Por Éric Rohmer
Antigamente, a pior censura que podíamos fazer a um filme era: “Isto é teatro”. Hoje, seria: “Isto é cinema”.
O cinema moderno deveria temer mais seus próprios chavões do que uma influência externa, como a do teatro. E esta influência, seria ela tão maléfica? Assim dizíamos nos tempos de Pagnol e de Guitry, hoje semi reabilitados. Ela foi, sob o jugo de todos, benéfica nos anos quarenta, quando vinha de Orson Welles e – em menor parte – de Jean Cocteau. Ela desapareceu nos anos sessenta, sufocada pela influência do “cinema-verdade”. E eis que ela reaparece. Nestes anos setenta, eu lhes digo sem adulação, que filmes, na França ou mesmo no exterior, fazem o cinema seguir em frente, mais que os de Maguerite Duras?
Contudo, eu acredito na distinção dos gêneros e de suas especificidades. Que o cinema possa explorar sem perigo o domínio do teatro, não prova que “teatro e cinema, são a mesma coisa”, segundo o gracejo de André Bazin, mas que o último é demasiado maduro para afrontar o primeiro de igual para igual. As diferenças subsistem, na concepção clássica e, mais sutilmente, na concepção moderna de um e de outro. São aquelas que já requentamos mil vezes. Talvez seja em vão procurar outras. Tentaremos de todo modo.
Nós partiremos do texto, e não da forma – mais ou menos frouxa ou culta, cotidiana ou literária – que pode ser assumida aqui e ali, mas do seu conteúdo e, mais precisamente, da quantidade de informação que ele entrega.
A resposta é clara: é o texto de teatro que é o mais rico, pela razão de ser o único, durante a representação, que pode nos ensinar, enquanto os outros elementos do espetáculo, ditos de “mise en scène”, trazem apenas uma ínfima massa de informações em relação à sua. Uma peça lida ou ouvida no rádio perde frequentemente muito de seu charme e de seu impacto, mas pouco de sua clareza, enquanto que a “banda-falada” de um filme é, em geral, insuficiente para permitir que sigamos a história: as imagens e seu encadeamento servem de condutor ao texto e complementam suas informações.
Conhecemos a distinção aristotélica entre o “verossímil” e o “necessário”. Corneille a expôs em seus Discursos e coloca-a em ação, não sem extrapolar. Extrapolando-a nós mesmos, nos permitiremos aplicá-la ao texto e diremos: “É necessário tudo o que, neste, é indispensável à clareza da intriga. É verossímil aquilo que os personagens poderiam dizer entre eles, na situação, sem a preocupação de informar ao público.” Por exemplo, no primeiro verso de Andrômaca, o trecho,
Antigamente, a pior censura que podíamos fazer a um filme era: “Isto é teatro”. Hoje, seria: “Isto é cinema”.
O cinema moderno deveria temer mais seus próprios chavões do que uma influência externa, como a do teatro. E esta influência, seria ela tão maléfica? Assim dizíamos nos tempos de Pagnol e de Guitry, hoje semi reabilitados. Ela foi, sob o jugo de todos, benéfica nos anos quarenta, quando vinha de Orson Welles e – em menor parte – de Jean Cocteau. Ela desapareceu nos anos sessenta, sufocada pela influência do “cinema-verdade”. E eis que ela reaparece. Nestes anos setenta, eu lhes digo sem adulação, que filmes, na França ou mesmo no exterior, fazem o cinema seguir em frente, mais que os de Maguerite Duras?
Contudo, eu acredito na distinção dos gêneros e de suas especificidades. Que o cinema possa explorar sem perigo o domínio do teatro, não prova que “teatro e cinema, são a mesma coisa”, segundo o gracejo de André Bazin, mas que o último é demasiado maduro para afrontar o primeiro de igual para igual. As diferenças subsistem, na concepção clássica e, mais sutilmente, na concepção moderna de um e de outro. São aquelas que já requentamos mil vezes. Talvez seja em vão procurar outras. Tentaremos de todo modo.
Nós partiremos do texto, e não da forma – mais ou menos frouxa ou culta, cotidiana ou literária – que pode ser assumida aqui e ali, mas do seu conteúdo e, mais precisamente, da quantidade de informação que ele entrega.
