O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Os trapos do realismo




Por Pierre Léon 

A querela do realismo na arte procede […] da confusão entre o estético e o psicológico, entre o verdadeiro realismo, que é a necessidade de exprimir a significação ao mesmo tempo concreta e essencial do mundo, e o pseudo-realismo do trompe-l’œil (ou do trompe-l’esprit) que se satisfaz com a ilusão das formas”. 
André Bazin, Ontologia da imagem fotográfica[1]

Realismo: em termos de arte e de literatura, ligação à reprodução da natureza sem ideal”. 
Ideal: o modelo interior do poeta, do artista”. 
Le Petit Littré 

Tudo está bem? 

O ódio, de Mathieu Kassovitz, é um filme muito curioso, pois ele põe, um pouco nas bordas de uma poética pobre, questões importantes, como o faziam há uns 10 anos A sociedade dos poetas mortos, de Peter Weir ou Imensidão azul, de Luc Besson, em um fluxo ininterrupto e por vezes eficaz de clichês sociológicos ou psicológicos, como se o cineasta drenasse com ele uma frustração, um incômodo diante dos temas encontrados, na falta de ter reduzido suficientemente o campo de suas preocupações. Já o próprio título, ainda que seja lúcido a respeito de sua polissemia, uma vez que designa ao mesmo tempo o antônimo de amor e uma expressão da linguagem corrente, mantém o espectador em uma posição deliberadamente inferior, fazendo apelo globalmente a sua consciência social diante de uma situação cuja gravidade o cineasta teira sido o primeiro a compreender. Não é uma caricatura: O ódio se situa de partida em uma metáfora carregada (o homem que cai do alto de um prédio e que repete para si durante sua queda: “até agora, tudo está bem”), reexposta no fim do filme e que não deixa nenhuma dúvida sobre a posição de árbitro que seu autor se outorga. Por mais desagradável e discutível que essa afirmação possa parecer, ela não deixa de ser a prova de certa força de convicção. A análise dupla de Kassovitz, ao mesmo tempo do cinema e da sociedade, mesmo que seja primária, não é completamente errônea, pois dá conta da dominação psicológica do primeiro sobre a segunda e da lei segundo a qual a eficácia de uma tese ideológica se mede pela capacidade de simplificar sua enunciação. É também a lição de Eisenstein, que Kassovitz parece ter naturalmente assimilado. 

Seu realismo platônico — o mundo das ideias antes do mundo dos homens — se situa na linhagem obscura do cinema francês, que vai de Duvivier (pela obscuridade pragmática) a Carné (pelo estetismo geométrico da decupagem), passando por Clouzot (pela busca por eficácia) e que, no cinema contemporâneo, desemboca em certos filmes de Tavernier, Corneau ou Blier. Mas o que desequilibra o filme de Kassovitz, principalmente do ponto de vista estético, é a gestão anárquica dessa herança: a qual ideologia dominante Kassovitz se opõe ou acredita opor-se com um método que se origina na pior prática acadêmica e em uma enunciação brutal e descabida de um ideal de cinema (e não mais de um modelo de artista), como se o mero fato de fazer filmes colocasse o cineasta acima dos que não o fazem, ou seja, de quase todos os outros? Em particular, a cena kubrickiana da pilhagem de uma galeria de pinturas parisiense, na sua grotesca incompletude, dá calafrios pelo que acumula de tentação totalitária. A câmera, inteiramente devotada à causa dos que quebram (e que acredita estar, assim, do lado dos oprimidos), filma e escruta os rostos angustiados, como se fôssemos assistir a um estupro coletivo, e os estupradores, em um movimento cínico e fazendo caretas, fossem confiar à película a imagem de seu crime. Mas não se deve esquecer que é entre os oprimidos desse tipo que os opressores recrutam seus milicianos. 

Sim, O ódio é certamente um filme político, mas talvez não no sentido desejado por seu autor. Sem sequer falar na recuperação massiva do filme pela mídia, o filme fracassa em sua meta principal, que é a de chamar atenção para um desequilíbrio social maior, e entra prudentemente no sistema da opressão, ao mesmo tempo tranquilizando os responsáveis pela organização social em sua impotência em tratar o problema e os espectadores, que se veem como as vítimas consensuais dessa impotência. 

Se, no plano estético, o filme de Kassovitz não é novo (e isso não é um defeito, o mero desejo de modernidade não envolve toda a modernidade), não pensemos, contudo, que lhe falte estilo. O roteiro é magro, mas preponderante, como em Autant-Lara ou Tavernier, a psicologia é tão banal quanto a de Besson, o desejo de marcar época é tão flagrante quanto em O boulevard do crime. Quanto ao estilo, se não é muito original, ao menos é eficaz. Esse tipo de decupagem, rápida, inteiramente a serviço da montagem, que Kassovitz pratica de modo profissional, provou seu valor há muito tempo. Planos fechados com grande-angular, a câmera levada ou fixada em cima ou embaixo das personagens, preto e branco consensual, geometria das linhas, asseio da dinâmica sonora, direção de atores ao estilo cinéma-vérité, todos os elementos funcionam em estreita osmose, o que dá ao filme uma impressão de coerência, em perfeita contradição com o caos teórico de seu tema geral. O que mostra bem que um olhar generoso sobre o mundo (exatamente o contrário do ódio) é sobretudo saber se manter à distância. Nem muito perto nem muito longe. 

Onde pôr sua câmera? 

