O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

“Laços de Ternura”, prazer louvável




Por Camille Nevers

O filme de James L. Brooks retorna ao cinema: ocasião de reler e revisar a crítica de Serge Daney publicada no “Libé” quando do seu lançamento em 1984, e poder finalmente rever sem vergonha esse longa-metragem magnífico.

A reprise desse filme maravilhoso, célebre, multi oscarizado e, contudo, controverso, drama sentimental contrafazendo uma comédia clássica, história de uma relação mãe-filha que uma vida percorrida em uma ficção de duas horas não conseguiria cercar, é a ocasião de resolver um velho problema. Pois o que há de maravilhoso em Laços de Ternura é proporcional à sua perfeita simplicidade. Esse ponto culminante mas invisível da inteligência, portanto de possível confusão entre a fineza de expressão e o banal, o “medíocre”, a dianteira do tempus fugit e a horrível desonra de um “a vida é assim” que só concederia (vida) aos ricos – contudo, o crítico teria esquecido? é a frase condutora de Tarde Demais para Esquecer de Leo McCarey: “A vida é assim, etc”.

Nas páginas do Libération do 7 e 8 de abril de 1984, quando Laços de Ternura era lançado na França, recém coroado com esse “repugnante amontado de Oscars para o qual ele foi programado”, Serge Daney se enganou – o que acontece com todo mundo. Seu engano se intitulava “Botas para um vale de lágrimas”. Ele atacava o filme violentamente. Não há problema em se enganar; o que aconteceu foi que ele nos fez sentir vergonha. Vergonha de ter gostado e ter chorado diante dessa água com açúcar viva e trágica. É preciso resolver isso, quarenta anos depois, opor-se à crítica de Daney, que não é o pai nem essa mãe a quem a ultima frase do artigo bate ainda com seu grito paradoxal: “E contra a mãe, não nos revoltamos”.

Pequeno palhaço

Nos revoltemos contra a autoridade, mas somente quando ela abusa de si mesma. Por que, na época, Serge Daney, que tinha discernimento, se enganou? Primeiro confundindo o inimigo, a televisão, tomando o filme como exemplo do argumento menos interessante da história do cinema – que se trata de um “telefilme” (como pudemos dizer “é teatro filmado”, etc). “Mas (diriam, surpresos por tanto ódio) esse filme não é uma novela! Com certeza, é ainda pior”. O que é que o crítico deixou escapar, cego por um esquema de leitura ideológico que o fez considerar o filme como o contemporâneo odiável de Dallas e de Reagan mais do que o descendente direto, em termos de estratégia narrativa, de Leo McCarey, não obstante citado ao lado de Vincente Minnelli e Douglas Sirk, apenas a contragosto de uma nostalgia que sentimos forçada – “eles nem sempre foram nulos (aliás nós os lamentamos)”?

Uma pista: o pequeno palhaço. Daney não soube ver o pequeno palhaço, a luz persistente da lamparina do primeiro plano do filme. Esse pequeno palhaço que é também a primeira frase do “roteiro” de James L. Brooks: “Uma tela escura, no canto inferior esquerdo, brilha o rosto de um pequeno palhaço. Ele é quase imperceptível, enquanto os créditos começam”. O crítico viu somente a imagem da mãe que ele não podia tolerar. Não a luz persistente do rosto do palhaço, nem a arte da comédia. No filme, a mãe, Aurora, e sua filha, Emma, são magnificamente retratadas, com fisionomias variáveis, por duas épocas do cinema americano: Shirley MacLaine e Debra Winger, tão diferentes quanto possível nessa dinâmica de caracterização contrastada cara a Brooks. Daney viu a pulsão (de morte, de mãe), não o pequeno palhaço que afasta o filme de toda causalidade edipiana e do trilho da fatalidade – nada mais “ilógico” que a arte da psicologia levada aos seus limites esgotados, cristalizada em mise en scène que “se repensa” e se retoma, repete infinitamente sua entrada e sua saída, de Brooks. Essa ausência de determinismo social e de fixação familiar, que ele deixa em plano de fundo, o separa, aliás, de Sirk, de quem Daney aceita os melodramas de filiações trágicas – o que ele recusa a James L. Brooks. Como você sabe.

Combustão lenta

Uma outra maneira mais doce de perguntar, então: o que torna Laços de Ternura tão belo? Uma inteligência do humano conduzida a um ponto de precisão mais que humana e sem pressão. A transparência de suas intenções e sua ausência de efeitos. O emaranhado frouxo das existências, distantes mas ligadas. Essas poucas vidas paralelas que avançam de forma regular, o filme aborda suas intimidades esculpindo os raccords, os ecos e as distâncias implicadas, o que as numerosas cenas de telefone atestam (com esse efeito de “presença in” da voz do interlocutor no fim da linha, efeito que encontramos em Defesa Secreta de Jacques Rivette, outra história “de menina”). James L. Brooks filma tudo com uma benevolência afeiçoada, inclusive a malevolência, o que lhe permite exprimir com tato indizível, sob a comédia sentimental, a emoção sinuosa e a tragédia sem aviso prévio. Como Leo McCarey.

Assim Daney nos fez sentir vergonha de gostar dos filmes de Brooks, por muito tempo. Nisso ele não se enganou, enfim. Pois Laços de Ternura é o estudo bastante exaustivo de um sentimento nunca filmado como tal, de uma combustão lenta (os filmes de combustão lenta são os mais bonitos): a vergonha. A vergonha é o motivo de cada plano entre MacLaine e Winger, Nicholson, Daniels, Lithgow, as crianças, todos pegos de surpresa, para desconforto geral e seu constrangimento. É a vergonha que os pais fazem aos filhos, mais ainda que a vergonha que os filhos fazem aos pais. O filme mostra como essa vergonha, aplicada primeiro a si mesmo, é uma forma lastimosa e desajeitada, mas de um pudor sublime, o do filme, de estar no mundo. É assim que Brooks consegue filmar coisas indizíveis, sentimentais e cruéis, até o último suspiro. Choramos. Eis aí porque nós tínhamos razão.

“Tendres Passions”, plaisir louable foi originalmente publicado no jornal Libération de 1 e 2 de outubro de 2022, p.24. Tradução: Luiz Fernando Coutinho.

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