O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Filming Othello


Por Jean-Claude Biette

Hoje, quando um grande número de filmes admirados repousa em um material mínimo e monocromático (de Apocalipse Now a Aurelia Steiner) — o que não exclui necessariamente a complexidade ou a profundidade dos temas com os quais tal ou tal material se paramenta —, é um pouco surpreendente ver o pouco interesse manifestado em relação ao último filme de Orson Welles, Filming Othello. Como Le Camion, F.O. põe como horizonte de sua reflexão um filme. Em Duras, é um filme hipotético: “Se fosse um filme…”, ela enuncia, convidando o espectador a demonstrar imaginação a partir de algumas palavras audaciosas, de frases pronunciadas sobre imagens cuja velatura e brilho servem para canalizar a hipnose do tecido oral. Em Welles, o filme não está por fazer, ele está feito, é o Otelo de 1952. E ele inclusive se desfaz sob nossos olhos, ao passo que, a nossas orelhas, uma voz — a do ator Welles interpreta aqui o papel do célebre cineasta — nos conta sobre sua formação — aventurosa, caótica — desde as proposições desvairadas de um produtor que queria uma ópera filmada — já! — até a derradeira ruminação cinefílica do produto acabado, passando pelos problemas materiais (falência de certos capitais, improvisações espetaculares — o assassinato rodado em um mercado de peixes marroquino disfarçado de banho turco enquanto esperavam a chegada do figurino) e pelas questões estéticas (as discussões, aqui como que renovadas, com os atores sobre a interpretação dos personagens da peça de Shakespeare).

O espaço estreito de uma sala de montagem, com sua mesa de solitário, permite-nos aqui ver o velho filme em migalhas (e, com exceção dos primeiros planos, sem o som) e fazer surgir a imagem de uma outra mesa, a dos amigos atores vinte e cinco anos depois, e de uma assembleia, a dos amigos admiradores do cinema de Boston. Essa sala de montagem é o modesto cavalete sobre o qual, portanto, o ator Orson Welles é encarregado por seu duplo, o não menos célebre cineasta, de defender uma causa, ela também dupla. Causa dupla em que o ator não tem mais o maior papel: não tendo que desempenhar um personagem ou um caráter, dessa vez ele empresta sua voz e seu corpo ao cineasta enquanto primeira pessoa. Aqui, ele é puro intérprete, corpo e voz transitivos, medium entre os media, sabendo perfeitamente que a câmera será indiferentemente filtrada por um aparelho de projeção ou por uma televisão e, no entanto, decidido a enfrentá-la como se tudo isso fosse eternamente um teatro.

Ainda que tudo pareça convidar Welles-cineasta, neste filme, à sinceridade da qual alguns exigem que esteja ligada ao semblante, é Welles-ator quem está aí e atua: como Chaplin, quando se dirige subitamente a nós em certos momentos particularmente dramáticos de seus filmes. Welles-ator desempenha aqui a verdade de Welles-cineasta.



Portanto, qual é essa dupla causa? É a causa do cineasta que busca chegar o mais próximo possível de Shakespeare, restituir o melhor possível a verdade que ele entrevê, mas é também a causa de Shakespeare, tal como Welles (intelectual e ator, ou seja, plenamente intérprete) pode imaginá-la e vivê-la realizando o imenso e meritório esforço de identificar-se a Shakespeare. Welles declara desde o início que Shakespeare é o maior dramaturgo que já existiu e que “Otelo”, a peça, é um dos pináculos do teatro mundial: esse credo estético é também uma bússola. Welles, no meio do oceano shakespeariano, sabe que navega: e, hoje, seu velho filme não lhe aparece mais que como o sonho lamentavelmente materializado de uma interpretação, sonho que ele amaria refazer em vista de uma mais justa. A velha interpretação não é correta? É o que o cineasta se ocupa de examinar diante de nós, sobretudo com a ajuda de seus velhos intérpretes (Michael Mac Liammoir: Iago, e seu velho mestre, Hilton Edwards: Brabâncio).