Há uma quietude do olhar em À vida, à morte!, de Robert Guédiguian, cujas malhas do roteiro são suficientemente frouxas para permitir que nos deixemos apanhar nos fios de sua mise en scène. O filme é quase inteligente demais, atento que é a cada gesto, com a consciência grave que caracteriza a localização das personagens nos planos (como o corpo nu do cunhado sobre o rochedo imediatamente antes de a vida abandoná-lo — ou de a morte acolhê-lo) ou nessa maneira de fazer as personagens se engalfinharem e de logo se afastar, talvez no temor de forçar demasiadamente nossa simpatia. Se o filme começa como uma crônica desiludida da vida cotidiana de uma comunidade de gente pobre (no sentido dostoievskiano) e poderia nos fazer temer derrapadas wylerianas, a câmera instala pouco a pouco essa distância salutar, estreita, entre as personagens e nós, tão estreita que por vezes sufocamos nela, mas cujo princípio é relaxar a compressão com cenas de pura comédia, de dança ou de canções em que encontramos, em certos momentos, a graça de um Jacques Rozier. 




Essas personagens, por seu duplo pertencimento ao mesmo tempo ao real marselhês deslocado e ao romanesco poético do cineasta, não são, como em O ódio, funcionários de uma convicção ou prolegômenos, mas potentes portadores de solidão em uma comunidade difícil cuja confiança e coesão eles se esforçam para não trair. E, em cada situação problemática do ponto de vista dramatúrgico (a canção do avô obcecado pela guerra da Espanha, o strip-tease coletivo sonhado), Guédiguian sabe parar um plano imediatamente antes de ele nos tomar como reféns. 

Como não há realmente cenas que se sobressaem (será por isso que o filme é tão fugitivo?), trata-se da narrativa de uma experiência que nos interessa, a de um cineasta que descobre com modéstia o local exato em que deve pôr a câmera. 

O proletariado aos trapos 

Não é só o amor que responde ao ódio. Há também o cinema que responde ao cinema (sem, contudo, buscar fazê-lo) e Mulheres diabólicas, de Claude Chabrol, era, nesse ano de 1995, o antídoto salutar ao filme de Mathieu Kassovitz. Não há nenhuma semelhança de roteiro entre os dois filmes, mas uma mesma vontade de analisar o ódio como um sentimento de classe e, onde Kassovitz, inteiramente impregnado da débil ideologia pós-comunista, consensual e fundada unicamente no conceito dos direitos humanos, dá provas de uma visão unívoca, Chabrol de partida põe o dedo no que interessa eminentemente, a ambiguidade, presente em todas as formas de opressão.




Em várias entrevistas, Chabrol disse, com a malícia que o caracteriza, que Mulheres diabólicas era um filme marxista e isso é verdade, assim como Entre amigas o era. Mas a malícia de Chabrol é certamente fachada, tendo-se tornado tão de mau gosto invocar Marx, e o empréstimo que ele faz da teoria marxista não é nem fortuito nem superficial. O que falta a O ódio não é somente um contraponto ideológico, mas também o interesse mais elementar pelo que rege a realidade social. Chabrol não se deixa influenciar pela lamúria atual, mas reencontra, estranhamente, a acuidade de um Victor Hugo quando pinta com traços vigorosos esses Thénardier em potência que são Jeanne e Sophie, representadas por Isabelle Huppert e Sandrine Bonnaire (uma verdadeira ideia de casting), personagens saídas desse “proletariado aos trapos” cujas condições de existência aterradoras fazem com que ele “seja mais disposto a se deixar comprar por maquinações reacionárias[2]. Assim, sem fazer economia dessa ambiguidade fundamental, Chabrol mergulha com prazer nesse grande drama capitalista com a distância necessária para não afundar na caricatura (exceto, talvez, na atuação enfática de Isabelle Hupper — o episódio do chiclete — ou na personagem do padre) pela presença, ao lado do olhar do espectador, de um terceiro olho, ao mesmo tempo jocoso e grave, verdadeiro recurso e possível apaziguamento à sangrenta conclusão do filme. Terceiro olho que assiste a toda a família se instalar diante da tela 16/9 da televisão para gozar do espetáculo de um Don Juan dirigido em Salzburgo por Karajan, terceiro olho, que agora se tornou o nosso, implacável, mas divertindo-se com essa imagem perfeita de uma burguesia triunfante em seu bom gosto e em seu direito. Terceiro olho que não piscará quando o “proletariado aos trapos” apagará friamente essa imagem da face da terra, antes que um acidente de carro para uma e o tribunal (provável) para a outra apaguem-nas por sua vez.

Chabrol e o roteiro

Mais uma palavra sobre Mulheres diabólicas. Diz-se que há um problema de roteiros na França e deve-se ter razão, porque não há um roteiro julgado bom pelo establishment e pelo complexo rappenelo-berriano que não seja um roteiro ruim (O Urso, Camille Claudel, Urano etc.), dialogado com um garfo e recheado de clichês, mas que possui a vantagem de aferrolhar todas as saídas, encerrando a mise en scène na pura ilustração. Donde essa importância exagerada conferida aos roteiristas, como se a escrita das palavras, em absoluta contradição com a visão das imagens em movimento, fosse a garantia incontestável de um autor. Chabrol, que se abandona de bom grado a um academicismo sorridente à la Ivory (em Madame Bovary ou Um assunto de mulheres), soube liberar o lastro roteirístico e diversos pontos de sua história permanecem como que em suspenso. Por exemplo, do ponto de vista estritamente narrativo, nada nos permite afirmar que as duas heroínas cometeram os assassinatos de que foram acusadas, assim como nada nos indica que não os cometeram. E o fim do filme permanece absolutamente enigmático com algo de desproporcional nessa brusca irrupção do fora-de-campo (o acidente, a chegada da polícia na noite imensa), onde o espectador, sempre terceiro olho faceiro e atento, passeia e imagina o que lhe aprouver. Chabrol estabelece uma relação conflituosa com seu roteiro, que deixa de ser um simples tapete sobre o qual rola o travelling de sua mise en scène, ele o discute, questiona-o, obscurece o que não precisa ser dito, demora-se nos momentos em que não acontece nada (em particular, todos esses planos que mostram o corpo lento, como que anestesiado, de Sandrine Bonnaire) e, além disso, se dá ao luxo desse suspense hitchcockiano escalonado em que o analfabetismo de Sophie é primeiramente comunicado ao espectador e depois às outras personagens. É nisso que o roteiro deve à mise en scène, e não o contrário.

