontos cegos. Mesmo o fim é cerrado nesse filme que brinca com cores opacas: o início vermelho e preto torna-se a contraparte do branco terrível da derradeira imagem, quando a câmera abandona Dorothée, seus três amigos e seu lanche de crepes à leveza de uma flauta de L'Arlésienne, de Bizet, para voar em direção a uma janela aberta com vista para uma parede cega. A imagem se congela e os créditos verdes fluorescentes (bastante feios) deslizam rapidamente pelo branco cremoso da parede, um branco sem destino, um tipo de inverso do “branco das origens”, que aparenta obliterar o futuro imaginário dos personagens.
As fachadas de Biette por muito tempo me interrogaram (seu próximo filme se encerra com um belo afresco em trompe-l'oeil), até que eu compreendi sua função: tornar impossível de imaginar uma continuação, proteger os personagens. O Teatro das matérias é uma pirâmide fechada por dentro. Podemos muito bem mergulhar e voltar a mergulhar nela à vontade, mas não guardaremos a ilusão de que suas figuras continuarão a viver suas vidas imaginárias fora dos limites do filme, que poderemos levá-las conosco como mitemas, que o destino delas nos pertencerá. Os personagens de Biette pertencem apenas à sua ficção. No meio de inúmeros detalhes, objetos, senhas acumulados por esse filme em que tudo parece estar infinitamente ligado, os personagens me fazem pensar nas peças daquele jogo de xadrez bastante específico que Brecht apelou para que fosse: “um jogo em que as posições não são idênticas a elas mesmas; em que a função das peças se modifica quando elas ficam estacionadas por um tempo no mesmo lugar: elas se mostram mais eficazes ou mais fracas. Do jeito que está, ele não evolui; tudo permanece igual por muito tempo [2]”. Jamais se pode dizer que um desses personagens se mantém igual a si mesmo: preso em um novelo de relações, alterando a função de acordo com o lugar, sua valência só é válida em situação. Daí a distância particular entre esses personagens e o espectador, que impede a identificação ao mesmo tempo em que provê uma surpresa permanente em relação às suas capacidades.
Essa defesa altiva da autonomia dos personagens, atrelada às características morfológicas e vocais dos atores, persiste como a constante admirável dos filmes da Diagonale. Cada um deles me fez atravessar “a incrível variedade dos tipos humanos” (como Biette disse sobre A Última Gargalhada, de Murnau), convocando esses atores e atrizes únicos e loucamente banais, que percorrem uma gama de fisionomias e de idades, com os quais é certo que você cruzará de um filme para o outro. Muitas vezes discretos na imagem, esses atores têm sua própria voz inimitável. Como os de Duras, Straub, Guitry e Godard, esses filmes desenvolvem progressivamente uma sensibilidade particular aos timbres, aos silêncios e às variações de intensidade das vozes, aos ecos e às rimas, à entonação entrecortada, mordaz ou desajeitada dos sotaques (Howard Vernon em O Teatro), os gracejos (Ingrid Bourgoin em Simone Barbés) ou os pelos na língua (Emmanuel Lemoine em As Belas Maneiras), as dificuldades de dizer coisas ou de se fazer entender, os monólogos impenitentes e as canções que surgem sem aviso prévio, com a importância fundamental da música, sua capacidade de comover no palco, no toca-discos ou no rádio do carro.
O corpo a corpo da realidade
Os rapazes da Nouvelle Vague filmaram seus amigos e amigas na plena horizontalidade da idade, os cineastas pós-68 saíram em busca da desaparecida figura do proletário; mas para a Diagonale, que nos finalmentes desses seventies vivem o luto da grande noite das utopias sem classes, será esta parte desprezada da pequena burguesia, aquela que não tem nada de notável, a classe média pobre supostamente sem histórias, mal capturada na ficção e na vida real e mais “rebaixada” do que todas as outras, sem responsabilidade nem respeitabilidade próprias, sendo geralmente evocada e representada apenas em sua massa. O belo denominador comum das produções da Diagonale, na esteira de Vecchiali (que, por sua vez, conecta-se com o cinema francês dos anos 1930), é o amor, um por um, desses personagens “médios”, esquecidos pela ficção. Onde mais eu poderia ver, se não lá, Denise Farchy, pequena boa mulher, cuja voz trêmula, alta e articulada, me comove tanto como a senhora do vestiário em O Teatro, a pobre vendedora de jornais em As Belas Maneiras, ou a peregrina perdida em Lourdes, l'hiver de Treilhou? Não é uma questão de “representar” uma classe na tela para fins de decoro político, mas pura e simplesmente de mostrar pessoas que são amadas na vida e que como tais já são portadoras de ficção. “Antigamente, observa Guiguet, no cinema, os personagens secundários que encarnavam tão bem os pequenos ofícios, toda essa gente que compunha o fundo popular, estavam lá para insuflar vida ao romanesco; eles eram a garantia da realidade. Essa é uma realidade que está morta. Mas o que pode substituí-la? [3]”.
