O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Como eu não escrevi alguns dos meus filmes



Por Jean-Charles Fitoussi

Sabemos que um filme quase sempre só obtém seu visto para a existência a partir de um material não cinematográfico, até mesmo anticinematográfico, o roteiro. O paradoxo é que este paradoxo não impediu os melhores filmes de serem realizados, a quase totalidade dos filmes da história do cinema, desde o falado, nasceu pela primeira vez sobre o papel. Isso não impede: o que faz o filme, o desejo e o trabalho do realizador, nunca foi escrito. Ao contrário da música, o cinema não pode dispor de uma linguagem que o exprimiria em partituras. Mesmo uma decupagem, mesmo um story-board, mesmo os croquis iossellianianos… Uma arte nivelada com a realidade, que faz o seu mel das suas singularidades, se deixa agarrar tão pouco quanto o próprio real. Luzes, cores, sons, gestos, um timbre de voz, uma aparência, um nada num olhar, um rosto, este rosto, este céu, e mais ainda um raccord, um encadeamento de planos, o movimento dos corpos e do olhar, tudo o que dá um prazer especificamente cinematográfico, não se escreve. Mas supondo que isso fosse possível, eu não poderia ter escrito menos alguns dos meus filmes, que foram tão imprevisíveis. E às vezes mesmo inimagináveis.

Le Dieu Saturne, o único com Aura été a ter tido um roteiro completo antes da filmagem – fazendo parte de uma coleção para um canal de televisão e devendo ser financeiramente eleito por uma comissão, não poderia cortá-lo – ele próprio, na verdade, começou bem antes do trabalho de escrita, com o encontro daqueles que iriam ser os atores. Primeiro o velho Alfred Caboche: foi vendo o seu rosto, observando-o dançar uma valsa apesar da sua artrose, que eu quis filmá-lo. Fazer um filme para ele. Associando-o na imaginação a um outro homem singular, Jean-Claude Passera, encontrado um ano antes (que eu tive então também muita vontade de filmar, pressentindo nele uma grande profundidade cômica) como aproximaríamos duas cores, dois timbres, dois planetas, o filme então se esboçou. Faltava-lhe ainda Laurent Talon, Frédéric Bonpart, Manon Caboche e os outros atores, as terras do norte, os textos para ouvi-los falar ou pensar. A história, como se diz, é sem dúvida também importante; mas ela não é o filme, nem, sobretudo, o desejo que o funda: ela completa o esboço. Antes de tudo, ver. Ver e ouvir. Adoraríamos poder levar um produtor, os financiadores, até tal lugar, diante de tal paisagem, tal existência. Observe este rosto… Você nunca o viu? Viu como a noite cai aqui? Ouviu esse som agora? E agora? Imagine como isto se liga com aquilo?

Foi indo escutar um crepúsculo sobre o planalto de Saint-Barnabé, perto de Vence, com Erwan Kerzanet, engenheiro de som, que o último plano de Os dias em que não existo veio. Teria sido impossível imaginar esses insetos, a sua sinfonia, escrevendo numa mesa. Muito menos descrever o canto inaudito, a emoção tão forte dos seus acentos súbitos, a composição de todos esses tilintares em um ritmo tão aleatório quanto regular. O filme, que resumimos facilmente dizendo que ele conta a história de um homem que só existe um dia a cada dois, este filme tinha na realidade começado pelo simples mas imperioso desejo de filmar um apartamento em Montmartre, apartamento que iria ser desocupado durante as férias entre duas locações. Era preciso não perder este momento passageiro, e iminente. História de interstícios também, e com forte potencial cinematográfico, Le temps mort de Marcel Aymé veio fazer conluio com esse duas-peças (sem mesmo que eu pudesse me formular em quê e por quê). Antoine Chappey me parecia idôneo para existir pela metade e Clémentine Baert para o irradiar de presença plena e inteira. Não havia necessidade de escrever o que quer que fosse nem de imaginar o fim da sua história para começar a filmar, o que o tempo impedia, de qualquer forma: o apartamento só estava livre, tal qual, branco, vazio, imediatamente – e nunca mais. O coração do filme mostrou-se sem que ninguém soubesse como a narrativa dessas intermitências iria começar e acabar, e me agradava que os atores fossem, no fundo, como cada ser neste mundo: ignorantes do futuro – que também, muito provavelmente, nunca foi escrito. Os armários que da cama formavam uma espécie de cofre ameaçador só pediam para ser enchidos de jornais, frágeis testemunhas dos dias não vividos. A ideia não era teórica, não era uma “ideia de roteiro”, uma ideia de papel, mas uma ideia de espaço, desse espaço. E só foi um ano depois, no intervalo da segunda filmagem, que a sua visão novamente me sugeriu transformar esses jornais dos quais eles transbordavam – em arma do crime. 

