O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Convenção, rotina intelectual e preguiça na escolha dos “doze melhores filmes de todos os tempos” em Bruxelas



Por Éric Rohmer

No último 18 de setembro, a Cinemateca belga tornou pública a lista dos doze melhores filmes de todos os tempos.

Essa lista, elaborada durante dez meses, é o resultado dos votos de cento e dezessete historiadores de cinema designados pelo Bureau international de la recherche historique cinématographique, provenientes de 26 países. Eis os doze filmes eleitos:

1. O encouraçado Potemkim (Bronenossets “Potiomkine”),
S. M. Eisenstein, U.R.S.S., 1925, 100 votos de 117.

2. A corrida do ouro (The Gold Rush),
Charles Chaplin, U.S.A., 1925, 85 votos.

3. Ladrões de Bicicleta (Ladri di biciclette),
V. de Sica, Itália, 1948, 85 votos.

4. A paixão de Joana d’Arc (La passion de Jeanne d’Arc),
Carl Dreyer, França, 1928, 78 votos.

5. A grande ilusão (La grande illusion),
Jean Renoir, França, 1937, 72 votos.

6. Ouro e maldição (Greed),
Erich von Stroheim, U.S.A., 1924, 71 votos.

7. Intolerância (Intolerance),
D. W. Griffith, U.S.A., 1916, 61 votos.

8. A mãe (Mat),
Vsevolod Pudovkin, U.R.S.S., 1926, 54 votos.

9. Cidadão Kane (Citizen Kane),
Orson Welles, U.S.A., 1941, 50 votos.

10. Terra (Zemlya),
Aleksandr Dovzhenko, U.R.S.S., 1930, 47 votos.

11. A última gargalhada (Der letzte Mann),
F. W. Murnau, Alemanha, 1924, 45 votos.

12. O gabinete do doutor Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari),
Robert Wiene, Alemanha, 1919, 43 votos.

Esses doze filmes serão projetados na Exposição de 12 a 18 de outubro, dois filmes por dia.

Um júri, tido como júri de segundo grau, composto de sete jovens cineastas de reputação internacional, terá como missão classificar esses filmes de acordo com seu valor atual. Aceitaram, até o presente momento, fazer parte desse júri: Robert Aldrich (Estados Unidos), Michelangelo Antonioni (Itália), Alexandre Astruc (França) e Juan Antonio Bardem (Espanha).

Essa última cláusula denota, nos organizadores desse douto divertimento – o qual não vale nem mais nem menos do que todos nossos jogos modernos de erudição que estão em vias de tomar o lugar do bridge ou do pigeon-vole – uma modéstia e uma prudência louváveis. Assim como, talvez, uma parca confiança no modo de votação empregado, que eu desaprovaria não por trair alguma verdade de princípio, mas por refletir mal a opinião geral dos votantes. Não teria sido mais sábio primeiramente levar em conta a noção de autor, e designar então a obra mais popular de cada cineasta eleito? Isso teria, pelo menos, corrigido a discordância entre a lista oficial por obra e esta, não-oficial, por autor, que nos revelam em apêndice:

1. Charles Chaplin, 250 votos; 2. S. M. Eisenstein, 168 votos; 3. René Clair, 135 votos; 4. Vittorio de Sica, 125 votos; 5. D. W. Griffith, 123 votos; 6. John Ford, 107 votos; 7. Jean Renoir, 105 votos; 8. Carl Dreyer, 99 votos; 9. Erich von Stroheim, 93 votos; 10. Vsevolod Pudovkin, 91 votos; 11. F. W. Murnau, 90 votos; 12. Robert Flaherty, 82 votos. 


Nota-se que os nomes de Orson Welles, de Dovzhenko, de Robert Wiene não são mencionados na segunda, ao passo que a primeira não comporta nenhuma obra nem de Clair, nem de Ford, nem de Flaherty. Em qual lista acreditar então? Nem em uma nem em outra, nem em um compromisso entre as duas. Produziu-se esta coisa paradoxal de que os cineastas mais fecundos foram prejudicados por sua própria fecundidade. Se Einsenstein tivesse realizado um filme que disputasse em glória – legítima ou não – com o Potemkim, o Potemkim não teria sido o primeiro. O que diriam de uma lista de melhores romances franceses em que Dominique, ou mesmo La princesse de Clèves, viessem à frente do estudo mais popular da Comédia humana?