Ademais

Por outro lado, o cinema é uma linguagem” (Bazin). O que me interessa é esse “por outro lado”. Porque, para que haja um “por outro lado”, a sintaxe exige que tenha havido um “por um lado” e ele não está aí. O que Guédiguian afirma como que de passagem é que o cinema é uma linguagem e que, talvez, ele seja, precisamente, de outra parte[3] (e de outra parte é em seu lugar). Não se pode negar ao cinema essa capacidade de comprazer-se e denegrir-se, de buscar ao mesmo tempo a aprovação do público e a da crítica, de professar, como o fez Kassovitz em uma polêmica com Les Inrockuptibles[4], da qual o mínimo que se pode dizer é que ela não o fez parecer maior, o ódio aos intelectuais, ódio burguês por excelência, ou de buscar em experimentações subterrâneas a pedra filosofal. O cinema é, de fato, a arte total e, se ainda existem iletrados, como a Sophie de Chabrol, é pouco provável que encontremos mais de uma dúzia de analfabetos da imagem (Sophie assiste à televisão o dia inteiro). O cineasta fala a língua de todo o mundo. Eu acho que Guédiguian fala a língua de Mathieu Kassowitz, mas é pela elaboração de uma linguagem que ele se singulariza, e Kassovitz, por sua audiência excepcional. Não se trata de opor essas duas práticas ou de julgá-las, pois ambos os filmes são objetos culturais, que são iguais diante de nós, apesar de seus autores e do que eles quiserem dizer sobre eles, mas de buscar esse ponto preciso em que seus filmes operam a junção com a realidade. E é na diferença entre o julgamento de realidade e o julgamento de valor que reside a função essencial do realismo.

O sintagma de São Tomás

Se a querela de que fala Bazin entre a arte realista e a arte trompe-l’œil é como o Etna, que nunca se apaga completamente, acontece de um cineasta, pela importância que assume aos olhos de seus contemporâneos, conseguir mantê-la em uma atividade razoável, isto é, atrair para si oposições e propor sua síntese. Esse cineasta-ímã (e amante) chama-se Jean Renoir. Se olharmos de perto, o que encontramos no meio do caminho entre Grémillon e Duvivier? Renoir. Entre Gréville e Trivas? Renoir. Entre Pagnol e Guitry? Renoir. Entre Clouzot e Becker? Renoir. Entre Godard e Demy? De novo, Renoir. Entre Eustache e Truffaut? Mais uma vez, Renoir. Com isso, não quero dizer que Renoir seja o justo meio do cinema francês, mas, ao longo de toda a sua carreira, que vai do mudo à maturação do cinema moderno, ele soube, por sua técnica de camaleão realista, atrair para si todas as transformações maiores de sua arte, ao mesmo tempo em que permanecia modestamente o maior dos cineastas.




Um homem que não gosta de ser comparado a Renoir desempenha hoje em dia esse papel federador e é Maurice Pialat. Já pelo lugar que ocupa (ou que ele quer dizer que ocupa) no sistema cinematográfico francês, o de um mal-amado, de um eterno avexado, notório insatisfeito, à frente, mesmo assim, de uma dezena de longas-metragens em 26 anos, o que não é muito, mas não é algo desprezível. Um cineasta inclassificável, à distância das comunidades, dir-se-á o contrário de Renoir, sim, mas que se assemelha ao cinema de hoje no que ele tem de heterogêneo. 

De qualquer forma, é divertido constatar que Pialat, que pratica a arte do denegrimento como ninguém (inclusive a respeito de sua própria pessoa), é justamente o cineasta que, em pouco mais de um quarto de século, integrou em sua poética a destruição narrativa godardiana (e sua relação com os atores-estrelas), a experimentação estética eustachiana (sobre a duração de uma cena), a descrição atenta da juventude e de sua capacidade ou não de transformar o mundo (como em Rohmer), mas também a afirmação de certa vulgaridade enquanto fazendo parte do patrimônio (com empréstimos de Bertrand Blier ou mesmo de Michel Lang ou Max Pécas). 

Portanto, um homem contraditório, inteligente e sensível, um cineasta que se interessa pelo momento que passa sem deixar escapar nada de sua magia, um pintor da desordem, cujos filmes possuem todos esse pequeno perfume de inacabado, de falso natural e de aparente improvisação que os coloca de partida entre as manifestações mais singulares dessa segunda metade do século. Em qualquer filme de Pialat, há sempre — e podemos decididamente chamar isso de milagre — ao menos uma cena ou mesmo um único plano cujo grau de sentimento real é tal que tem-se paradoxalmente a impressão de viver um sonho (penso na primeira aparição, no vão da porta, do Pialat-ator em Aos nossos amores). É nesse tipo de aparição que se desenrola plenamente “essa cumplicidade buscada na filmagem e cujos indícios o espectador percebe como um convite a entrar na dança, como uma vara estendida a sua própria conivência”, como nota Jacques Bontemps a respeito de A noite da encruzilhada, de Renoir[5]. Há uma semelhança evidente na direção de atores tal como praticada por Renoir e Pialat. Ainda que este último exponha mais voluntariamente os traços e reduza ainda mais a distância que separa o ator da personagem, sem que se possa identificar precisamente com quem estamos lidando — com Pialat ou com o pai de Suzanne? Com Bonnaire ou com Suzanne? (ainda Aos nossos amores); com Jean Yanne ou com um sósia de Maurice Pialat? (Nós não envelheceremos juntos) —, há em Renoir o mesmo tipo de perturbação que nos acomete quando vemos A cadela ou A regra do jogo, em que a diferença que vibra entre Simon e Legrand ou entre Renoir e Octave é da espessura de uma folha de papel-bíblia. O papel-bíblia da ilusão[6]