A resposta é clara: é o texto de teatro que é o mais rico, pela razão de ser o único, durante a representação, que pode nos ensinar, enquanto os outros elementos do espetáculo, ditos de “mise en scène”, trazem apenas uma ínfima massa de informações em relação à sua. Uma peça lida ou ouvida no rádio perde frequentemente muito de seu charme e de seu impacto, mas pouco de sua clareza, enquanto que a “banda-falada” de um filme é, em geral, insuficiente para permitir que sigamos a história: as imagens e seu encadeamento servem de condutor ao texto e complementam suas informações.
Conhecemos a distinção aristotélica entre o “verossímil” e o “necessário”. Corneille a expôs em seus Discursos e coloca-a em ação, não sem extrapolar. Extrapolando-a nós mesmos, nos permitiremos aplicá-la ao texto e diremos: “É necessário tudo o que, neste, é indispensável à clareza da intriga. É verossímil aquilo que os personagens poderiam dizer entre eles, na situação, sem a preocupação de informar ao público.” Por exemplo, no primeiro verso de Andrômaca, o trecho,
... já que eu reencontro um amigo tão fiel,
é absolutamente necessário (ele nos ensina que Orestes e Pílades são amigos e foram separados), mas muito pouco verossímil, já que o interlocutor não precisa dessa informação: ela se dirige apenas ao espectador. O “Sim” inicial, fazendo do resto do verso a continuação de uma conversa supostamente já iniciada, está lá, entre outras razões, para dar a ele esta verossimilhança que lhe falta.
Vemos, assim, que no teatro o necessário tem primazia sobre o verossímil, e que sua presença, mesmo difusa, limita sempre o campo. O diálogo de cinema, ao contrário, não utiliza, nem deve utilizar, o necessário a não ser como último recurso. A informação é apresentada aqui de maneira anódina, sob as aparências do puro verossímil. Ela afeta somente por ricochete um espectador com a guarda alta, no qual a vigilância cresce na mesma medida em que ele se “educa”. Os diálogos de filmes antes dos anos 60 nos pareciam congestionados de um necessário que o cinema moderno transportou para o comentário, o monólogo, ou os sinais gráficos, com uma desenvoltura que também já começa a ficar datada.
Nada fica fora de moda mais rápido que o necessário – se este não for verossímil. Nós estamos, nestes anos setenta, um pouco cansados dos excessos desse último. Para deixá-lo com o campo livre, suprimimos o texto escrito, fizemos os atores falarem “não importa o quê”. Pensamos que desta contingência absoluta nasceria uma nova necessidade, sem referência alguma às “regras” do teatro, sempre sorrateiramente presentes: e, às vezes, isso aconteceu com alegria em Rouch, Godard ou Rivette. O verdadeiro matou o verossímil: o verossímil, tapa-buracos dos dialoguistas profissionais, havia se tornado insuportável. E cá estamos sozinhos, novamente, diante dos rigores do necessário.
Vemos, assim, que no teatro o necessário tem primazia sobre o verossímil, e que sua presença, mesmo difusa, limita sempre o campo. O diálogo de cinema, ao contrário, não utiliza, nem deve utilizar, o necessário a não ser como último recurso. A informação é apresentada aqui de maneira anódina, sob as aparências do puro verossímil. Ela afeta somente por ricochete um espectador com a guarda alta, no qual a vigilância cresce na mesma medida em que ele se “educa”. Os diálogos de filmes antes dos anos 60 nos pareciam congestionados de um necessário que o cinema moderno transportou para o comentário, o monólogo, ou os sinais gráficos, com uma desenvoltura que também já começa a ficar datada.
Nada fica fora de moda mais rápido que o necessário – se este não for verossímil. Nós estamos, nestes anos setenta, um pouco cansados dos excessos desse último. Para deixá-lo com o campo livre, suprimimos o texto escrito, fizemos os atores falarem “não importa o quê”. Pensamos que desta contingência absoluta nasceria uma nova necessidade, sem referência alguma às “regras” do teatro, sempre sorrateiramente presentes: e, às vezes, isso aconteceu com alegria em Rouch, Godard ou Rivette. O verdadeiro matou o verossímil: o verossímil, tapa-buracos dos dialoguistas profissionais, havia se tornado insuportável. E cá estamos sozinhos, novamente, diante dos rigores do necessário.