Em As Belas Maneiras, Guiguet tem sua resposta: Emmanuel Lemoine (Camille). O primeiro plano do filme “introduz” seu ator que faz sua estreia, expondo orgulhosamente seu rosto de frente. Ele planta seus olhos nos do espectador, depois vira a cabeça de perfil (para que se veja distintamente a cicatriz que lhe corta o rosto), avançando sozinho ao longo da plataforma da Gare de l'Est, de onde acaba de chegar, o passo sobrecarregado por uma pequena bolsa, como a Marnie de Hitchcock, último viajante a cruzar sem ver o balé laborioso de três faxineiros de trem. Emmanuel Lemoine, que dava seus primeiros passos em Paris, que estreava nesse filme e no cinema, nunca havia atuado antes. Seu papel estava previsto para uma jovem, mas Guiguet, por tê-lo encontrado, por tê-lo amado, transformou seu filme que, em suas palavras, tornou-se “uma imagem da burguesia confrontada pela face, pelo corpo, pela realidade de alguém que não pertence a este mundo”. Guiguet havia pensado originalmente em chamar seu filme de “Os trabalhos e os dias”. O corpo atarracado de Emmanuel Lemoine é pesado como a vida laboriosa, proletária, que o moldou e que só conheceremos por fragmentos, tal como a misteriosa cicatriz em seu rosto. Camille até oferece uma boa explicação (ele sofreu um acidente de carro embriagado e o cirurgião, insatisfeito por ter sido acordado à noite, costurou-o mal de propósito), mas ela continua banal, insuficiente. As marcas e a constituição de suas experiências passadas carregam de uma aura particular esse corpo, que é observado de canto de olho pelos outros personagens quando ele fica nu ou sai com roupas muito justas. Todos aqui têm sua cota de mistério, mas a de Camille é inexplicável, pois está nesse corpo que insiste em se destacar de todas as estruturas morfológicas de sua época, que fascina por sua “classe” paradoxal nesse ambiente burguês: “O corpo de Camille é real sem ser atual, sem estar na moda, é ideal sem ser abstrato. Sua aparição cria as vibrações necessárias para sobressaltar e despertar as estruturas romanescas da história. Ele é aquele que reanima e regenera". Como com Biette e Treilhou, mesmo que os filmes sejam escritos, compostos e dialogados previamente (Treilhou, que morreu de medo antes da filmagem, havia previsto sua decupagem plano a plano [4]), são os seres e as coisas amadas, depois extraídas da realidade que dão corpo ao filme: não a história, um “tema” ou uma ilusória narrativa de significação. “Eu não precisava de muita imaginação para levar a trama adiante, disse Guiguet, a realidade concreta conduziu por si mesma o curso das coisas”.
Mas não se trata apenas de Camille: As Belas Maneiras abre e fecha com dois rostos-telas, dois semelhantes avanços solitários. Ao final do filme, ao término da caminhada parisiense de Camille à qual ele nos atrelou, vemos a procissão de seu corpo suicida na prisão onde ele estava encarcerado, com o rosto velado de Hélène (Hélène Surgère), grande burguesa que o contratou como empregado doméstico, que jogou com a amizade dele sem jamais deixar seu habitus, que o vampirizou à sua maneira, sem realmente percebê-lo. Nas filmagens, recorda Guiguet, “às vezes, só por diversão, eu colocava lado a lado um retrato de Hélène e um retrato de Emmanuel, era incrível o que eles me contavam; eu sentia o quanto essas duas faces animadas, movidas por suas respectivas energias, iriam enriquecer a substância do filme ao lhe dar uma realidade nova, singular, absolutamente livre, irrefreável”. Se os filmes de Biette, Guiguet e Treilhou guardam para mim a força maravilhosa do imprevisto, é porque eles são o reflexo dos encontros de seus autores com esses seres retirados da realidade, que os filmes reencenam. Não se trata de improvisação, mas sim de capturar ou provocar uma energia primordial, aquela do deslocamento inevitável e imprevisto que decorre de todos os encontros. Ficção em termos de fricções individuais, O Teatro, Simone Barbès e As Belas Maneiras são construídos a partir de encontros sucessivos entre indivíduos singulares para os quais – assim como para mim, que os observo – é sempre a primeira vez. Estamos em um estado semelhante de expectativa redobrada, que é o de descobrir e ouvir o outro, com esses embaraços, esses silêncios e essas dissonâncias inerentes à indecidibilidade do encontro, tudo isso faz com que, quando estamos cara a cara com o outro, nunca saibamos realmente se estamos com ele. Se a própria natureza da posição espectatorial é deslocada, então esses personagens que estão sempre ao lado das coisas que observam também são espectadores.