O novo filme de Maurice Pialat, Le Garçu, para além da provocação regional de seu título — mas que cumpre suas promessas por causa do suspense psicológico que rege o filme e que responde à questão “mas de quem se fala?” — joga até o fim a carta da interpenetração entre a ficção proposta e a realidade documental da vida privada. Pela presença de Antoine Pialat, o filho do cineasta, pela presença intertextual de Depardieu, pela heterogeneidade da interpretação, pela explosão aparente da linha narrativa, Pialat mostra uma capacidade de organização do caos à qual ele mesmo não nos havia acostumado (e que falta tão cruelmente ao filme de Kassovitz). Então, seu filme torna-se um concentrado temático e estético de seu caminho pessoal, mas sem o ensimesmamento que caracteriza, em geral, esse tipo de exercício (seria divertido evocar Fellini e Moretti a esse respeito), porque a generosidade faz com que se olhe para outro lugar. 

Se Le Garçu não é o filme mais bem-sucedido de seu autor (não há nem essa adequação vertiginosa entre a filmagem e o argumento como em Antes passe no vestibular nem a acuidade ao mesmo tempo amarga e precisa das relações sociais como em Loulou nem a grandeza cômica da tragédia familiar como em Aos nossos amores nem o sopro inquietante de uma solidão exasperada como em Van Gogh), é porque ele acumula disso tudo elementos dos quais talvez ele não tenha o domínio absoluto: em sua maneira de filmar seu filho, há mais um olhar de pai que um olhar de cineasta, o que não se lhe reprovaria, mas sua presença incômoda (pela mobilidade e pela vida que seu corpo de antes do cinema exprime e que não pode dar conta dos imponderáveis de uma filmagem) exige do espectador que a aceite ou rejeite em vez de integrá-la à economia geral do filme, assim como ele não integra ou integra dificilmente as personagens de Elisabeth Depardieu ou de Fabienne Babe. Em contrapartida, Gérard Depardieu, tão enigmático, habitado por uma força de ordem mitológica (não é Aquiles saindo de sua tenda, imóvel a grandes passos?), propulsiona com uma real leveza sua massa invadindo os quatro cantos de cada um dos planos que habita: é preciso vê-lo correr na praia para compreender o que esse corpo estranho do cinema francês pode deslocar como sentido suspenso! 

O que caracteriza em primeiro lugar esse filme desconfortável é sua capacidade de integrar a querela de que fala Bazin em um conjunto de interrogações, correndo o risco de que elas o levem ao desinteresse por certos elementos narrativos (na recusa de tipificação social das personagens, entre outros), mas ganhando em outros planos, quando se recusa, por exemplo, a romper a sequência em que Rocheteau come torradas e em que sua falsa doçura pascaliana (“Não obstante essas misérias, ele quer ser feliz e quer apenas ser feliz e não pode não querer sê-lo”) rompe com a presença ilusoriamente viva de Depardieu. É nesse sentido que Pialat é um verdadeiro realista, um realista do presente, que vira do avesso, como uma meia, o sintagma de São Tomás: eu vejo o que creio. E que sorri gravemente para o espetáculo da divina comédia humana. 

[1] In: Qu’est-ce que le cinéma?, éditions du Cerf. 

[2] Marx e Engels, Manifeste du parti communiste, Aubier. 

[3] Jogo de palavras a partir da locução d’autre part, “por outro lado”, mas que também poderia ser lida literalmente como “de outra parte”, “de outro lugar” [NT]. 

[4] Descontente com o tratamento “crítico” do filme por parte da revista semanal Les Inrockuptibles, Mathieu Kassovitz enviou à redação do jornal uma carta virulenta, que foi publicada no nº 15 (21-27 de junho, 1995), acompanhada pela resposta não menos virulenta dos jornalistas incriminados. Foi-lhes fácil replicar ao “… ganhar a vida criticando os outros não é, na minha opinião, um trabalho glorificante…” e a outros “… a crítica deve permanecer objetiva, mesmo se for negativa”. 

[5] In: “Le feu de l’esquisse”, Trafic, nº 16, outono de 1995. 

[6] Penso que, no cinema americano, essa distância entre o ator e a personagem se define em termos de altura, de verticalidade (por exemplo, um dos maiores atores hollywoodianos, Dana Andrews, parece sustentar o corpo de suas personagens, ao menos nos filmes de Lang, Tourneur ou Preminger), ao passo que a tradição francesa tenderia mais à horizontalidade (penso, em particular, em Raimu que precede em alguns metros os modelos que ele deveria encarnar). Hipótese a ser explorada. 

Les haillons du réalisme foi publicado originalmente na revista Trafic n°17, inverno de 1995. Tradução: Rafael Zambonelli. 