Há um prazer em imaginar um filme, a se deixar invadir pelas suas imagens potenciais sobre a tela dos seus pensamentos – como fabricaríamos um sonho. Depois é preciso muita arte para chegar a restituir o efeito pelas palavras. Trememos, fomos aterrorizados, vimos tal cor estranha, gozamos uma sensação nunca experimentada, maravilhamo-nos, fulano apareceu, depois foi um outro, etc. Mas ao acordar, apesar da persistência das imagens, as palavras não fazem, no melhor dos casos, mais do que dar uma ideia. A narrativa poderia muito bem ter sido cativante, ela jamais seria hipnótica.

O maior dos prazeres não é imaginar mas ver, com os olhos e as orelhas, as imagens e os sons tomarem forma. Deixar “as proximidades da onda”, nascer, desenvolver-se, viver sua vida própria, enquanto a película os imprime e antes que a fita adesiva os conecte. Saber que o celuloide roda em cadência encarando o que se desenrola diante dele, que os fótons venham lhe modificar para sempre a superfície. Alegria das filmagens, hora em que as visões se tornam “vistas”, em que o que deve acontecer acontece. Fascinação pelo que existe.

O interesse particular de rodar com uma câmera em miniatura, como aquela do telefone com o qual eu realizei Nocturnes pour le roi de Rome (ainda que não possamos mais propriamente falar de rodagem, pois nenhum mecanismo roda nesse eletrônico) se sustenta precisamente no fato de que a composição cinematográfica começa então diretamente com o seu material. Juntamo-nos ao pintor, o escritor e o músico que trabalham em primeiro lugar com seus próprios materiais. O mundo, o acaso, produz tal combinação de formas, de luzes, de movimentos, de sons, que te agarra: só é preciso encontrar onde filmar, onde se posicionar, e sentir como acompanhar, para revelar (através de quais movimentos, através de quais enquadramentos) essa realidade em devir. É aí, nesse posicionamento e nesse acompanhamento, que o filme se inaugura. Sem demora. Era um banquete que se preparava. As mesas eram erguidas por um grande vento, os garçons já participavam sem o saber de uma coreografia geral. Se tivesse sido necessário encenar, dirigir este conjunto, isso teria levado horas, senão dias (teria sido também um grande prazer – mas um prazer o quão mais trabalhoso – de apagar o trabalho!). O milagre é que só é preciso agarrar o que o mundo não cessa de produzir – seu movimento. Exercício solitário, o filme nasceu da visão espantada deste banquete, quando me tornei o olho atento durante os vinte e seis minutos que durou um dos planos dados pelo acaso amadurecido com um pouco de geometria. Esse plano se sustentava, como se sustenta uma melodia, ou qualquer composição que seja. Não sabemos como, chamamos isso de sei-lá-o-quê, mas isso se sustenta. E isso se sustenta por tão pouco! Tal chegada de um garçom coincidindo com a partida de um outro, enquanto o quadro nos transporta já na direção de um terceiro, que uma massa sombria venha equilibrar ou desequilibrar uma zona mais clara… Esse plano se tornou uma primeira pedra, um primeiro traço, ao mesmo tempo motivo e motor. Outros se seguiram, até o fim da festa, o apagar das luzes projetadas sobre os pinheiros. A pobreza da definição apagava as linhas em benefício das cores. As garrafas de água tornaram-se o azul, azul intenso, luminoso. Mundo tornando-se luz. Os garçons, brancos – leitoso, creme ou celestes; os smokings trouxeram o negro, preocupavam. Cores que se aprofundavam e ganhavam ainda mais em intensidade com o cair da noite. E no grão digital da grosseira compressão do vídeo, uma vez a imagem projetada na tela grande, descobríamos como que matérias vivas, motivos abstratos tão belos quanto certos detalhes das telas de Gerhard Richter, mas moventes, ou ainda um magma biológico tal como revela o microscópio. Riqueza plástica nascida dos próprios defeitos. Eis os fantasmas que vieram ao meu encontro. Só era preciso se deixar guiar por eles para voltar à fonte do mudo, consequentemente da música, aquela dita “de fosso” que acompanhava as projeções. O telefone de 2005 quase não registrava o som: eu acolhia a restrição como um convite para tentar o que eu só trabalhara até ali com parcimônia: tecer os sons e as músicas com as imagens, sobrepor, saturar, fundir. Um personagem fictício de velho compositor me atravessou o espírito (impregnado por lugares de lembranças de Joseph Haydn), e eis o filme ganhando corpo, no interior dele mesmo, constituindo a interioridade do velho com a vista turva e perturbada, se tornando suas percepções: o que ele via do mundo em torno de si, o que ele ouvia da música nele mesmo, e vice-versa. Ele teve uma voz, a de um amigo alemão encontrado nessa época. Enfim o filme se montava, se rodava, se mixava, se escrevia – quer dizer, se compunha – num único e mesmo tempo. Um vermelho, um ocre vinham a faltar? Bastava ir buscá-los saindo para rodar, ou folheando ao acaso o reservatório de planos já recolhidos. Da mesma forma, se de repente tratava-se de acalmar ou de intensificar o ritmo: vamos procurar os planos necessários como se descêssemos ao porão, como se fôssemos ao pomar – no campo.