O romance não tem essas dificuldades. Nele, o casamento do necessário e do verossímil sempre é feito sem problemas. É o seu forte, a sua especialidade. Ele dispõe de um tal arsenal de meios de informações que ele paga esse luxo de, segundo as épocas, renunciar a uma parte deles. Quanto ao verossímil, ele pode dispensá-lo, com esse direito à rápida remodelagem da realidade que lhe confere a escritura, sem essa assombração do verdadeiro absoluto, de suas repetições, de seu balbuciar, de seus silêncios, pelos quais o cinema deve passar, já passou, e de onde ele deverá sair.
Abstração própria da narrativa e de seus mil recursos sintáticos, a relação das palavras ditas pelos personagens operam sobre diferentes planos (no sentido mais concreto do plano de perspectiva) daquilo que tradicionalmente chamamos de “discurso”.
Um é o discurso direto, introduzido de maneira específica no gênero do romance por um sinal tipográfico, as aspas, e uma proposição inserida que designa o locutor. Esta apresentação tem a vantagem de ligar bem o discurso à narrativa [1]. Ela tem o inconveniente de não ser sempre clara, já que, para evitar a monotonia do “disse ele”, “disse alguém” – ou o ridículo dos seus sinônimos, “sobressaltou-se”, “ele gemeu”, etc -, suprime-se o inciso. Qual leitor não teve que, perdido nas réplicas, remontar uma a uma e contá-las, para saber a que personagem atribuí-las? Mas nenhum romancista ama utilizar o procedimento, tão simples do teatro, que consiste em, a cada réplica, preceder em capitais o nome de seu locutor.
Abstração própria da narrativa e de seus mil recursos sintáticos, a relação das palavras ditas pelos personagens operam sobre diferentes planos (no sentido mais concreto do plano de perspectiva) daquilo que tradicionalmente chamamos de “discurso”.
Um é o discurso direto, introduzido de maneira específica no gênero do romance por um sinal tipográfico, as aspas, e uma proposição inserida que designa o locutor. Esta apresentação tem a vantagem de ligar bem o discurso à narrativa [1]. Ela tem o inconveniente de não ser sempre clara, já que, para evitar a monotonia do “disse ele”, “disse alguém” – ou o ridículo dos seus sinônimos, “sobressaltou-se”, “ele gemeu”, etc -, suprime-se o inciso. Qual leitor não teve que, perdido nas réplicas, remontar uma a uma e contá-las, para saber a que personagem atribuí-las? Mas nenhum romancista ama utilizar o procedimento, tão simples do teatro, que consiste em, a cada réplica, preceder em capitais o nome de seu locutor.
Exceção feita, como sabemos, à Condessa de Ségur. Dirigindo-se às crianças, ela pretende lhes facilitar a leitura. Mas esta preocupação, talvez tipográfica na origem, cria um novo plano do discurso, situado bem antes: ela retira o personagem de nós, o isola do fundo da narrativa, confere à sua expressão uma autonomia que nenhuma necessidade intimida, lhe dá todo o tempo de se exprimir à sua maneira, com todas as suas características de linguagem, inclusive (como em Georgey, Froelichein, Cozrgbrelewski) seu sotaque:
JEANNOT
Onde que é isso, meu senhor?
PONTOIS, rindo
Bem falado, meu amigo. O francês mais puro! Onde que é isso? Ali embaixo, no balcão.
JEANNOT
Onde que é isso, o balcão [2] ?
...
E mais pra frente:
...
E mais pra frente:
... Ele senta-se em uma pequena mesa e chama:
“Garçom!”
Um garçom se apressa em acorrer.
“Não, não é você, meu amigo, que eu peço; eu quero ser servido por Simon.”
O garçom se afasta um pouco surpreso, e avisa Simon que um senhor o chama.
SIMON
O senhor me chama? O que temos para servir ao senhor?
ESTRANGEIRO
Sim, Simon, é você que eu pedi; traga-me duas costeletas ao espinafre e um ovo fresco.”
