O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Paul Vecchiali apresenta Réquiem para uma mulher



Paul Vecchiali gentilmente nos concede uma apresentação via skype de um de seus melhores filmes, "Réquiem para uma mulher" (Corps à Coeur, 1979), com Hélène Surgère e Nicolas Silberg, para a Mostra Mulheres Mulheres, realizada pelo Vestido sem costura na Cinemateca de Curitiba em dezembro de 2019.

Registro: André Schaefer, Leodoro Camilo-Fernandes e Miguel Haoni
Tradução: André Schaeffer e Leodoro Camilo-Fernandes
Legenda e edição: Eduardo Savella

Uma mulher descasada, de Paul Mazursky (1978) (fragmento)



Por Murielle Joudet


Woman’s picture e comédia romântica

Uma mulher descasada é belo na sua aridez paradoxalmente acolchoada, nessa maneira que ele tem de gozar do seu mal-estar, de se lamentar de estar vivo – característica importante do solteiro. Há o trauma, típico do woman’s picture, que chega rápido e abandona Erica numa zona cinzenta: ao perder seu marido, ela perde seu próprio reflexo e como todo grande woman’s picture é nesse momento, nesse momento sem amor que precede a traição que uma definição do feminino pode nos interessar: isolar o feminino longe do masculino e olhar o que ele pode bem se parecer.

Notaremos, de passagem, o título pleno de negatividade: An unmarried woman, lembrando a Unknown woman de Ophuls, há nesse título uma parte de orgulho e de reivindicação, e então, algo próprio aos títulos dos woman’s pictures: o ato de designar uma mulher, de isolar uma trajetória (Norma Rae, Annie Hall, Wanda, Three women, Another woman). Contudo, a intransigência do classicismo (isolar o feminino a todo preço) se perde aqui em proveito das conclusões da comédia romântica e de uma forma de compromisso fechado com o realismo psicológico: a heroína precisa ser amada, depois de uma longa passagem no vazio, ela reencontra o amor.

Mazursky, biocineasta

Essa sábia mistura de problemas indissociavelmente sociais e amorosos acaba arrancando o woman’s picture da sua essência intimamente melodramática para o levar a uma forma de prosaísmo, estamos aí num tratamento que se aproximaria mais de uma forma de cinema terapêutico que convive com a retórica otimista do self-improvment. Poderíamos forjar o termo biocinema e qualificar Mazursky de biocineasta na medida em que o afresco romanesco, por vezes executado durante décadas, do woman’s picture concerne daqui pra frente um momento muito curto da vida de uma mulher e se focaliza na gestão da sua vida privada – o amor sendo uma das categorias dessa gestão.



Os melodramas hollywoodianos se passavam num clima etéreo, no limite do abstrato, a pobreza e a riqueza são aí tratadas abstratamente, como cenários. An unmarried woman é um “zeitgeist movie” na medida em que o retrato das mulheres estabelece, por contraste, aquele da sociedade. Nós percebemos à que ponto uma série como Sex and the city deve enormemente ao filme de Mazursky: o grupo de amigas que rodeia Erica obviamente inspirou o bando de amigas de Carrie Bradshaw. É o mesmo desencanto feminino que se lê nos rostos: as mulheres, feridas, mas fortes, por toda a sua experiência junto dos homens e de décadas de cinema americano, desconfiam deles ao mesmo tempo em que percebem dolorosamente que precisam dos homens, que só falam deles. Todas as discussões se fazem neste vai-e-vem entre atração e repulsão (estamos numa relação viciosa), e novamente Mazursky tem algo do visionário que dá, mais do que nenhum outro, a experiência de uma situação de celibato moderno.

A solteira e a solteirona

Exceto que a solteira substituiu a solteirona. A solteirona do classicismo hollywoodiano tinha para si que reivindicava heroicamente um estado considerado como marginal. Vendo os woman’s pictures da época surpreende-nos constatar a fraqueza dos personagens masculinos. É preciso compreender aqui uma outra acepção do woman’s pictures como filme reservado às mulheres, onde os homens não são nada além de pálidas figuras que atravessam o filme temporariamente. A não-conjugalidade poderia então ser compreendida positivamente, poderíamos escolher a solidão de um gesto vitorioso. Com Mazursky aparece a ideia do celibato como estado de marginalidade temporária, mas vertiginoso (porque rico de possibilidades e ainda assim inquietante) que fará todo o mel ideológico de Sex and the city.