Esse “sexto opus” era para mim um divertimento – no sentido musical e não pascaliano do termo, posto que ele é justamente uma meditação sobre a morte, a folga do mundo –, uma recreação em modo menor entre duas rodagens do meu filme “maior” iniciado um ano antes para terminar dois anos depois, Je ne suis pas morte. Apesar de filmado em 35 mm, ele entrava mais uma vez na constituição mesma desse projeto de nunca se escrever no papel antes de ser imagem e som. Os filmes escritos – prolongamentos do Dieu Saturne – tinham encontrado produtor, o qual tinha de repente perdido suas finanças; eles permaneceriam no plano, ou antes nas páginas, sine die. Em vez de passar o verão desempregado saboreando a doçura de suas noites, decidimos filmá-las, essas noites e essa doçura, uns versos de Rimbaud na cabeça que se tornariam o título de uma primeira parte, Pelas belas noites de verão. Desde o momento em que eu tive vontade de filmar estes boulevards abandonados rendidos às silhuetas lânguidas, às horas alongadas bebidas entre amigos numa Paris que dorme. A cada mês de agosto, quando regressavam esses tempos divinos, e com eles o desejo de filmar, era tarde demais para iniciar um filme. Mas em 2004, partindo para Roma desde o outono, a ideia sempre possível de que este verão poderia ser o meu último – constante sentimento da impermanência – encontrou desta vez ao seu lado (posto que estava previsto que nós filmaríamos um outro filme) a cara equipe de uma parte, Alix Derouin de outra, em quem eu tinha visto já um personagem, aos quais se juntava, mais uma vez, um apartamento disponível esvaziado de seus ocupantes: essas conjunções impuseram a decisão de começar o filme. Venha o que vier: tal era o único roteiro, armado dos primeiros personagens, de um tema e de duas ideias formais. Quando a câmera estivesse disponível, com quem estivesse presente, reservando uma boa acolhida a tudo o que nos acontecesse por mais difícil que isso pudesse parecer à primeira vista, nós filmaríamos. E o filmamos, no dia a dia, escrevendo primeiro os diálogos à noite, que ensaiávamos de manhã para filmar à tarde. Depois, à medida das temporadas de filmagem (houve sete), a confiança e o trabalho aumentando, não havia mais nada a escrever. Somente deixar a noite permeável às visões, o dia aberto aos imprevistos. Um entre tantos outros: filmando num sótão aberto por uma janela que devia se encontrar no campo e na direção à qual a câmera devia avançar, passando de dentro para fora, Sébastien Buchmann, diretor de fotografia, me fez rapidamente perceber que a película não aguentaria nunca o forte contraste entre a luz no interior e aquela do exterior, visível desde o começo do plano (enquanto é tão simples para um roteirista escrever: “A câmera se dirige em direção à janela e sai do quarto, revelando toda a extensão verde do exterior” – mas aí ainda era a janela, essa janela, perto dessa rampa, que chamou