Mulheres, Mulheres, um farol
O que eu sentia confusamente com esses filmes, até compreender melhor, foi que eles prolongaram, guiaram e ecoaram a energia de um encontro mais antigo, que ultrapassou a esfera privada dos cineastas para se tornar a força motriz de sua ficção: Guiguet com Emmanuel Lemoine e Hélène Surgère, Biette com Howard Vernon e Sonia Saviange, Treilhou com Ingrid Bourgoin, os três com Martine Simonet, Paulette Bouvet e tantos outros... É preciso evocar o encontro de Guiguet com Hélène Surgère, que aconteceu durante as filmagens de Mulheres, Mulheres (1974), de Vecchiali, do qual ele foi assistente. O filme foi produzido antes da Diagonale e foi aí que tudo começou. Mais tarde, Guiguet escreveu As Belas Maneiras para Surgère, enquanto Biette viu nele “a possibilidade de ir em direção a um cinema que integraria o prazer da representação, dimensão que faltava ao cinema que amávamos no início dos anos 1970. Essa dimensão existe no filme, através dos atores, que se tornam o conteúdo e as propostas expressivas e estilísticas do filme [5]”. Mulheres, Mulheres, filmado em quinze dias a partir de um roteiro co-escrito com Noël Simsolo é mais outra coisa que um filme de Vecchiali. Para mim, é um dos mais belos filmes do cinema, o exemplo mais profundo, o mais comovente e, ao mesmo tempo, o mais simples quanto à potência do cinema impuro. Sua beleza se vale da pobreza de seu preto e branco fervilhante e, portanto, exato, que reconcilia Lumière e Méliès, o cinema francês dos anos 1930 e a Nouvelle Vague, Corneille e os palhaços, Demy e Beckett. Uma ode às atrizes e à sua capacidade de envolver ficções em torno de si mesmas, Mulheres, Mulheres faz de Hélène Surgère e Sonia Saviange aquelas que representarão todas, as “duas faces [...] desse Janus mítico da comédia e da decadência [6]”. O filme retrata duas atrizes desempregadas que vivem juntas em um modesto apartamento repleto de fotos de velhas estrelas, com vista para o cemitério de Montparnasse. Duas perdedoras sublimes que se divertem mutuamente atuando como um truque para enganar a morte, bebem muito, sofrem com a falta de dinheiro e com uma melancolia insondável. Duas mulheres sozinhas e sem filhos, um casal ilegível (companheiras, irmãs, amantes, viva e fantasma?) cuja vida em dupla não cessa de mudar ao longo das cenas através de uma série em cascata de composições ternas e sádicas, de jogos de cena e dramas íntimos, de caretas ambíguas e fases de desespero, tudo animado por um motor trágico ao estilo de Cocteau. E é aí que está o milagre, a ideia genial desse filme, inventar o phármakon de uma certa melancolia. No meio da desclassificação, do tédio, do alcoolismo, da nostalgia e do fracasso, nas profundezas da maior ociosidade, as duas mulheres são capazes de fazer emergir uma louca animação para criar: ficção, vínculos humanos, uma onda de palavras e imagens mais ou menos disfarçadas – um festival alegre e desolado, íntimo e desamparado, triste até a morte e insolente, prosaico e mítico.