A urze suspeita




Sobre O Cogumelo dos Cárpatos de Jean-Claude Biette 

Por Jean Paul Civeyrac 

A abertura de Cogumelo dos Cárpatos é impressionante: um homem, vestido dos pés à cabeça com um traje de proteção, vem ao socorro de uma garota que, aparentemente, não parece ser ameaçada por nada além do ar livre. Pensamos nesses filmes futuristas americanos de tendência expressionista. Jean-Claude Biette estiliza nesse sentido: câmera ao nível do chão, cascata expressiva da cabeleira da garota, etc. Esperamos então que essa história prossiga num bunker e relate a sobrevivência dos humanos escapados de alguma catástrofe química ou nuclear. Ou bem como em O estado das coisas de Wim Wenders, a câmera poderia dar uma panorâmica e nos desvelar a equipe técnica de um filme improvável. Se O Cogumelo dos Cárpatos não se engaja tão nitidamente em nenhuma dessas duas vias, ele não deixa de propor uma visão de mundo do "pós-Chernobil" - como está inscrito no primeiro plano do filme – duplicada por uma reflexão sobre a criação. 

O que primeiro surpreende em O Cogumelo dos Cárpatos é a incrivel profusão de personagens. Não aparições ou simples figurantes mas efetivamente figuras de ficção que os atores fazem existir na tela, em carne e em palavras. Num primeiro momento, essa profusão dispersa. Cada personagem está instalado há muito tempo na sua história, e cada uma delas, como as relações que ela estabelece com as outras, só se explicita lentamente, à medida que o filme avança. Mas, paradoxalmente, quanto mais o espectador encontra os pontos de referência no meio dos personagens e das situações, mais ele religa e compreende, mais o sentimento de uma ausência de ligações reais o conquista, como se o objetivo não fosse mostrar a relação mas antes a dificuldade de estabelecê-la e de mantê-la. Isso não é colocado metafisicamente mas à luz da catástrofe atômica do vale do Ródano. Um pouco como se depois dela tudo tivesse se dispersado, espalhado, nos projetando num mundo esmigalhado que só conhece destinos solitários. Vendo esse filme, tem-se pouco a pouco a impressão de se encontrar na presença dessas poeiras que às vezes o favor de um raio de sol de verão nos mostra esvoaçar. Todas essas trajetórias, todas essas circunvoluções cessarão de se ignorar? Todos esses átomos terminarão por se encontrar verdadeiramente? No fundo, Jean-Claude Biette não conclui. Ele inaugura as relações, começa as situações e mostra que a comunidade (de desejos, de paixões, de ideias) terá dificuldade para se constituir e se conservar (a garotinha que foge poderia constituir a metáfora). Ou ainda, talvez, no tablado improvisado de um teatro. Hamlet vai acabar por ver, enfim, o dia? À primeira vista, o único destino conclusivo não poderia aqui ser outro além da morte – aquela de Ophélie, a bela radioativa. É que a era do átomo rompeu os destinos coletivos. A comunidade se desagregou, não existem mais personagens principais, personagens secundários. A liberdade tornou-se solidão e desordem. E a História só dará à luz na dúvida e na dor. Está sem dúvida aí o verdadeiro tema do filme: a possibilidade comprometida de inventar a História, de fazer um projeto de existência agora que esse mundo gangrenado pode, com a maior energia, se autodestruir. A Ciência (a vertente Patachou) queria se encarregar do destino da Humanidade mas é incapaz de assegurá-lo. Ela permanece cega diante do real e parece só poder destruí-lo – Patachou não entende nada das extraordinárias virtudes do cogumelo que dá saúde e longevidade. Da mesma forma, Ludovic só vê no real a ocasião para ganhar um pouco de dinheiro (ele é o personagem do comércio, o mercador mas também o amante) e não poderá gerar uma verdadeira história de amor e de casal. O Cogumelo dos Cárpatos mostra a dificuldade do projeto, aquele que consiste em dizer "era uma vez…" depois de Chernobil. Como criar uma ficção que não seja ficção-científica – entendida no duplo sentido: ou deixamos a ficção para a ciência; ou idealizamos, fantasiamos, o futuro? Podemos não ter projeto – como Ludovic que simplesmente aproveita a circunstância. Ou ter um, mas sem real fundamento – a concepção que Patachou tem da clínica se verá contradita pela enfermeira que exigirá mais invenção, experimentação, liberdade, e consequentemente mais humanidade (é um pouco o cogumelo dos Cárpatos contra o cogumelo do vale do Ródano). O risco maior permanecendo a ilusão, a idealização – o projeto vítima de sua aparente evidência – que resulta na estagnação, no tédio, no estiolamento. Por exemplo, a mulher que Tonie Marshall interpreta toma pouco a pouco consciência da situação falsa na qual ela se encontra: uma cena na livraria mostra ela insatisfeita com o lugar que ela ocupa na sua cadeira, desejando de repente trocar com aquele de sua empregada – essa bela cena dá uma estranha impressão: aquela de uma estagnação espaço-temporal na qual não podemos intervir, quer dizer, impossível de (re)ativar – e ela logo notará que todo mundo mente, não conta a verdadeira história…




Quando, no filme, os personagens olham um canteiro de obras, onde isso se constrói, eles só veem primeiro a destruição do antigo e a quase ausência de riqueza do novo. O Eldorado (os Cárpatos) daqueles que esperam, que ficcionalizam, que fabulam, poucos vão percebê-lo. Cabe ao cineasta, ao artista a função de contar a história, de imaginar os termos, se ele for capaz. E Patachou, a cientista, entregará ao diretor de teatro o misterioso cogumelo: seu leite permitirá talvez ao artista revelar e, portanto, inventar um mundo verdadeiro. Dar vida a Hamlet é dar à luz os homens. A fábula torna-se aqui tragi-cósmica. E nos toca profundamente.