Esse método falho pode explicar também o desequilíbrio entre o número de filmes mudos coroados e o de falados: nove contra três. Acredito que a proporção de filmes recentes, em cada lista individual, era mais forte, mas entra-se mais facilmente em acordo a respeito de certos títulos da época muda, decantados pela idade, do que da falada, rica em tentações diversas.



Mas aceitemos a regra do jogo e, ainda que por um breve momento, curvemo-nos à decisão do concílio. Há uma cor comum, que pende fortemente ao cinza, a todas as obras da lista. Não digo isso por conta da falta de filmes coloridos ali. Essas obras são não apenas sérias, mas austeras (e mesmo Carlitos acabou perdendo seu brilho ao passar pela lupa sociológica ou metafísica). É muito mais questão de “grandes interesses” (ambição, destino das coletividades, política) do que de amores passageiros – enquanto que poderíamos encontrar as mais belas obras ocupadas na pintura de paixões. Não me queixarei disso, e irei usá-lo, pelo contrário, como argumento contra quem insiste em tachar de frívola a sétima arte. Esse catálogo evoca um pouco mais o dia filtrado do museu do que, sem dúvida, desejavam aqueles que participaram de sua elaboração. Mas, ainda assim, não resmunguemos: é como manda o figurino.

Outra particularidade a inscrever no rol desse florilégio: a maior parte das escolas cinematográficas tem ali seu representante: a americana dos pioneiros com Griffith e Chaplin, a alemã dos expressionistas e do Kammerspiel com Murnau e Wiene, a russa com Eisenstein, Pudovkin e Dovzhenko, a escandinava com Dreyer, o realismo francês com Renoir, a revolução americana com Orson Welles, o neorrealismo italiano com De Sica, e enfim Stroheim que é sozinho uma escola, posto que quase não há cineasta que não o reinvindique, mais ou menos. Nenhuma grande corrente, eu creio, foi esquecida, como é esperado numa empreitada de historiadores. À exceção – e essa ausência é muito lamentável – da escola documentarista e seu mestre inconteste, Robert Flaherty, mencionado no final da classificação por autores.

À luz de hoje, a lista faz aparecer seu principal defeito de proporção: atribuir três assentos à escola russa é ser-lhe, eu creio, apesar de tudo que se possa pensar de bom a seu respeito, demasiado generoso. Enquanto a glória de Eisenstein se manteve sob os ataques do tempo, a de Pudovkin está claramente em baixa, e seria bom ver o reconhecimento desse declínio. Quanto a Terra, de Dovzhenko, os cinéfilos de nossa geração não conseguem de fato compreender como essa obra afetada e sem fôlego pôde ser tida, por um tempo, junto de muitos espíritos sensatos, o “nec plus ultra” da arte cinematográfica. E, enquanto Eisenstein nunca pôs um centímetro de sua ambição à venda, as últimas produções de nossos dois compadres, O retorno de Vassily Bortnikov e Michurin, que rivalizam na insignificância, nos dissuadem de admiti-los num tão augusto areópago. Teríamos rapidamente encontrado seus substitutos: Nanook, o esquimó, ou mesmo O homem de Aran, de Flaherty, no lugar de Terra, e, no lugar do acadêmico A mãe, por que não este filme que, exibido recentemente na Cinemateca, fez com que toda a plateia, sem nenhum tipo de ensaio, dissesse: “É sem dúvida um dos doze maiores filmes da história do cinema”, já que seu caráter de obra-prima parecia inscrito em filigrana sob cada uma de suas imagens: Contos da lua vaga, do japonês (o primeiro país produtor de filmes do mundo não teria também direito a seu embaixador?) Kenji Mizoguchi?