Modestamente, Welles defende aparentemente somente a causa de Shakespeare: e o cineasta parece, por isso, apagar-se por trás do intérprete (intelectual, portanto, e ator). A discussão, ou antes a argumentação versa sobre: as paixões dos personagens, as motivações (ou a ausência de motivações) de seus atos, a consciência que eles têm do mal e o grau dessa consciência, a interpretação histórica de seus atos (fim da Idade Média e nascimento do puritanismo a respeito do qual Welles se declarava “técnico” em 1958), a distinção intemporal entre ciúme e inveja, e, enfim, as encarnações possíveis na realidade dos personagens da peça e a possibilidade para seus atores de se referir a eles como modelos, não de atuação, mas de estudo. Notemos que a distinção entre o cineasta e o ator é posta aqui: não ignorando que sua voz questionante seria certamente reconhecida, Welles toma cuidado, no entanto, por um contracampo visivelmente filmado mais tarde, de desempenhar diante de nós o papel do cineasta, na tonalidade que é a de um incitador quase platônico ao diálogo, observado, como os dois outros atores, por uma câmera que registra uma expressão física e materializa uma presença. Ao longo desse banquete frugal reconstituído na montagem: de um lado, frango (frio?), salada verde e, de outro, cesta de frutas e água Evian, os campos-contracampos reproduzem, em um clima, é claro, de estrita economia (para não dizer de uma destituição moulletiana), a montagem formada no velho Otelo da ameia portuguesa e da escadaria toscana.

Em Filming Othello, Orson Welles coloca oralmente e com um material fílmico mínimo a maior parte das questões essenciais que um cineasta pode ser levado a colocar ou a ver-se colocando desde a produção até o consumo: a preexistência de um modelo (para Welles, Shakespeare; cf. a frase de Cocteau: “instalar seu cavalete próximo a uma obra-prima” ou ainda o trabalho de Picasso, de Stravinsky etc.); a definição precisa do assunto a ser tratado (aqui, a inveja ou o ciúme ou a ambição e o encontro das três paixões nos personagens), o aprofundamento do assunto escolhido, a relação dialética que esse aprofundamento trava com os meios técnicos e materiais que as circunstâncias lhes concedem ou que vocês dão a si mesmos, os sacrifícios propiciatórios direcionados à justeza da expressão (os açucaramentos necessários, a eliminação dos “efeitos locais”, para retomar uma expressão destacada por Nadia Boulanger), a tensão difícil em direção ao essencial, e então, muito tempo depois, a imagem que será preciso tentar recompor publicamente sobre um passado desvanecido.



O velho drama shakespeariano se afasta cada vez mais, indiferente ao desespero dos que o interrogam e se comparam a ele. Os anos passam. Welles, ainda vivo, que ainda não foi reduzido a não ser mais que sua obra, dirige-se a nós com a mesma liberdade indolente e familiar que Montaigne em seus “Ensaios”, dos quais se sabe que Welles é leitor assíduo e fervoroso, e é aqui o ator-Welles que reencontra o tom sutil do escritor do qual Shakespeare era leitor assíduo e fervoroso. E o velho filme de Welles ganhou sua existência.

Indiferente ao medium (em 1958, O.W. declarava: “Eu não amo o cinema, a não ser quando estou rodando; então, é preciso saber não ser tímido com a câmera, fazer-lhe violência, forçá-la até seu limite, porque ela é uma máquina vil. O que conta é a poesia”), Welles refaz diante de nós, com procedimentos estilísticos em número limitado (filme em 16 mm, sem dúvidas rodado rapidamente), todas as fases da abordagem de um assunto. Prodigioso flash-back, o velho Otelo é hoje a lembrança que assombra a reflexão serena e emocionante de Filming Othello. O espetáculo da mesa de montagem — que cria e recria o tempo —, como da música (Welles insiste nisso) substitui aqui o espetáculo dos planos soberbos (com os antigos faustos da profundidade de campo). As formas cinematográficas têm uma história: as definições (o cinema é a imagem, é o movimento, é o espaço, é a ação etc.), visto que absolutas, são grosseiras. Desde muito cedo, Welles buscou no cinema o elemento temporal, insistindo no que se passa entre as imagens. Hoje, quando a fotografia mais é exibida do que ilumina, quando os gestos e as mímicas, alimentados por uma história cada vez mais semelhante, tendem a dissolver-se em uma norma de comportamento imposta pelo neopuritanismo internacional, a voz humana, uma confidência modesta, palavras, trocadas ou não, são mais expressivas.

E o espaço da sala de montagem é, como a Gare d’Orsay na época do Processo, o estúdio inesperado em que Welles, lamentando ter feito um Otelo demasiado jovem e sonhando com um outro filme que não pode fazer, consegue filmar a única coisa que o separa indiscutivelmente de Shakespeare: o tempo. E desempenhar isso como uma amável conversa.

O texto foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma nº 310, abril de 1980, e republicado na coletânea Poétique des auteurs. Tradução: Rafael Zambonelli.

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