A emoção oferecida pelo filme de Jean-Claude Biette não é sutil, tensa, mas disseminada. É quando, por instantes, as matérias filmadas se oferecem a nós pela própria matéria do filme. Raramente tivemos num filme um sentimento tão forte das matérias, no sentido da inquietude. Ar, terra, água e fogo tornam-se aqui os elementos da incerteza e do medo. As radiações estão talvez, sem dúvida, neles: como viver atualmente com eles, observá-los, senti-los? Em O Cogumelo dos Cárpatos, chega-se a suspeitar do ar, um ar carregado de invisível, um ar que dá medo, e que pode deixar mudo (Ophélie). A suspeita nasce desse vaso de urze, do mar ou do Marne, ou ainda desse fogo das invocações espíritas… os elementos fundamentais de onde tudo pode nascer mas também se dissolver. E se as cenas de passeio à beira-mar e no ar cinzento são tão belas, é sem duvida porque, repentinamente, nós nos damos conta de que uma ação tão simples – andar, flanar… – está simplesmente ameaçada. Agora, a natureza, o mundo só fala ao homem sob o signo de uma possível agressão. E essa matéria suspeita, questionada, fonte e túmulo, não seria percebida como tal pelo espectador sem a bela e discreta luz do filme (graças a Denis Morel) que, literalmente, irradia todos os seres.

La bruyère soupçonée foi originalmente publicado em 1989 no dossiê de imprensa de O Cogumelo dos Cárpatos e republicado na revista La Lettre du Cinéma n°23, julho/agosto/setembro de 2003. Tradução: Miguel Haoni.

Momento crítico para a crítica


Por Serge Daney 

Há alguns anos, em Gabès, um animador de cineclube do sul-tunisiano me comunicou sua angústia. De fato, já não era mais raro que, depois da sessão, um estudante barbudo se levantasse e explicasse gravemente que se a heroína morria no fim do filme, não era um feito dos roteiristas, mas de Deus, que a havia punido pelos seus pecados. Como, nessas condições, animar um debate de cineclube visto que debate já não mais existia? 

No mesmo momento, nos cristãos, um movimento convulsivo e carola agitava mais de um deles. A opinião daqueles que tinham visto Je vous salue Marie pesara repentinamente menos que a dos que o condenaram “por intuição”, sem tê-lo visto. Com uma graça que lhe é própria, o autor do filme, Jean-Luc Godard, fingira respeitar a opinião do papa, menos como chefe da Igreja que como indivíduo cujo “negócio” pessoal consistia em refletir sobre Maria. Godard não reivindicara os direitos sagrados do indivíduo à criação, ele pedira o impossível, ou seja, o direito do indivíduo João Paulo de debater com o indivíduo Jean-Luc sobre uma parte comum de seus trabalhos. 

Godard não era mais aquele que, para defender A Religiosa de Rivette, escrevia uma bela carta de ruptura para Malraux. De fato, as coisas tinham mudado. A crítica de cinema já tinha se dado por vencida e o “direito à criação” tinha se tornado uma lengalenga sindical, ainda mais barulhenta entre os “profissionais da profissão”; já há algum tempo, mais nada “era motivo para debate”. Alguns anos mais tarde, no clima de indolência incomodada que acompanhou a estreia de A última tentação de Cristo (rapidamente rebatizada de “caso Scorsese”), a crítica de cinema não desempenhara nenhum papel.[1] 

O que significa essa anemia da crítica? Que não sabemos mais lutar pela “liberdade de expressão”[2] e que continuamos sem saber lutar pela “liberdade de consumo”. Questão: existe um direito inalienável do consumidor de filmes de consumir o filme que ele quer? Resposta: não é certo. Não é certo, porque não são só os objetos que são consumidos. É cada vez mais o “social” que é consumido pelos indivíduos supostamente livres. Livres de suas escolhas e dispensados de ter que defendê-las, logo, de debater o que quer que seja. Pois o consumo do social, se ele ainda precisa de objetos-pretextos, precisa mais do pretexto que do objeto. 

A obra dependia da crítica e a crítica resultava do que dependia de um trabalho (ou, ao menos, de um projeto). O produto depende, stricto sensu, apenas do que ele, por sua vez, produz. Um bom produto é aquele graças ao qual nós vemos como isso funciona, a sociedade. É isso que queremos ver, o produto do produto e assim por diante, ao infinito. A sociedade se autoconsome via seus “fenômenos” na cena parasitária das mídias.

Compreendemos, por conseguinte, que as salas de cinema e o sentido da crítica se esvaziem ao mesmo tempo. A “ursificação” recente de todo espaço social francês permitiu a toda gente de inserir-se (como lhe convém) em um dos numerosos elos da “linha”-Urso, o elo-filme não tendo mais nenhum privilégio que o de vitrine. É assim que alguns dias antes da estreia de O Urso, eu encontro duas amigas. Uma tem o sentimento penoso que, cheia de trabalho, ela não para de perder o filme e a outra me pergunta ao que se deve o seu enorme sucesso. A curiosidade quanto aos efeitos precede doravante a livre análise da causa. 

São coisas conhecidas, há muito tempo descritas e das quais os paradoxos nem divertem mais. Lá onde o pretexto prevaleceu sobre o objeto, a crítica, num primeiro momento, definha ou desaparece. A televisão, por exemplo, não precisa da crítica já que ao invés de submeter os objetos à sanção do público, ela vende aos patrões da publicidade audiências cativas para quem, por preguiça, ela ainda oferece “filmes de cinema” para que eles fiquem tranquilos e não zapeiem muito. A unidade de base da tv não é o elo mas a cadeia, não é o alvo mas o refém. A cada dia, nós conhecemos um pouco mais essas coisas. 