Tendo arrancado dois títulos, eu teria ainda menos escrúpulo a eliminar um terceiro. E aqui eu não apenas me surpreendo mas me indigno ao ver que foram necessários quarenta e três especialistas para incluir na lista das listas o tristemente célebre Caligari, pai execrável de todos os estetismos. É de se pensar que eles não o reveem há trinta anos! Se é necessário – e sem dúvida o é – designar uma obra “à margem”, coberta de lirismo e magia, como teria sido mais satisfatória a presença do sempre jovem Atalante, de Jean Vigo!




Acredito que, depois desses retoques, a lista não está mais com uma cara tão ruim. Talvez ainda me seja possível livrá-la de alguns outros grãos de poeira livresca, sem contudo invocar meus gostos pessoais. Dentro de dez anos, tenho certeza que o genial Paisà, de Rossellini, terá substituído o cansado Ladrões de bicicleta. Garanto igualmente que F. W. Murnau, penúltimo em ambas as listas, terá subido alguns degraus. Mas não exijamos demais: há não muito tempo, esse cineasta que nossa geração unânime considera como o grande entres os grandes estava menos cotado, não somente do que um Lang, mas do que um Pabst ou Lupu Pick. É fato que A última gargalhada não é, de suas obras, a mais apta a revelar, se não a profundidade, pelo menos a universalidade de seu gênio: mas eu não hesitaria em inscrever Aurora, ou Tabu, como primeiro de minha lista.

A mesma observação poderia ser feita sobre A grande ilusão, de Jean Renoir. Aqui ainda, nossos historiadores se pronunciaram em favor do Renoir mais público, em detrimento do mais secreto – secreto como, aliás, deixa de sê-lo a cada dia. Seria ótimo que a tal lista proclamasse a promoção de A regra do jogo, que alguns imbecis ainda maldizem, e que, sendo a obra mais bem-sucedida, até hoje, do cinema falado, forneceria, assim como os dois Murnau, um forte e defensável candidato ao primeiro lugar.

Quem não é frequentador das cinematecas poderá talvez me acusar de discutir bobagens. Sim, eu sei, um de meus colegas escreveu, na semana passada, que essa lista não significava nada e que ele próprio poderia propor outros duzentos filmes. Entretanto, mesmo que se trate de um jogo, não é assim tão inofensivo como um leigo poderia pensar. No círculo, que cresce a cada dia, dos cineclubes, uma bolsa de valores cinematográficos sempre soube se manter presente. Não é inútil que, de tempos em tempos, uma sanção oficial seja fornecida, assim como se publica a classificação dos melhores boxeadores ou tenistas. E é sobre o solo instável dessa perpétua feira de obras-primas que se constrói a base da verdadeira história do cinema a qual, assim como a de cada uma das outras artes, só pode se fundar sobre a ideia de valor, de hierarquia.

Muitos bons espíritos se ofendem ao ver os pedantes que talham a carne viva de um cinema por muito tempo considerado, de acordo com as palavras de René Clair, como a “arte do presente” [1]. Mas enfim, se já o foi, não o é mais, hoje quando florescem em toda parte os cineclubes, as reprises e as retrospectivas, quando, mesmo na América, a televisão pôde assentar parte de seu privilégio sobre um tanto de filmes antigos, cedidos a preços baixos pelos grandes estúdios, coisa de que agora se arrependem amargamente. Pois não seria uma das características mais modernas de nosso século esse furioso interesse que ele concede a tudo que remete ao passado, a serviço do qual estão, em grande parte, empregadas as novas armas da edição, da reprodução fotográfica ou do disco e, recém-chegada, da TV?

[1] Cf. Films, novembro de 1922.

Convention, routine intellectuelle et paresse dans le choix des “douze meilleurs films de tous les temps” à Bruxelles foi publicado originalmente na revista Arts nº 690 em 1º de outubro de 1958 e republicado na coletânea Le sel du présent, organizada por Noël Herpe.Tradução: Leodoro Camilo-Fernandes.

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