A solteira, ao contrário da solteirona, passa a estar numa relação de flerte permanente com o sexo masculino: uma vez que Erica é deixada por seu marido, New-York se torna um campo de caça. Mais tarde é Carrie Bradshaw que considerará New-York como “a cidade de dez milhões de solteiros”. Esta é talvez toda a diferença entre a solteirona e a solteira: a primeira exprime sua recusa em estar no mercado do amor e do sexo, ela defende uma definição do feminino que se definiria longe dos homens, sua vida se passará fora do amor conjugal, enquanto que a solteira é talvez a figura paradigmática do amor como vício, ao mesmo tempo voluptuoso e alienante.



Se Sex and the city é uma série que oscila entre cinismo e romantismo, Mazursky permanece fundamentalmente agarrado à ideia de romance, do amor como substância em excesso, onde ele é vivido como uma partilha de interesses comuns em Sex and the city. É a muito bela cena final de An unmarried woman na qual o novo namorado pintor de Erica a abandona no meio da rua com a tela gigante que ele acaba de lhe dar. A tela, intransportável, materializa o presente do amor, no seu exagero e seu excesso, que literalmente envergonha Erica. De que maneira a comédia romântica futura se distanciará dos woman’s pictures? De uma forma que as heroínas femininas têm de abandonar toda a ideia de sacrifício (por um homem, um filho, uma carreira) em benefício de uma concepção bem fundamentada de bem-estar. O woman’s picture pós-clássico e a comédia romântica, na sua vontade de restaurar o eu, de filmar as heroínas que sentem que merecem ser felizes, perderão alguma coisa do fogo sagrado e mórbido dos woman’s pictures clássicos, uma forma de inflamação e de saciedade de um instinto de morte tipicamente feminino que não permite de forma alguma um amor destinado a restaurar o eu.

Woman's pictures 70's-80's #1 An unmarried woman de Paul Mazursky (Une femme libre, 1978) foi originalmente publicado no blog The lost weekend (http://lostwknd.blogspot.com/) em 20 de janeiro de 2015. Tradução: Miguel Haoni.

Noël Simsolo apresenta Simone Barbès ou a Virtude


Noël Simsolo gentilmente nos concede uma apresentação sobre o filme Simone Barbès ou a Virtude (1980) e sua criadora Marie-Claude Treilhou, para a Mostra Mulheres Mulheres, realizada pelo Vestido sem Costura na Cinemateca de Curitiba em dezembro de 2019.

Registro: Leodoro Camilo-Fernandes, Leticia Weber Jarek e Miguel Haoni
Tradução, legenda e edição: Cauby Monteiro
Apoio: Evandro Scorsin

Simone Barbès ou a virtude, de M.-C. Treilhou





Por Danièle Dubroux 


Se eu tivesse que caracterizar Simone Barbès para pessoas que não a conhecem, eu diria “é uma natureza” ou “uma garota realmente natural, você entende”... Eu utilizaria deliberadamente essa expressão da linguagem popular, acrescentando: “ela tem na voz uma zombaria à la Arletty; aliás certas das suas falas (eu penso particularmente nessa frase que ela diz no final do filme : “eu, senhor, eu acreditei por muito tempo nas almas que se roçam”), reverberam na memória como o famoso “Atmosfera, atmosfera”, da heroína de Hôtel du Nord

Contudo, a analogia para aí, pois Simone Barbès é um personagem muito contemporâneo, e mais que um novo gênero de mulher, é uma nova natureza que joga com a sedução, como aquelas que a precederam, utiliza armas sempre femininas não para capturar o homem (aliás, ela não tem homem algum e não o procura), mas para o desarmar e lhe impor o seu próprio terreno que é aquele da linguagem, do jogo com as palavras (talvez a derradeira sedução!).


A expressão dessa “natureza forte”, deve sua existência cinematográfica, ao encontro feliz de duas mulheres que tinham verdadeiramente alguma coisa a dizer: a realizadora, Marie-Claude Treilhou cujo primeiro filme e sua extraordinária intérprete, Ingrid Bourgoin, cujo primeiro papel visto que ela é, nos parece, trabalhadora na vida, como a protagonista do filme. 

Esse filme que conta uma noitada da trabalhadora Simone Barbès é construído em tríptico, três espaços, três situações que parecem se encadear sem ligação de causa e efeito entre eles. Na verdade, a cena central, essa do cabaré feminino, é bem o lugar de transição onde se amarra o drama objetivo: um crime é cometido, e o drama subjetivo de Simone: ela é uma amante ultrajada pela sua namorada que se prostitui nos bastidores da boate. Amarração dramática que permite reconsiderar retrospectivamente a relação agressiva e terna de Simone com Martine (a bela Martine Simonet) no hall do cinema pornô, e que dá toda a sua força trágica à cena final: o encontro de Simone com o croupier do cassino de Enghien (Michel Delahaye muito bem sem óculos e com bigode); ambos são seres abandonados, de corações magoados perdidos na noite, reaquecidos um ao outro no tempo de um trajeto de carro. 