Seria ingênuo, contudo, pensar que a crítica (como função) ou que o senso crítico (como valor) podem “desaparecer” de um dia para o outro. É mais a sua reciclagem que constitui o problema. Pois se as mídias são o lugar onde as sociedades modernas operam uma diluição em massa das funções outrora atribuídas unicamente aos mediadores profissionais, essa operação não é possível sem luto, sem desencantamento e, sobretudo, sem retornos do recalcado. E esses, ultimamente, não faltam. 


Todo mediador toma de fato para si uma certa parte de abjeção: pegar as coisas como elas vêm, estudá-las e chegar a uma decisão, por vezes um veredito. É isso que é preciso aprender a compartilhar, sem dúvida graças às simulações fornecidas pela televisão. A televisão é cada vez menos essa máquina que deveria “dar a ver”. Inversamente, ela dá cada vez mais “decisões”. Ela mostra como organizar um debate, extorquir verdades, confundir a sondagem com o real, instruir um processo (mesmo falso) ou enviar por Minitel sinais verdes de vida ou de morte, de perdão ou de vae victis. Ela costuma guardar da atividade crítica apenas a sua fase final: o veredito (ou esse veredito portátil que constitui uma soma de opiniões). O mundo da comunicação midiática tem duas faces. Nós acreditamos de boa vontade naqueles que, utopistas alegres, nos prometeram um mundo em que, resumidamente, mais gente teria mais acesso com mais frequência a mais informações. Mas, fazendo isso, nós confundimos precipitadamente comunicação e “transmissões”. Nós sabemos doravante que esse mundo tem também uma face perturbadora. Basta confundir, dessa vez, comunicação e “contaminação” para que o pior mostre suas garras. Voltemos ao nosso humilde ponto de partida. Criticar, na verdade, deveria ser a arte de descrever objetos singulares encontrando boas metáforas (o que Godard chama obstinadamente de montagem). Mas quando a possibilidade da metáfora nos falta, quando a metonímia prevalece sobre essa primeira, as coisas se deterioram. Retorna então (é o integrismo) a nostalgia de um núcleo duro, de um verdadeiro objeto, de uma verdade incarnada, de uma saída catastrófica do consumo do societal em direção ao consumo do social. Retorna então o fanatismo pelo terror. 

Nós estamos aí, claro, visto que Khomeini acaba de jogar a seu favor o jogo da metonímia generalizada (a parte tomada como o todo, o contágio gradual, ou seja, o terrorismo). Nós estamos aí visto que todos os padres do mundo – de O’Connor a Decourtray – aproveitam o sinal verde dado pela velha carniça do Teerã para recuperar suas ovelhas. Nesse caso, não se trata mais de cinema, nem mesmo, tratando-se de Salman Rushdie, de crítica literária[3]. Nem sequer trata-se de debate teológico, como houveram alguns – diferentemente sérios – na idade de ouro do islã. Trata-se de aproveitar da patrulha desvairada de objetos-pretextos para passar ao terrorismo do objeto-puro. 

Visto que nós continuamos incapazes de fazer a crítica das cadeias, não seria muito grave renunciar àquela dos elos. Um a um se for preciso. E não somente os filmes. 

24 de fevereiro de 1989 

[1] Nós podemos datar o canto do cisne oficial da crítica de cinema. Em 1982, quando ela acreditou que seria bom opor um filme de sucesso L’As de as (com Belmondo) a um belo filme bambo e pouco amado (Um quarto na cidade, de Demy). Uma petição desajeitada circulou. Fora a última. 

[2] O autor não acreditava estar tão certo. Dois anos mais tarde, em resposta à sua crítica do filme Urano, Claude Berri, responsável pela coisa criticada, não imaginara nada mais digno que obter, através de um recurso provisório da justiça, que o seu direito de resposta (mais para o gênero consternador) fosse publicado, em 28 de fevereiro de 1991, nas colunas do Libération. Por menor que seja, esse acontecimento marca em quais limites (o que ainda existe da) a crítica de cinema pode se exercer. O acontecimento, aliás, não esteve no centro de nenhuma discussão e todo mundo baixou a bola.

[3] O mais surpreendente fora a quase-extinção dos antigos debates (nobres) sobre a essência da Literatura. Não mais “o que pode a literatura?” que “a literatura e o direito à morte”.

Moment critique pour la critique foi publicado originalmente na rubrica Les fantasmes de l’info do jornal Libération, e republicado no livro Devant la recrudescence des vols de sacs à main, p. 150-153. Tradução: Leticia Weber Jarek. 