No segundo exemplo, no início, a verossimilhança se une às necessidades de uma narrativa em que a duração é bastante contraída. Em um momento ela se constringe ao extremo – voltaremos a isso – e, após a fala de Simon, se dilata subitamente. O que precede era apenas a introdução. Estamos no coração da cena. Tudo tem seu lugar, mesmo o que é inútil. O pedido do estrangeiro, “duas costeletas ao espinafre…”, não esclarece nem a história nem os modos do personagem. É um puro tributo pago à verossimilhança [3], que faz saltar, quase hiperrealisticamente, o personagem para fora da tela.
Um outro interesse dessa passagem é quando aparece, mesmo que fugazmente, um terceiro tipo de discurso neste momento assinalado, quando o garçom “avisa Simon que um senhor o chama”. É o “discurso indireto”, excepcional nos textos da Condessa, pois muito abstrato para seu público infantil. Ele integra a palavra inteiramente à narrativa e em seu tempo, e permite que ela permaneça no plano de fundo, já que ela não nos interessa em si, mas como veículo de informação. E o texto, do início ao fim, pode ser apenas “necessário”, sem chocar a verossimilhança.
Desses três planos do discurso, o teatro e o cinema só tem o segundo mencionado, o “hiperdireto”, e é uma pena.
Passa então no palco, onde reina, ao que parece [4], um eterno presente sem nuances. Mas essas nuances são essenciais ao filme, e é incômodo integrar a uma ação que se desenrola, quando é o caso, no passado (às vezes até mesmo o passado do ensaio) um diálogo que, no tempo em que é dito, nos traz de volta inevitavelmente ao presente. O cinema mudo estava mais à vontade: as passagens de “atalhos” nos filmes falados se inspiram ainda em suas lições – e tornam-se datadas.
Contudo, um exame um pouco mais atento revelaria, em todo filme, a existência discreta, mas certa, dos três tipos de discursos. Para vê-los, eu diria, basta acreditar, e precisamente não acreditamos, como nos mostra a maneira aberrante com que ainda escrevemos os roteiros. Eu não falo da disposição em duas colunas (imagem e som), hoje abandonada: mas apresentar a palavra, seja ela qual for, esteja ela onde estiver, sempre como no “teatro”, não corresponde à variedade de impressões que recebe o espectador durante a projeção de algo filmado.
No segundo exemplo, no início, a verossimilhança se une às necessidades de uma narrativa em que a duração é bastante contraída. Em um momento ela se constringe ao extremo – voltaremos a isso – e, após a fala de Simon, se dilata subitamente. O que precede era apenas a introdução. Estamos no coração da cena. Tudo tem seu lugar, mesmo o que é inútil. O pedido do estrangeiro, “duas costeletas ao espinafre…”, não esclarece nem a história nem os modos do personagem. É um puro tributo pago à verossimilhança [3], que faz saltar, quase hiperrealisticamente, o personagem para fora da tela.
Um outro interesse dessa passagem é quando aparece, mesmo que fugazmente, um terceiro tipo de discurso neste momento assinalado, quando o garçom “avisa Simon que um senhor o chama”. É o “discurso indireto”, excepcional nos textos da Condessa, pois muito abstrato para seu público infantil. Ele integra a palavra inteiramente à narrativa e em seu tempo, e permite que ela permaneça no plano de fundo, já que ela não nos interessa em si, mas como veículo de informação. E o texto, do início ao fim, pode ser apenas “necessário”, sem chocar a verossimilhança.
Desses três planos do discurso, o teatro e o cinema só tem o segundo mencionado, o “hiperdireto”, e é uma pena.
Passa então no palco, onde reina, ao que parece [4], um eterno presente sem nuances. Mas essas nuances são essenciais ao filme, e é incômodo integrar a uma ação que se desenrola, quando é o caso, no passado (às vezes até mesmo o passado do ensaio) um diálogo que, no tempo em que é dito, nos traz de volta inevitavelmente ao presente. O cinema mudo estava mais à vontade: as passagens de “atalhos” nos filmes falados se inspiram ainda em suas lições – e tornam-se datadas.
Contudo, um exame um pouco mais atento revelaria, em todo filme, a existência discreta, mas certa, dos três tipos de discursos. Para vê-los, eu diria, basta acreditar, e precisamente não acreditamos, como nos mostra a maneira aberrante com que ainda escrevemos os roteiros. Eu não falo da disposição em duas colunas (imagem e som), hoje abandonada: mas apresentar a palavra, seja ela qual for, esteja ela onde estiver, sempre como no “teatro”, não corresponde à variedade de impressões que recebe o espectador durante a projeção de algo filmado.