Assim entendemos que a disponibilidade de Simone de encontrar os outros, o tempo que ela lhes concede, não é o fato de um ser sem amarras, que pede pela aventura, parece mais que Simone reverte sobre o gênero humano toda a carga afetiva que focalizamos habitualmente no outro grande duelo do casal, numa espécie de comiseração por todos os náufragos do amor dos quais ela faz parte. 

É o seu lado prostituta de bom coração, e não é um acaso se ela evolui num universo limítrofe à prostituição. Primeiramente o cinema pornô onde as trabalhadoras parecem proxenetas que os homens pagam para ter o direito de visualizar na tela suas fantasias sexuais. Depois a boate homossexual com o circuito do dinheiro – champagne – prostituição. Enfim o carro do paquerador onde Simone “sobe” como para um programa.


Simone, sem medo e sem culpa evolui nesse terreno traiçoeiro da prostituição, ela passa através as malhas da rede, evitando as catástrofes como que guiada por uma espécie de intuição (feminina?) e usando a palavra (sua verve como ela diz) para desmontar todas as armadilhas montadas para as meninas, num procedimento de inversão das relações, de papéis que desarma o adversário (o homem). 

Esse jogo de inversão organiza estruturalmente todo o filme. Um pequeno “se” de convenção lúdica parece o ter agenciado a partir de uma perturbação da ordem habitual das coisas, produzindo as permutações necessárias: “se” os espectadores envergonhados de um cinema pornô se tornassem os gentis atores de um filme; “se” uma garota no lugar de esperar o seu cara, esperasse a sua mina; “se” o paquerador no carro fosse acompanhado no seu próprio carro pela garota que ele acaba de paquerar. 

Contudo, a inversão não é no filme um procedimento sistemático, uma pura convenção formal resultando numa deriva do absurdo (como em Buffet froid de Bertrand Blier), ela manifesta uma escrita que dá conta de um tema central no filme, este da inversão sexual (a homossexualidade) e da inversão, inesperada, conjuntural dos papéis sexuais (o paquerador acompanhado e que chora como uma mulher). Mais justo que o termo de inversão que conota uma oposição, uma reversibilidade diametral, é preciso falar de “deslocamentos” sucessivos, permitindo iluminar o que habitualmente nós escondemos e que vemos mal: os lugares mal vistos, deslocados (entender no sentido próprio e figurado dos dois termos). 


Mal visto, o hall de um cinema para o qual o olhar não se dirige habitualmente, estendido já para o fora de campo da tela, ainda mais mal visto aquele de um cinema pornô com seus clientes furtivos que querem se tornar invisíveis. Mal vista (no sentido popular), uma boate homossexual, ainda mais feminina, mal visto (e deslocado) subir em plena madrugada no carro de um paquerador. Porém, todos os lugares inquietantes, porque escondidos (logo mal vistos) se tornam centros de polarização do olhar, iluminados no meio da noite, e a presença de Simone, a forma com que ela tem de ocupá-los, de habitá-los, os torna de repente mais familiares que o possível. 

Num artigo sobre Jeanne Dielman, e num outro intitulado “L’être-ange au cinéma” (“O ser-anjo no cinema”), eu evocava o conceito de unheimlich, (o familiar inquietante) como estando ligado a uma certa representação da mulher ligada ao interior da casa familial (e familiar) que ela acabava por tornar inquietante, pela sua única presença. 

Simone Barbès provoca o processo inverso, garota da rua, sem home (seu interior não é mostrado) e sem homem, ela está em todos os lugares como se estivesse na sua casa, metamorfoseando os lugares fechados, opressivos, concebidos como inquietantes, em lugares familiares, domicílios provisórios, onde ela cava a sua trincheira, arruma o seu lugar (a pequena mesa no hall de cinema com os seus livros, seu abajur, seu copo, seu sanduíche). 

Isso explica o papel do número três no filme, Simone é a terceira pessoa, uma terceira natureza em devir, nascida da perturbação de certa imagem da mulher, uma mutante inquietante no exterior e tranquilizadora no interior, (uma mulher unheimlich/heimlich). 

Mas que o leitor não se engane, não se trata de um filme tese (do tipo ilustrativo da doxa feminista), é o contrário um filme regozijante, tônico, cheio de humor. Humor que não deve nos impedir de ver que o jogo de “deslocamentos” sobre o qual ele se funda tem uma função defensiva evidente, pois “em todos os lugares onde ele se manifesta, o deslocamento permitirá objetivar, circunscrever, localizar a angústia” (Freud). É uma arma. 

O texto Simone Barbès ou la Vertu de Danièle Dubroux foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, n° 309, março de 1980. Tradução: Leticia Weber Jarek.