O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

"Vidro", inclassificável



Por Camille Nevers

Depois de Fragmentado, M. Night Shyamalan conclui uma trilogia com ares de série B iniciada há vinte anos com Corpo Fechado. Entre anti-filme de super-herói e fábula bruta, uma visão desencantada em que os protagonistas vegetam no dédalo de um hospital psiquiátrico.

O twist, é sempre a lei que mente. Uma vez que é preciso desmentir: denunciar, desobedecer, lutar, transgredir. O que é twisted, torcido, resta a retorcer, pegando a mentira na sua própria peça. O twist é esta história de revolta que incuba, a revolução que ruge, sobre o pano de fundo da revelação, o abrir dos olhos do herói, logo a contemplação ou não de sua crença. Vidro conta isso, de novo, nesta paciente e reconduzida partida de construção-desconstrução-reconstrução que é o cinema de M. Night Shyamalan.

É uma verdadeira série B. Como o era A Visita (2015), mas com duas estrelas no lugar de duas crianças, Bruce Willis e Samuel L. Jackson, astros envelhecidos, agradecidos, mas não de graça – 20 milhões de dólares de orçamento, isso não é nada: uma série B com casting. Não estas falsas ou neo-séries B como aquelas criadas pela Nova Hollywood dos anos 70-80 que desconstruiu o gênero, fabricou superproduções A com histórias B ou bis, enfim menos nobres, e moldou um novo tipo de cinema clássico: grande espetáculo para geeks, cinema fantasy com um novo horizonte a explorar e fronteira para novos pioneiros, os efeitos especiais, gráficos, e logo digitais. Filmes de aventura e fantásticos cada vez mais caros onde os filmes B eram concebidos desde a origem por um custo mínimo e um rendimento máximo. Foram, de maneira exemplar, as sagas de Spielberg e de Lucas, de McTiernan também, toda uma época, os Jurassic Park, Indiana Jones, Star Wars ou Duro de matar, gênero que sobrevive hoje na sua hipertrofia, na sua sobrevalorização simbólica (estilo Transformers ou Vingadores). Este gênero tem um nome: “o filme de franquia”, denominação mais indicada que filme de super-heróis, mais justa na verdade.

Câmeras de vigilância

Shyamalan estivera no centro estratégico e no meio cronológico deste fenômeno, mas ele lhe deixou paradoxalmente órfão (não houve saga Corpo Fechado), reflexivo e intimista. Reveja Corpo Fechado (Unbreakable em inglês, 2000): fora a última meia-hora, não acontece quase nada, o contrário do filme de ação. Daí a importância, novamente essencial, do twist, que não tem nada de dispositivo, o nervo de um universo que deixa ofegante, entre enigma progressivo e luz retrospectiva, uma narração senão curiosamente lânguida. Do filme, só permaneceu a tristeza de ser, ou de não ser, um super-herói. A tristeza de David Dunn (Bruce Willis) e a amargura de Mister Glass (Samuel L. Jackson). Do Bom e do Mau.

Vidro é então um filme de franquia abortado, crossover marqueteiro (cruzamento de Corpo Fechado e Fragmentado, o filme anterior de Shyamalan), sequel, spin-off, última peça de uma trilogia improvisada, ou tudo isso de só uma vez. Ele é, sobretudo, o limite atingido de tudo isso: da série A ricaça que se empanturra das histórias da série B, cultura pop, quadrinhos, ficção científica, formas underground. Enquanto tal, esta é a melhor crítica desse gênero. É um filme “indus” como se diz da música industrial, bruto, tagarela, áspero, metálico, minimalista, intencional, digressivo e texturizado: linóleo, tijolos e concreto (rosa às vezes, pink e punk).

Não se trata, dessa maneira, de um filme “meta”, como escutamos já por todo lado, mas de um grande filme crítico. Obra reflexiva, intelectual mais que teórica. Sua desconstrução é uma reconstrução – da série B original e contestatória, portanto. O que dá nesta curiosa crítica reacionária (estes anos incríveis) e revolucionária ao mesmo tempo (a viralidade tecnológica). Então esta crítica não é resplandecente, de nenhuma maneira, mas anti-espetacular, um pouco grotesca (este humor de Shyamalan ao qual James McAvoy deu, desde Fragmentado, a sua livre expressão, freestyle horrível-burlesco) e dolorosa. 