O excerto de Albert Camus que abre o filme (“sim, acredite em mim, para viver na verdade, faça teatro”) faz eco à frase sem resposta de Hélène Surgère que seria (Pierre Léon dixit) o grito de guerra dos cineastas da Diagonale e daqueles que neles se inspiraram: “Tudo é verdade!”. Vitalidade desesperada de uma crença na ficção, sua capacidade de desenvolver a criação no próprio coração do fracasso, de abrir janelas imaginárias entre os muros mais estreitos. Crença na ficção, mas sempre carregada pelos corpos. O filme foi imaginado por Vecchiali e Simsolo como uma reação à Salut l'artiste de Yves Robert, mas também em torno dos fracassos de Saviange e Surgère em encontrar papéis. No centro de Mulheres, Mulheres está uma figura que é ao mesmo tempo trivial e metafísica: a atriz desempregada. Qual é o poder criativo de uma intérprete? E o que resta dele quando ela, notadamente em sua maturidade [7], não está mais praticando seu ofício? O que faz uma comediante diante da ferramenta sem uso que é seu próprio corpo, seu pobre corpo, e de uma demanda por atenção que ultrapassa o simples narcisismo para tocar na existência mais material: atuar para comer, para viver? Mulheres, Mulheres responde sempre dialeticamente, oscilando sem parar entre Sonia e Hélène, entre a vida e a morte, a crueldade e a alegria, a tragédia e o ridículo, a realidade documental e o mimodrama, até os angustiantes gritos de dor de Sonia, agonizando, ao fim do filme, que são imitados por Hélène entre risos e lágrima
E é por isso que “todos atores!” será o outro grito de guerra da Diagonale e dos que virão depois: saber que a ficção transforma a vida, que ela nem mesmo precisa de um cenário de cinema ou teatro para existir, simplesmente um terceiro – e ainda assim: no filme, Hélène pode estar sonhando. A genialidade de Mulheres, Mulheres está em sua capacidade de deslocar o foco criativo do diretor-roteirista para as intérpretes, elas mesmas en abyme no papel de “cafonas” (a palavra é de Vecchiali) que desistiram de atuar ou não se “realizam”. Trabalho do negativo interminável que encontra energia no coração da ociosidade, a criação entrelaçada à esterilidade, a atualidade no seio da melancolia.
Herança dos espectadores
Se eu evoco esse filme ambíguo, com um acabamento tão imperfeito quanto refinado, é porque ele se tornou um "filme-farol", "um clássico secreto" (Biette), uma matriz da qual outros herdaram imediatamente. Ao organizar uma retrospectiva de Vecchiali em Veneza logo após ter visto o filme, ao dar às duas atrizes um papel em Salò e fazê-las reencenar literalmente uma cena de Mulheres, Mulheres, Pasolini estava reconhecendo sua dívida com Vecchiali ao inscrever o carnavalesco no centro de sua adaptação de Sade. Fazendo seu primeiro longa-metragem, Biette e Guiguet dividiram a dupla, recuperando cada qual uma parte da energia dramática de Mulheres, Mulheres. Em vez de herdar as formas ou o propósito, eles herdam os corpos, dessas duas atrizes e de seus poderes de figuração, que se tornaram estrelas B após esta espécie de screen test constituído pelo opus princeps vecchialiano e seu trabalho com o negativo.
Em Simone Barbès, redescobri de Mulheres, Mulheres (filmado a poucos metros acima no bairro) o “tudo é verdade!” lançado por Simone e a aparição de Sonia Saviange em desespero gritando de embriaguez, de amor e de loucura na rua de Gaîté. O filme tira da obra vecchialiana a confiança dada aos atores, com a obstinada e irreverente Ingrid Bourgoin, que interpreta Simone com seu humor tipicamente parisiense. Como com Guiguet e Emmanuel Lemoine, Treilhou encontrou-a em um de seus locais de trabalho, um cinema pornô em Montparnasse que será o primeiro dos três interiores pelos quais atravessará a sua heroína durante sua noite (o segundo é uma boate lésbica, o terceiro é um carro que a levará dos Grands Boulevards até sua casa no Canal de l'Ourcq). Eu amo como nesse filme, à semelhança de Mulheres, Mulheres, percebe-se rapidamente a topografia de cada um dos espaços fechados. No saguão do cinema pornô do qual não se vê mais nada, Simone e Martine (Martine Simonet) conversam com os clientes, repreendendo-os e brincando com eles, entrando e saindo das salas em um jogo de Fort-Da que deixa escapar os gemidos fora de campo desses filmes invisíveis que atraem esses homens. Simone Barbès é um filme de câmara tanto quanto O Teatro e As Belas Maneiras, um kammerspiel que reconstitui a vida material ao isolá-la em um interior abafado, mas que ainda assim permanece sendo um lugar “público” aberto a encontros. Já mencionei a força dos corpos nesses filmes, mas estou igualmente fascinado por seus locais singulares e pela maneira como eles os apreendem, essa hospitalidade que possuem e que parece repetir en abyme o da casa Diagonale, fundamentada na abertura intuitiva de Vecchiali [8].
