Por Éric Rohmer
O homem errado, Alfred Hitchcock, 1956.
François Truffaut lhes expôs, na semana passada [1], o tema do último filme de Alfred Hitchcock e assinalou sua extrema importância. O homem errado vem satisfazer nossos desejos, para além do que nós ousávamos esperar. O tipo de incompreensão que ele encontrará será, mesmo, das mais lisonjeiras. “É idiota, isso não se parece com nada”, escutávamos aqui, ali, na saída da primeira sessão. Frases desse gênero, qual Manet, qual Matisse, qual Stravinsky não pode se vangloriar de tê-las suscitado?
Depois de ter suportado, bem injustamente, o desprezo com o qual oprimimos os autores ditos “comerciais”, Hitchcock se junta assim ao grupo dos cineastas malditos. Sim, é verdade, isso não se parece com nada, ou, antes, isso se parece estranhamente com o que o cinema, na sua história, produziu de mais ambicioso. Truffaut evocava Bresson. Nós poderíamos adicionar Rossellini ou Orson Welles. Esses metteurs en scène, ou antes, esses autores, dos quais ninguém questiona a intransigência, não se contentam em nos propor um equivalente cinematográfico do romance ou do teatro. Eles criaram um verdadeiro gênero novo que casa, como o faz O homem errado, as virtudes opostas do documento e da fábula. São, cada um à sua maneira, apólogos que comportam uma moral, são contos pouco preocupados com a superficial verossimilhança. Mas essa moral não tem nada de didática, mas essas histórias extraordinárias se pagam o luxo de serem inspiradas em fatos reais. Essa anedota é a mais inverossímil que Hitchcock nos contou, mas como dizia, mais ou menos, Corneille, “ela é possível já que ela foi”.
O extraordinário então não é mais aqui, como nas obras precedentes do nosso cineasta, um meio, um pretexto para desenvolvimentos brilhantes. Ele nos é proposto como tal, como um objeto de estudo. E, refletindo sobre, nós percebemos que ele não é talvez tão extraordinário quanto ele parecia. Nós não seriamos vítimas da mesma ilusão do contrabaixista do Stork Club e de sua mulher, que acreditam que tudo conspira contra eles? O erro de Balestrero, que aposta nas corridas no seu tempo livre, não seria de acreditar muito na sua boa ou má estrela? Há mesmo um verdadeiro milagre? Nada permite negá-lo ou afirmá-lo. O que é certo é que, milagre ou não, não está nas intenções de Hitchcock (não mais que em O homem que sabia demais, sobre o qual eis agora lançadas luzes singulares), a de ridicularizar a ideia da Providência: o que ele zomba, são – segundo o próprio espírito desse cristianismo que impregna profundamente sua obra – os dois pecados teologais da presunção e do desespero.
Visto que a obra solicita essa interpretação teológica, é importante precisar bem as intenções do autor. Elas não são em nada confusas, mas complexas, como é a própria ideia da graça que nos preferimos enormemente, pela nossa parte, a esse Destino literário, calcado na antiguidade, no qual tropeçam cineastas menos originais. Não é tanto o que nos dizem que é preciso considerar, mas o que nos mostram. E as imagens são suficientemente eloquentes. Não há dúvida: esse falso culpado é na realidade um falso inocente, assumindo a culpabilidade, não só de seu sósia, mas da humanidade por completo, compreenda aí o pecado original. Isso, Hitchcock expressa na primeira parte do filme com uma força própria a desencorajar todos aqueles que nutriam a ambição de levar às telas O processo, de Kafka. Contemple o cerimonial, apressado ou meticuloso, desdenhoso ou deferente, abjeto ou solene da justiça, as confrontações através das quais, sob o olhar das testemunhas, o acusado começa a compreender que ele é apenas mais uma coisa entre as outras, esses interrogatórios polidos, mas que lhe tiram toda a veleidade de protestar sua inocência, a lenta comparação das caligrafias, a coleta das impressões digitais, a vergonha da passagem das algemas e do encarceramento. Todas essas imagens nos sopram que esse acusado é um símbolo, símbolo da condição humana, símbolo da Redenção, como o rosto e as atitudes crísticas de Fonda o manifestam claramente. Se houvesse aí apenas cromos sulpicianos, nós teríamos direito de rir. O mérito dessas alegorias é de se mascarar nas aparências modestas do documento. Esse gosto do detalhe verdadeiro, que ia se afirmando desde Janela Indiscreta, encontra um campo ideal. Hitchcock acompanha a evolução exatamente inversa daquela de Rossellini e, curiosamente, aqui seus caminhos se cruzam. Ao tempo trucado do “suspense” se substitui a duração real. Assim como o prisioneiro, nós não sabemos o que o instante seguinte nos reserva. Tudo pode acontecer e é por isso que tudo, mesmo o milagre, acontece.
