Por Jean-Pierre Oudart
1) Infância Nua (L'Enfance Nue, 1968) é um desses filmes modernos, muito raros que, à força de recusar os poderes mais do que nunca afirmados da montagem, de certa ideia fixa de montagem arraigada numa fé absoluta na onipotência da atração sintagmática das imagens, à força de renegar o poder do cinematógrafo em proveito de uma exploração (limitada, alguns dirão), imagem após imagem, dos poderes reveladores tão-somente do "cinema", da tomada imóvel, nem distanciada nem cúmplice, terminam por colocar (de modo completamente implícito, mas com violência extrema) o problema da montagem-ao-acaso (da vida mais que da filmagem, isto é que é singularmente novo), que não possui mais nada de "discursivo", quase nada de "narrativo" e nada, certamente, de "existencial" (sobretudo nas cenas rodadas em campo-contracampo), que deve, portanto, extrair seu poder de algo além desses "chavões" de indução, de dedução (ou de sedução) cinematográfica, os quais adoraríamos se fossem, enfim e para sempre, suprimidos.
2) Os poderes reveladores da tomada, sabemos de onde procedem: do poder (do defeito) que seguramente não corre o risco, com Pialat, de recuperar-se através do estetismo atual, do poder que o cinema tem de nos entregar do mais familiar cotidiano uma imagem fantástica completamente desconotada do mesmo cotidiano, cuja carga afetiva não está mais presente que pela sua ausência. Penso aqui em Bresson, mas para logo aperceber-me que Pialat procede de modo completamente diferente. Pois enquanto Bresson lida com a presença dessa ausência (esteticamente reforçada pela neutralidade dos gestos, dos olhares, da voz) para criar uma relação significante e emocional entre imagens das quais sabe, ou das quais espera que, malgrado e graças à sua neutralidade, o espectador às receberá enfim como mensagens fortemente conotativas, Pialat faz como se (e como se nisto não houvesse artifício) o espectador as recebesse de partida como imagens “naturais” normalmente conotadas; e recusando fazer da conotação possível ou oculta de suas imagens o nó de sua montagem (como faz Bresson) ele deixa-a até o fim implícita, no limite do insustentável: se a cena da confrontação, em campo-contracampo, das duas crianças e dos pais de criação é mais (e menos) que desconcertante, é que o cinema e o cinematógrafo foram levados aqui a revelar uma potência de neutralização, de desenraizamento, de aberração de tal modo escandalosa que ela obriga (mas somente depois, fora do filme, e não como em Bresson, durante ou ao termo do processo de sua leitura) o espectador, aflito em ser levado, sem aliás a mínima violência, tão longe do ponto de vista do sentido, a situar, com a ajuda de uns pobres indícios que o cineasta oferece em toda sua incerteza e ambiguidade, o sentido, ou seja, a comunicação, o amor entre os seres (pois enfim trata-se de um dos raros grandes filmes de amor) como necessariamente possíveis, para além da ficção, do filme.
3) Enquanto que, em Bresson, a questão do sentido é colocada e resolvida esteticamente no interior do filme (no plano semântico, o rompimento do enunciado, a decalagem da leitura da imagem conotada e denotada, a recuperação, inevitavelmente retardada no cinema, da conotação, para além desse rompimento; os atrasos da significação sendo utilizados, quase sempre e admiravelmente, aliás, como artifícios destinados a apagar-lhes, encobrir), o cinema de Pialat não busca mascarar aquilo que nada mais é que o negativo da vida, que os signos que ele nos propõe não são senão os indícios negativos do sentido, dos sentidos da vida.
Cinema deliberadamente não-suturado, aberto (sonho com Mizoguchi, em seus momentos mais belos), que não cessa de criar sua vacuidade, irrecuperável pelos semânticos pois que o que diz silenciosamente, e que é impossível não ser ouvido, não lhes compete.
Cinematografia verdadeiramente arriscada [hasardeuse] que desfaz o objeto cinematográfico na medida em que este se constrói, abrindo entre cada plano um vazio que o imaginário do espectador não é jamais autorizado a preencher e que, assim, sugere (impõe), para além, a questão de um sentido possível, infinitamente acidental [hasardeux] e necessário, pois que de outro modo a vida não seria possível, questão que tal cinema tem sozinho, e somente, o poder e o direito de colocar: pois todo acréscimo de significação cinematográfica, todo movimento de câmera, todo arranjo sintagmático que dispensaria mais que o mínimo de clareza narrativa comprometeria irremediavelmente sua pura negatividade.
Au Hasard Pialat, foi originalmente publicado na revista Cahiers du Cinema, n° 210, março de 1969. Tradução: Eduardo Savella.