O que se ressalta nos lugares habitados desses filmes, é sua intimidade, a maneira como eles acolhem diretamente as relações entre as personagens num modo interior. Nos locais desses filmes, sempre é possível conversar, aproximar-se ou, no máximo, simplesmente observar-se. Não é o caso de Rivette (sempre um pouco em pânico quando se trata do toque e do rosto), na errância nos exteriores de Ponte do Norte, com seus personagens “pontos no mapa”, um filme essencial para compreender a mudança político-urbanística que se produziu ao fim dos anos 1970; mesmo se naquela época, as problemáticas de Rivette e de Biette, Guiguet e Treilhou eram mais ou menos as mesmas: como ocupar seu tempo, sobretudo quando não se pertence aos critérios sociais da nova sociedade dos anos 1980 que se prepara e que não terá mais nada de popular. Treilhou, que ganhou o Avance sur recettes por Simone Barbès, sentiu bruscamente sua “mudança de status social [9]”, uma “entrada no sistema”: “Isso me atormentou por muito tempo, levei muito tempo para aceitar isso emocionalmente”. Eu também reconheço nesses filmes a consciência difusa da marginalidade: onde vigia, sem fazer alarde, a “deusa homossexualidade” (como disse Barthes). Eu sei até que ponto o flerte visual no canal Saint-Martin em O Teatro ecoa a arte da decifração cuidadosa que requer o filme; eu sinto a perturbação que o filho de Hélène tem por Camille em As Belas Maneiras, e sinto que essa perturbação não é unilateral, que ecoa a ambiguidade do estupro na prisão; eu reconheço esse espaço de trocas, de olhares e de derivas que é o espaço noturno da boate lésbica de Simone Barbès, e a acuidade implicada em sentar-se no banco como a heroína. Essa atenção aos sinais discretos, aos olhares de lado, às vestimentas e aos esconderijos, a toda uma economia hieroglífica e secreta do flerte, aos corpos diferentes, eu sei que isso também vem daí. Eu também sei que a AIDS, as evoluções morais e as tecnologias tornarão quase ilegível tal escrita, cortando vidas diferentes e fornecendo-lhes acesso a uma visibilidade de via dupla, empowerment e normalização.
À força de escrutinar os filmes da Diagonale, acabei por encontrar um outro ponto em comum, a priori irrisório: em todos eles há fotos na parede. Isso pode ter vindo de Godard, mas isso passa em todo caso por Vecchiali [10] e assume todo o seu significado em Mulheres, Mulheres, com essas fotos de estrelas do passado que revestem o apartamento de Sonia e Hélène. As imagens aparecem na montagem por meio de bruscas inserções, elas vêm julgar os personagens e até parecem, ao final do filme, estarem cruelmente contra a pobre Sonia agonizante. Ao encontrar semelhantes imagens penduradas nos apartamentos de Dorothée e Hermann em O Teatro, no quarto do filho de Belas Maneiras e no apartamento burguês de sua mãe (do qual ele fugiu), ornado com tapeçarias antigas que são representações bigger than life. Ezra Pound escreveu: “Você testa uma imagem por seu poder de resistência. Se você conseguir colocá-la na parede por seis meses sem ficar entediado, então ela é provavelmente uma imagem para você, pessoalmente [11]". Eu vejo nessas imagens um tipo de teatro da memória, abrindo janelas nas paredes dessas salas obscuras, mostrando a coleção de referência, a herança que observa a ação presente, a partir das paredes – tal qual o espectador. O espectador vem “do futuro”, as imagens na parede são um olhar do passado. Entre os dois está o que os cineastas da Diagonale tentaram “salvar” de uma sociedade que estava entrando em uma nova fase (o que ainda não era apelidado de capitalismo tardio): salvar corpos, jeitos de falar e de se mover, relações humanas e o burburinho que eles amavam, mas também as obras de arte, a fim de vê-las e ouvi-las de novo de uma maneira diferente. Se os filmes de Biette, Treilhou, Guiguet e Vecchiali