o plano). Sem meios de iluminar mais o quarto, nem de obscurecer o sol. Era preciso escolher: seja um cômodo sombrio e uma natureza visível pela janela, seja o quarto claro mas a relva e a floresta estourados. Ou ainda a solução intermediária (utilizada por Gus Van Sant em Elefante) consistindo em variar o diafragma no momento em que passamos de dentro para fora. Recusando essa solução de comprometimento, eu tomei o partido de conservar o quarto na branca claridade na qual tínhamos sempre o conhecido até aqui, sair, então, para fazer avançar a câmera em direção a um jardim estourado, quase invisível pois se afogou no além da película. Eu tive vontade de ver esse além, essa queimadura da emulsão, e somente então, lentamente, sem procurar mascarar o efeito mas sim o afirmando do começo ao fim, fechar o diafragma e reestabelecer a visão conforme àquela do olho. Não havia melhor, nem mais simples, e, ao meu ver, mais bela maneira de fazer passar aquela que habitava esse quarto neste mundo precisamente para o além, pelo contato com os limbos da fotografia analógica – e é a realidade, o acaso das restrições técnicas, que é, se não o autor, ao menos o inspirador, engrenagem e motor*.



Eu, mesmo assim, tentei, depois de cada sessão, sabendo porém que este gênero de achados não se escreve nem se imagina, antecipar ao menos a sequência dos acontecimentos narrativos, traçar um roteiro um pouco preciso de seu rumo que serviria de Sésamo junto aos financiadores, canais de televisão ou mecenas. Nem que fosse só poder contar a história… Parece que o filme tentou recusar a se deixar encadernar, a tal ponto que ele me fez encontrar seus personagens, seus atores, às vezes somente alguns dias antes de dever filmá-los – quando não eram algumas horas! Era preciso então aceitar saber menos que o próprio filme, fazer-se o seu servidor conjugado ao único presente.

Seja amigo do presente que passa, o futuro e o passado te serão dados por acréscimo.” Assim Clément Rosset conclui um capítulo do O real e seu duplo, assim foi realizado Je ne suis pas morte, sétima peça do Castelo do acaso – e finalmente também todos os filmes precedentes, com ou sem “script” -: na amizade ou adesão ao presente, com mais ou menos sucesso precisamente segundo a intensidade dessa adesão. E me parece que essa maneira, por uma volta curiosa, associa-se àquela dos realizadores hollywoodianos que não escreviam os seus roteiros mas os recebiam do produtor, como eles me chegam pelas mãos do tempo.

* É esse sentimento de ser eu mesmo mais receptor ou recuperador de acasos que criador propriamente dito que me fez dar ao conjunto dos meus filmes o título genérico de Castelo do acaso, cada um constituindo uma peça.

Comment je n’ai pas écrit certains de mes films foi publicado originalmente na revista Trafic, n° 73, primavera de 2010. Tradução: Miguel Haoni. 

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