O pagamento do fantasma


Sobre Os Passageiros de Jean-Claude Guiguet 

Por Axelle Ropert 

Bastou, antes que os créditos aparecessem, um bonde avançando na escuridão de um túnel para que a respiração do filme fosse dada em um grande gesto de suspensão, suspensão de nossas memórias, suspensão majestosa que precede a criação de um novo mundo, e será preciso prender a respiração. Um jovem professor admite sua recusa em envelhecer precocemente, um vigia confessa sua grande timidez em relação às garotas, uma enfermeira, seu medo de relacionamentos de longo prazo, e é toda a confiança atribuída às situações e se espalhando com uma igual solicitude que logo marca Os Passageiros com sua potência de efusão. Entre as diferentes tristezas, prazeres, medos, maravilhamentos que compõem cada uma das cenas, nenhuma semelhança, pois cada situação é devolvida à sua primitiva integridade, mas também nenhuma disparidade, pois esses homens e essas mulheres têm, para além da comunidade das vidas, uma mesma qualidade de existência que faz com que, entre a tristeza desta e a dor daquela, esteja fora de questão escolher. Esse ajuste da visão que se sente operando constantemente, e que quer restituir à mesma escala ótica, em toda a flexibilidade de suas mudanças visíveis, cada uma das cenas, manifesta uma potência de metamorfose que transforma e enfileira uma sequência na outra, fazendo assim dos Passageiros o filme mais espiritual de todos, no sentido monteverdiano do termo, filme arejado pelas ascensões (funicular de Thonon-les-Bains, teleférico da Agulha do Midi) onde as cerejeiras em flor mizoguchianas e os navios de recreação de Ozu assinalam toda a amplitude da inscrição dos pequenos gestos na tranquilidade dessa natureza, pela primeira vez (em Guiguet) decididamente bondosa – a miragem estaria em outro lugar? Pois, nós o sabemos desde Robert Bresson, o vento sopra onde quer e o espírito cai onde as vidas só querem se revelar. Está aí o prodígio de uma doçura que atribui a cada um, pela virtude única de um desejo de expressão que se manifestaria, o direito de tomar a palavra. Como um tal desejo pode se manifestar? Questão, sem dúvida nenhuma, de cineasta. Entre os mais belos momentos do filme estão também aqueles em que a câmera passeia entre os passageiros, observando na indistinção desses rostos a elevação de um sonho, o sonho de ser ouvido. Pois os passageiros falam, exclamam, cantam, murmuram, reclamam, como se o campo inteiro do mundo se abrisse de repente diante de seus olhos. Talvez esteja aí a utopia guiguetiana, a doçura de um mundo onde uma canção popular, uma confissão brutal, uma cólera bastaria, silenciando aqueles que deveriam se ouvir, para suspender a catástrofe ambiente. 

Num bonde, um homem elabora um quadro de todas as combinações sexuais para chegar a uma aporia tão privada quanto irrefutável: "Minha mulher é um veado." Ao lado, um belo rapaz escuta ou tenta não escutar – e é a mesma coisa. Gênio maligno do cinema francês, que faz Gérard Depardieu duvidar de sua própria existência, Jean-Christophe Bouvet, filmado contra o fundo da paisagem que desfila, a segurança de um discurso sendo assim reenviada às suas instabilidades atmosféricas e o rosto mefistofélico do ator aos seus espelhamentos interiores, tenta agarrar o olhar de sua presa (ou de seu salvador?), tal qual um navio perdido que lança sinais de angústia enquanto entoa um canto de honra. Tudo é dito, o abismo das certezas, a vertigem das possibilidades, a solidão das cóleras. A violência dos Passageiros, é aquela de uma associalidade que não pode se impedir de preocupar-se consigo mesma. Entre as velhas canções, as confissões de uma outra era, as declarações de amor e as reivindicações coléricas de todos os gêneros, uma mesma injunção emerge, que põe em risco a segurança de nossa época obrigando-a, pelo tempo de um verso, pelo tempo de uma exclamação, a combinar com sua tonalidade – necessariamente antiga, necessariamente fora de moda. No fundo, nada mais violento que a obstinação quase nostálgica que faz as vezes da doce provocação em todos os filmes de Jean-Claude Guiguet e que quer fazer a tirania da atualidade se curvar colocando diante e contra tudo seus rapazes revoltados, suas moças com gosto de açúcar de rocha, suas mulheres maduras de autoridade "operrática". 




Resta um grande mistério: quem passeia entre os passageiros? Um plano nos revela, quando a narradora reenvia os mortos ao seu sono noturno com um "Boa noite, meus adormecidos". O cemitério brilha na penumbra, ao longe um bonde passa. Quem observa a cena? Um fantasma, claro, o fantasma da Mrs. Muir, o fantasma de Jean-Claude Guiguet. Ao mundo dos mortos e dos vivos se sobrepõe, ligeiramente deslocado, como uma sombra projetada, aquele dos homens e mulheres de uma outra era e dos jovens decididamente contemporâneos, mundo onde os mais velhos, graças à sua proximidade espectral com o horror da vida, protegem os mais novos. Quando a bela Marie Rousseau com os olhos verdes liquefeitos pelas tristezas, esposa desiludida fugida do Faubourg Saint-Martin, faz Philippe Garziano falar e o envia aos amores cor-de-rosa com Fabienne Babe, é uma passagem secreta que se abre diante dos nossos olhos entre dois mundos que não se comunicam, o tempo de uma transmissão – e que elegância transmitir assim o segredo de uma felicidade perdida… Entre essas mulheres já resignadas e esses jovens rapazes, um fantasma observa e comunica a todas as cenas cotidianas dos Passageiros essa qualidade tão rara de intimidade furtiva, de intensidade passageira, de louca afeição própria àquele que, certo de, em breve, não ser mais desse mundo, decide inventar uma perspectiva temporal ao mesmo tempo ultrapassada (porque o fantasma é de uma outra época) e projetiva (porque o fantasma ama imaginar a vida futura da nova geração), perspectiva que unifica os fragmentos dos Passageiros sob o peso de uma eternidade tornada sentimental. 

O que pode querer um fantasma? Talvez, durante uma acusação final em forma de litania fúnebre na qual se substitui à opressão social o furor lírico das reivindicações, uma maneira de ordenar entre elas as cóleras até aí espalhadas e reunidas enfim no seio de uma frontalidade militante – porque a violência do fantasma está aí, chamar à responsabilidade pelo tempo que nos resta, a responsabilidade por um tempo mais feliz, um pagamento, em suma. 

La redevance du fantôme foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma n°9, primavera de 1999. Tradução: Miguel Haoni.