são tão importantes para mim e se eles são ótimos filmes, é porque foram feitos por espectadores. Pasolini escreveu que “o espectador, para o autor, nada mais é do que outro autor [12]". Pode-se inverter a fórmula, dizendo: “o autor, para o espectador, não é outro senão outro espectador”, sem trair o resto de sua proposta: “O espectador não é aquele que não compreende, que se escandaliza, que odeia, que ri; o espectador é aquele que compreende, que simpatiza, que ama”. Vecchiali permitiu que seus espectadores amorosos se tornassem autores, bem como em Mulheres, Mulheres ele ofereceu esse status a duas intérpretes desempregadas. Autores, Biette, Guiguet e Treilhou se tornaram, mas como cineastas (para usar a terminologia biettiana [13]), aqueles que, de bom grado, “se oferecem a nós como alimento” – porque amar é ser despossuído. Ao fazer isso, eles se aproximam do que Biette admirava em Ernest Bour, que se doava à orquestra “de uma maneira tão exclusiva que os ouvintes não advertidos, ou melhor, os ouvintes habituados a serem levados pela mão pelo maestro, se sentem(-tiam) abandonados, sozinhos, sozinhos com a música". Biette, Guiguet e Treilhou, sem deixarem de ser espectadores, ensinaram-me a me tornar um e a alcançar no fundo da casa Diagonale essa intimidade tão particular, essa solitude de atenção ociosa que é a única qualidade do homem que vai ao cinema.
***
[1] Após a morte do produtor Jacques Le Glou, esses filmes permaneceram por um tempo nas mãos daqueles que os haviam comprado no catálogo e esperavam (em vão) obter rendimentos superiores aos de seus potenciais espectadores. O filme de Biette está on-line desde o verão de 2020 na plataforma Henri da Cinemateca Francesa, enquanto os filmes de Guiguet, Frot-Coutaz e Treilhou se beneficiaram de uma bela restauração feita pela La Traverse e, para os dois últimos, de uma edição em DVD.
[2] Walter Benjamin, Essais sur Brecht, trad. Philippe Ivernel, La Fabrique, 2003; nota do diário de 12 de julho de 1934.
[3] Entrevista com Serge Daney e Serge Toubiana na ocasião do lançamento de Belas Maneiras, Cahiers du cinéma, nº 298, março de 1979.
[4] Entrevista com Tifenn Jamin e Raphaël Lefèvre, Répliques, nº 7, 2016.
[5] Entrevista com Jean Narboni e Serge Toubiana, Poétique des auteurs, Cahiers du cinéma, 1988.
[6] Segundo Pierre Léon, que evoca esse filme que lhe é tão caro em Jean-Claude Biette. Le sens du paradoxe, Capricci, 2013.
[7] “O que me ajudou a deixar a juventude para trás e entrar na maturidade? Mulheres, Mulheres e Réquiem para uma Mulher”, disse Hélène Surgère no Le Monde (30 de maio de 1985).
[8] Marie-Claude Treilhou: “Vecchiali, como ele diz com frequência, aceitava as pessoas pelo que elas eram, não porque tivessem talento cinematográfico ou tivessem estudado. Ele te aceitava se gostasse de você, se sentisse algo a seu respeito. Foi assim que ele aceitou o roteiro de Simone Barbès ou a Virtude”. (Répliques, nº 7, 2016).
[9] Ibid.
[10] Ver, sobretudo, a Lettre d'un cinéaste realizada por Vecchiali em 1983 para o programa “Cinéma, cinémas” na Antenne 2, descrevendo a sua jornada de trabalho, que termina com as fotos que revestem o seu escritório-quarto.
[11] Crítica de Ezra Pound sobre A Roda, de Abel Gance, na revista americana The Dial, em fevereiro de 1923, citada e traduzida por Sébastien Denis em um livro futuro sobre Pound e o cinema (coleção “Le cinéma des poètes”, Nouvelles Éditions Place).
[12] Pier Paolo Pasolini, L'Expérience hérétique, trad. Anna Rocchi Pullberg, Payot, 1976.
[13] “Qu'est-ce qu'un cinéaste?”, Trafic n°18, primavera de 1996, depois publicado pela P.O.L. em 2001 em um livro com o mesmo título.
Un début dans la vie foi publicado na revista Trafic n°120, inverno de 2021 (pp.83-91). Tradução: Ezequiel Antônio da Silva Stroisch.
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