É muito natural que a tentação atinja o roteirista, para melhor fechar a realidade definitiva do filme, de usar em certas passagens artifícios “romanescos”, como as aspas ou o estilo indireto. Tentação à qual eu, de minha parte, cedi ao preparar os meus Contos Morais. Eu não o fiz por preguiça, deixando para mais tarde a preocupação de desenvolver uma cena que “me aborrecia” – se me aborrecia desenvolvê-la, era porque ela não tinha lugar enquanto cena, e era necessário então deixá-la com o seu papel e aparência de junção. Cheguei mesmo a rabiscar em estilo direto certas sequências de exposição ou transição, e constatar que o tom e a duração que elas teriam “de maneira verossimilhante” na vida ultrapassavam os limites das suas funções estritas, no interior da economia da narrativa. Para eliminar o acessório com maior segurança, eu tive que apelar para o estilo indireto, e me contentei, no dia da filmagem, em colocar a passagem em “direto”. Assim, no prólogo de Amor à Tarde, encontramos no “papel”:
Quando Fabienne, uma das duas secretárias, chega, estou instalado na máquina batendo uma carta urgente. Ela se desculpa por estar atrasada, mas falo que sou eu que estou adiantado. Ela propõe me substituir. Eu respondo que ainda não tenho o texto definido na cabeça, e que deixarei ela bater de novo, se a datilografia estiver ruim. E que é melhor ela procurar um documento nos arquivos.
Na banda-falada do filme, isso se torna:
Eu: Bom dia, Fabienne.
Fabienne: Estou atrasada?
Eu: Não, sou eu que estou adiantado.
Fabienne: Você quer que eu bata?
Eu: Não, obrigado, eu mesmo faço. Se tiver muitos erros, você bate de novo.
Fabienne: Bom, então vou terminar o dossiê do 20.
A transposição, eu sei, está longe de ser fiel. O segundo texto é mais concreto (“Você quer que eu bata?”), mais escasso de informações (“Eu respondo que ainda não tenho o texto definido na cabeça” desaparece), mais rico de um verossímil sem necessidade (“o dossiê do 20” é homólogo do “duas costeletas ao espinafre” do Sr. Abel).
Mas a passagem pelo indireto permitiu dar ao filme um tom que, na visualização, correspondia mais àquele do primeiro texto que do segundo. Coisa normal, o primeiro sendo feito para leitura, e o segundo para ser entendido em um contexto fílmico que falta aqui.
Nas novelas de Kleist, a parte do estilo indireto é enorme. Todas as pessoas, na Alemanha, que eu conversava a respeito do meu projeto de filmar A Marquesa d’O..., livro em mãos, sem outro roteiro que o próprio texto, numa preocupação com o respeito absoluto [5], levantavam os braços ao céu e me diziam: “Mas o que você fará com o estilo indireto?” Ao que eu respondia que eu me contentaria em remover os subjuntivos, que, em alemão, o caracteriza. Meus interlocutores, então, me explicavam com condescendência, que existe, entre os dois estilos, muito mais que uma diferença de modo verbal, que as palavras utilizadas, a forma das frases, de pensar, não eram as mesmas. Eu replicava que isso também valia para o francês, e não havia me impedido de escrever certas partes dos Contos em estilo indireto, para transcrevê-las em seguida, como eu tinha feito aqui, “Sim, eles diziam, mas Kleist, se ele utiliza o indirekte Rede, é porque tinha suas razões.”- “É por isso que eu tenho as minhas razões para não mudar nada. É precisamente porque ela contém muito discurso indireto que esta história é interessante e fácil de filmar, pois ela própria é um roteiro avant la lettre. Tudo em estilo direto, seria “teatro”. E os diálogos mais difíceis de falar, já que são mais ou menos teatrais, são, certamente, os diretos.”
A filmagem confirmou minhas previsões, além do que eu esperava. As passagens em estilo indireto, mais sóbrias, menos marcadas pelas apóstrofes e metáforas da época, pareciam um verdadeiro diálogo de filme. Às vezes, é verdade, a frase, pelo seu comprimento, tomava um caminho que poderia parecer exageradamente literário. Aquela, por exemplo, do anúncio da falsa morte do conde:
O mensageiro que trazia a nova o viu, por seus próprios olhos, mortalmente ferido no peito, transportado para uma aldeia de onde sabemos, por fonte segura, que no mesmo instante em que aqueles que o carregavam o deixaram, ele morreu.