Não há nenhuma presunção em Vidro, a crítica é modesta nesse filme, mas direta. Endereçada a nós frontalmente. Direta como estes planos dos rostos dos personagens, olhando para a câmera num leve contra-plongée, fria como a adição de pontos de vista alternados, cada herói tendo o mesmo olho apagado, cego ou maquinal, que as câmeras de vigilância. Multiplicar os pontos de vista, para fazer um balanço da situação. Punctum: esta cena do restaurante povoado de falsos anônimos é genial pela súbita estranheza. É então, porque o cenário é um dos personagens principais como em toda boa série B, um filme menos desencantado que abandonado.

Vidro nos informa sobre o que se passa – economicamente, espetacularmente – com a crença, em 2019, no cinema, na potência da ficção. Quer gostemos ou não do seu estado. Ele nos diz, com este belo lado didático do conto, o que se passa com este desuso: à imagem deste cenário austero de hospital psiquiátrico onde vegetam os heróis cansados. É preciso ver a cara dos três super-heróis diante da Dra. Staple (Sarah Paulson), a psiquiatra de voz doce – todos os filmes de Shyamalan tem vozes doces, reconfortantes e tristes, como vozes de fantasmas amigos, bem como categorias de silêncio inesgotáveis.

Estes rostos de expressão perdida. Entre o reencantamento do mundo de Corpo Fechado e seu desencantamento atual, há o envelhecimento, o vosso, o nosso, vinte anos depois, os três mosqueteiros (Willis, McAvoy e Jackson), heróis cansados, ou quase-vegetais, ou aberrações perdidas. De Unbreakable ao “broken” Glass, de um filme ao outro, “Shy” examina o que se rachou.

Estilhaços minerais

O público muda mais rapidamente que o cinema. E se ele se entedia diante de um filme de Shyamalan, seu torpor, este estofo estava desde sempre no seu cinema. Mas o espectador era mais otário, mais disposto a experimentar e a deixar o cinema de gênero criar atmosferas, arritmias, histórias da carochinha muito novas e muito antigas. Os filmes de Shyamalan ainda não entediavam os futuros espectadores blasés, “sabichões”, mais espertos que ele. Moleques chatos que exigem que um tal autor de (antigos) sucessos faça sempre melhor. Pode fazer melhor. Mas o autor – pois ele é um – resiste apesar dele mesmo, não cede à pressão, ele é orgulhoso demais. Sem dúvida, ele também entendeu que isso não duraria, os exageros das belas histórias mitológicas, fantásticas, ainda humanas. Shyamalan se pôs desde seus primeiros fracassos, e incluindo Vidro, a “não fazer melhor”, a não procurar mais fazer melhor. Cada vez mais B: nu, cru e exibindo seus twists e suas inverossimilhanças para espectadores cada vez mais intolerantes a elas, “nossos amigos os verossímeis” como os chamava Hitchcock, sinal de que em cada coisa encontramos uma ascendência.



Nesta maneira de abandonar, de “neutralizar” (nem bons nem maus, mas vegetais e vigiados) estes três personagens, eles mesmos multiplicados na Horda ou pela dissimulação astuciosa, reina no asilo psiquiátrico uma monotonia geral e amorfa, falso descanso, falso sono da mente, enquanto um entre eles, secretamente, trama. Staple, a psiquiatra, encarregada de convencê-los de que sair do neutro, deste cinza, será na direção de uma racionalidade boa, uma renúncia à loucura, à mitomania. Mas a mulher não vê os estilhaços minerais no olho dos prisioneiros: pouco a pouco a pedra, a água, a dureza das paredes e do asfalto no exterior – tudo isto que faz corpo e matéria recupera seus direitos. Já tínhamos visto um cenário de estacionamento ao ar livre explorado desta forma no cinema? Não, nunca tínhamos visto. E este hospital psiquiátrico filmado como um dédalo medicado, despovoado e vazio? Muito menos (ou sim, com John Carpenter). Vidro é então um grande filme sobre o neutro, um conto sobre a normalidade frustrada. Neutro, como este twist derradeiro sustentado numa poça d’água, pequena e terrível da tragédia anódina.

NdT : O nome do artigo “Glass”, Inclassable é uma referência ao título francês de Corpo Fechado: Incassable (inquebrável).

“Glass”, Inclassable foi publicado no jornal Libération em 15 de janeiro de 2019 (https://next.liberation.fr/cinema/2019/01/15/glass-inclassable_1703203). Tradução: Miguel Haoni.

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