Hitchcock então, ainda que ele tenha escolhido aqui como roteirista um autor tão estimado quanto Maxwell Anderson, concede mais confiança à mise en scène que às palavras. O gênero alegórico é aquele que comporta mais armadilhas. Só são autorizados a usar “figuras”, os cineastas que são, como esses que evocamos, verdadeiros criadores de formas. Sim, claro, Hitchcock é um “formalista”, mas essa palavra não deve de maneira alguma ser levada a mal. Ele o é assim como eram Vinci ou Edgar Poe. É a forma que, nele, está cheia de uma metafísica, visto que existe efetivamente metafísica (ou, senão, ela também não existe em Kafka). É ela que, como ele ama dizer, contém a “mensagem”.
A preocupação dessa forma pôde tomar, em certas obras, o aspecto de um rigor geométrico, menos saliente aqui, mas facilmente discernível. O postulado formal, a figura-mãe desse filme é, naturalmente, a ideia da barreira, do muro: muro dos rostos dos policiais que cortam bruscamente o culpado do mundo exterior, divisórias estreitas dos escritórios e dos locais, lugares reais da ação, onde Hitchcock se obrigou a rodar seu filme. Os quadros são apertados, sufocantes. No furgão da polícia, Balestrero não ousa olhar o rosto daquele ao qual lhe ligam as algemas, e nós só vemos uma fileira de pés, sobre o chão do veículo. Depois, quando a porta gradeada da cela se fecha, alguns olhares para os muros ou os tetos, seguidos de um close móvel em que a câmera tomada pela vertigem efetua uma espécie de dança giratória frente o rosto do acusado, bastam para expressar de maneira sem igual e, sem dúvida, inigualável, o horror do aprisionamento. Uma vez o prisioneiro liberto, sob fiança, sua obsessão não o deixará, no entanto. Ele jogará com as potências ocultas uma espécie de partida de esconde-esconde, ora desembocando em uma mesa vazia, no albergue rural deserto, ora surpreendendo na abertura brusca de uma porta os risos de duas garotinhas que surgem como o Diabo de uma caixa ou os gnomos zombeteiros dos contos de fada. Mas sobretudo, esse filme é um filme de olhares: olhares obstinados e receosos das testemunhas, olhares profissionais dos policiais, do advogado, dos comparsas, olhares de loucura de Vera Milles, olhares de Henry Fonda. Como descrevê-los? São deles, talvez, que jorra mais claramente o significado do filme. E há outras mil belezas, essa majestade ordinária do tom, essas elipses ousadas ou essas lentidões desejadas, mas que não engendram nunca a lassidão, essa cena do espelho quebrado tão brutal e nova na sua decupagem que Hitchcock evocava [2], nos contando recentemente, Stravinsky e Picasso. E depois, o uso que é feito dos sons, e depois a admirável partitura em duas notas de Bernard Hermann, e então a não menos admirável fotografia em preto e branco de Robert Burks, operador titular de Hitchcock...
Conhecemos a história desses alfaiates, vizinhos de rua, que tinham anunciado sucessivamente o primeiro, como o melhor alfaiate da cidade, o outro do país, um terceiro do mundo. Vem um quarto que se contenta escrever: o melhor alfaiate da rua. Deveria então ser suficiente afirmar que esse filme é o mais belo de todos aqueles que filmou Hitchcock. Mas como a causa desse, ainda que seus espectadores sejam cada vez mais numerosos, não foi ainda de todo ganha, acrescentemos por pleonasmo que ele ocupa um primeiro lugar na história do cinema, o qual, falemos novamente, por pleonasmo, ocupa o primeiro lugar na história do nosso tempo graças, precisamente, a filmes como esse.
[1] Na revista Arts n° 617, primeiro de maio de 1957.
[2] Na revista Cahiers du cinéma, n° 62, em agosto de 1956.
O artigo A la hauteur de ses ambitions foi publicado originalmente na revista Arts, n° 618, oito de maio de 1957, e republicado na coletânea Le sel du présent, organizada por Noël Herpe. Tradução: Leticia Weber Jarek.
Maravilhoso. Hitchcock altera seu estilo glamouroso sem trair sua criatividade ou seu talento.
ResponderExcluirO maior! E já leu esses outros dois, caro anônimo : https://vestidosemcostura.blogspot.com/2018/01/a-casa-de-bonecas-do-mestre.html e https://vestidosemcostura.blogspot.com/2019/07/montagem-minha-bela-inquietacao.html
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