O mensageiro que trazia a nova o viu, por seus próprios olhos, mortalmente ferido no peito, transportado para uma aldeia de onde sabemos, por fonte segura, que no mesmo instante em que aqueles que o carregavam o deixaram, ele morreu.
Cortar a frase seria se aventurar no natural, um natural de dois séculos atrás, que me era desconhecido e que eu não sabia manipular. Ao contrário, a continuidade do texto, que, em parte fora-de-campo, corre sobre toda a cena, dá a ela seu valor de cena de transição. E depois, é tão inverossímil que nesta circunstância grave, um soldado, um mensageiro, se exprima com a concisão de um relato?
No entanto, sobre uma passagem feita de pequenas frases vivas, os atores, até então magníficos, subitamente tropeçavam. É o momento em que a mãe e a filha, de volta do campo, observam a chegada do pai que vem fazer uma reparação honorável:
Uma hora depois, ela retorna, a face em chamas: “Não, é um verdadeiro São Tomás, diz ela com um ar de satisfação interior, um verdadeiro São Tomás incrédulo! Não precisei de uma hora de relógio para o convencer!? Mas agora ele está sentado chorando. – Quem? pergunta a marquesa. – Ele, responde a mãe. Quem, senão aquele que tem os maiores motivos? – Não o papai? exclamou a marquesa. – Como uma criança, replicou a mãe, se bem que, se eu não tivesse que limpar as lágrimas dos meus olhos, eu teria rido assim que eu tivesse atravessado a porta. – E isso por minha causa? perguntou a marquesa. E ela levantou-se. - E eu continuo aqui?... – Não nos moveremos, disse Mme de G.”, etc.
Na medida em que o ensaio seguia seu curso, nós ficávamos cada vez mais empacados nesse trecho. Eu sabia que a evocação de uma ação situada fora do campo cênico, e a aparição esperada do pai pela porta do fundo, não era suficiente para criar esta atmosfera sufocante... De repente, entendi: “É o estilo direto! Aí está porque é tão difícil de falar!” Não aquele estilo direto dos grandes discursos patéticos, coloridos de uma eloquência sempre atual, mas o de uma busca do verossímil tal como o compreendemos na cena dos anos 1800, e que hoje nos parece ingênuo. Mas eu tinha resolvido usar todo o texto. Esse “natural” deveria ser efetivo com o público, como o artificial havia sido em outras sequências. Era mais difícil, mas conseguimos, eu creio, ao recusar cair em suas armadilhas: através de uma dicção mais sensível à música das palavras que ao seu sentido, e que reestabelecia, nesta cena falsamente coloquial, a majestade do estilo culto.
Meu próximo filme, O Romance de Perceval, de Chrétien de Troyes, também pretendo fazer com o “livro nas mãos”. Aqui, pouco de discurso indireto, mas muito de direto, ligado por uma narrativa na qual nenhuma imagem, nenhuma montagem cinematográfica podem substituir o sabor. Eu o conservarei como tal, e o farei ser dito não somente pelos recitadores, mas também pelos protagonistas – que falarão deles mesmos na terceira pessoa, e serão incumbidos, de vez em quando, desse “disse ele” que não tem espaço tanto no cinema quanto no teatro. Mas, de qualquer forma, que sabemos nós?
PERCEVAL
Faz-me cavaleiro, disse ele
Senhor rei, pois partir eu quero.
Faz-me cavaleiro, disse ele
Senhor rei, pois partir eu quero.
[1] E dar a ela esta dimensão que nós chamamos “épica”. Como a epopeia da qual ela descende, o romance é uma arte da expressão oral. Não tem muito tempo nós fazíamos ainda, entre adultos, a leitura em voz alta.
[2] João que chora e João que ri
[3] O que é mais irritante para um diretor, durante a filmagem de uma cena de café, que a necessidade que encontra, de ter que servir, por “verossimilhança”, bebidas precisas a seus personagens, com todo o seu cortejo de conotações para as quais não há cura e que o farão ser acusado de pagar tributo à publicidade clandestina. No cinema, a verossimilhança se torna uma necessidade, a primeira de todas, e portanto uma servidão, em que é natural querer libertar-se de seu jugo.
[4] Mencionemos no entanto o discurso lírico, que se manifesta de maneira sensivelmente diferente no coro da tragédia antiga – em que corresponde a uma suspensão do tempo entre as peripécias do drama, e possui uma certa função informativa, ao mesmo tempo que uma verossimilhança de princípio - , e a ária da ópera, que é estagnação, hipertrofia do instante nos pontos fortes da ação, em que o poder da informação e a verossimilhança podem ser tomados por nulos. Surge a necessidade, nos dois casos, de uma outra ordem que aquela da comunicação: o encantamento.
O lirismo também tem, como sabemos, o seu lugar no cinema, ainda que restrito e frequentemente contestado em nome da “pureza”. De qualquer forma ele está, muito mais que no teatro, ligado ao movimento e à dança.
Alguns autores de teatro tentaram variar o discurso através do emprego de diferentes “métricas”. As estrofes de Cid ou de Polyeucte correspodiam simultaneamente a uma suspensão e a um alongamento lírico do tempo. Em La petite Catherine de Heilbronn, Kleist alterna prosa e verso, contrariamente àquilo que podíamos esperar, o verso é empregado para as cenas mais movimentadas, em que o diálogo é mais fragmentado, mais cotidiano, e a prosa para os discursos de um vôo quase lírico.
[5] Na verdade meu roteiro, redigido por razões de ordem diplomática (base de discussão com os produtores e os técnicos), continha, colado atrás de cada folha, a página correspondente do romance: Só ela me serviu.
Le film et les trois plans du discours: indirect/direct/hyperdirect foi publicado originalmente na revista Cahiers Renaud-Barrault nº 96 em outubro de 1977 e republicado na coletânea Le goût de la beuté, organizada por Jean Narboni. Tradução: Cauby Monteiro.
[2] João que chora e João que ri
[3] O que é mais irritante para um diretor, durante a filmagem de uma cena de café, que a necessidade que encontra, de ter que servir, por “verossimilhança”, bebidas precisas a seus personagens, com todo o seu cortejo de conotações para as quais não há cura e que o farão ser acusado de pagar tributo à publicidade clandestina. No cinema, a verossimilhança se torna uma necessidade, a primeira de todas, e portanto uma servidão, em que é natural querer libertar-se de seu jugo.
[4] Mencionemos no entanto o discurso lírico, que se manifesta de maneira sensivelmente diferente no coro da tragédia antiga – em que corresponde a uma suspensão do tempo entre as peripécias do drama, e possui uma certa função informativa, ao mesmo tempo que uma verossimilhança de princípio - , e a ária da ópera, que é estagnação, hipertrofia do instante nos pontos fortes da ação, em que o poder da informação e a verossimilhança podem ser tomados por nulos. Surge a necessidade, nos dois casos, de uma outra ordem que aquela da comunicação: o encantamento.
O lirismo também tem, como sabemos, o seu lugar no cinema, ainda que restrito e frequentemente contestado em nome da “pureza”. De qualquer forma ele está, muito mais que no teatro, ligado ao movimento e à dança.
Alguns autores de teatro tentaram variar o discurso através do emprego de diferentes “métricas”. As estrofes de Cid ou de Polyeucte correspodiam simultaneamente a uma suspensão e a um alongamento lírico do tempo. Em La petite Catherine de Heilbronn, Kleist alterna prosa e verso, contrariamente àquilo que podíamos esperar, o verso é empregado para as cenas mais movimentadas, em que o diálogo é mais fragmentado, mais cotidiano, e a prosa para os discursos de um vôo quase lírico.
[5] Na verdade meu roteiro, redigido por razões de ordem diplomática (base de discussão com os produtores e os técnicos), continha, colado atrás de cada folha, a página correspondente do romance: Só ela me serviu.
Le film et les trois plans du discours: indirect/direct/hyperdirect foi publicado originalmente na revista Cahiers Renaud-Barrault nº 96 em outubro de 1977 e republicado na coletânea Le goût de la beuté, organizada por Jean Narboni. Tradução: Cauby Monteiro.
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