Que vaidade é a pintura, que causa admiração pela semelhança com coisas das quais não admiramos os originais.
Pascal
A arte não muda a natureza. Outrora Cézanne, Picasso ou Matisse nos deram olhos totalmente novos. Que vaidade decerto é a pintura, que renuncia dizer ao mundo que este exista segundo suas próprias leis; mas verdade ainda mais profunda é que as coisas são o que são e passam bem sem nosso olhar. Ao mesmo tempo em que se arranjam em nossas paredes, o cubo, o cilindro, a esfera desaparecem de nosso espaço. Assim a arte devolve à natureza o que é seu. Ela faz da feiura beleza, mas a beleza seria verdade, se não existisse malgrado e até contra nós?
A tarefa da arte não é a de nos encerrar num mundo fechado. Nascida das coisas, ela nos reconduz às coisas. Ela se propõe menos a purificar, isto é, extrair das coisas aquilo que se dobra aos nossos cânones, que de reabilitar e nos conduzir, sem cessar, a renová-los. Hoje, este lento trabalho está bem próximo de se concluir. A covardia e a abjeção são a matéria de nossos romances, nossos pintores se comprazem no uniforme ou no chamativo. Entrevemos que logo não nos restará mais que devolver à nobreza e à ordem aquela dignidade que perderam. Temo, ainda assim, que atribuamos a esta falência comum da arte de falar e da de pintar causas completamente opostas. Pois uma, proibindo-se de cantar, não deseja mais que simplesmente mostrar, e a dignidade de existir não nos parece exigir outro ornamento. “Minha empresa não tem precedentes” – desde quase cem anos, que obra escrita não justificaria esta epígrafe? O pintor, em contrapartida, quis fazer do canto sua matéria, isto é, neste caso, de sua visão. Nenhum objeto entra em seu espaço que não se ajuste primeiro às dimensões deste e é a regra, escolhida de antemão, que traz em si a infinidade de suas aplicações. Mas, aqui como lá, vejo o mesmo desejo de solapar o prestígio do ser. Não admitir senão o insólito ou renovar o habitual são coisas, cremos, de todo semelhantes. Se nossa época foi aquela das artes plásticas é porque somente nelas nosso lirismo pôde achar sua medida; neste caso, a evidência desafia o canto. Dirão que este ponto de vista é aquele do mais grosseiro senso comum. É precisamente aí que eu queria chegar.
A perspectiva uma vez descoberta, reconhecemos nos objetos as dimensões respectivas que tomam em nossa retina. Aprendemos em seguida que não existem linhas e que tudo não é senão jogo de luz e de sombra, posto que a própria luz é cor e que a mais simples cor nasce da justaposição de vários tons. Nossa visão foi modificada? Mostre a uma criança um quadro de Picasso; ela reconhecerá um rosto que um adulto penará para descobrir. Mostre então um quadro antigo e ela dará a este último sua preferência. Se Rafael não tivesse existido, teríamos o direito de chamar o cubismo de loucura ou de garrancho. Guernica não refuta La Belle Jardinière, nem esta aquela, mas não creio que me arrisco muito em afirmar que uma destas obras foi, é e sempre será mais conforme a nossa visão normal dos objetos que a outra. “A maçã que como não é aquela que vejo”, esta frase de Matisse define tão-somente a arte moderna, não a arte como um todo. Chamamos, precisamente, clássicos os períodos onde a beleza segundo a arte e a beleza segundo a natureza pareciam ser um só. Estamos livres para exagerar suas diferenças. Duvido que o poder da arte sobre a natureza seja maior.
Uma arte nasceu que agora nos dispensa de celebrar a beleza e fazê-la nossa pelo nosso canto. Nada como o cinema demonstra melhor a vaidade do realismo e, ao mesmo tempo, cura o artista deste amor-próprio do qual por toda parte ele perece. Uma longa familiaridade com a arte não nos fez senão mais sensíveis à beleza bruta das coisas; somos tomados por uma vontade irresistível de olhar o mundo com nossos olhos de todos os dias, de conservar conosco esta árvore, esta água que corre, este rosto alterado pelo riso ou pela angústia, tais como são, a despeito de nós.
Gostaria de dissipar um sofisma. Onde não há intervenção do homem, se diz, não há arte. De acordo, mas é sobre o objeto pintado que o amador lança primeiro seu olhar e, se ele considera a obra e o criador, é somente através de uma reflexão posterior. Assim, o objetivo primeiro da arte é o de reproduzir, não o objeto, sem dúvida, mas sua beleza; o que chamamos de realismo não é senão uma busca mais escrupulosa dessa beleza. A crítica moderna nos habituou, pelo contrário, à ideia de que só gostamos daquilo que é pretexto à obra de arte: se o artista dirige nossa atenção a objetos que o senso comum ainda julga indignos, é que ele teria aqui mais o que fazer para nos seduzir. A beleza de um canteiro de obras ou de um terreno baldio nasceria do ângulo sob o qual o artista nos força a descobri-los. Todavia, tal beleza não é outra que a do terreno baldio e que a obra mesma é bela, não porque nos revela que se pode chegar ao belo a partir do informe, mas porque aquilo que julgávamos informe é belo. Chego então a este paradoxo, o de que um meio de reprodução mecânico como a fotografia é em geral excluído da arte, não porque ele sabe só reproduzir, mas porque desfigura precisamente ainda mais que o lápis ou o pincel. O que resta de um rosto num instantâneo de um álbum de família, senão uma insólita careta que não o é? Congelando o movimento, a película trai até mesmo a própria semelhança.
Devolvamos, pois, à câmera aquilo que pertence somente a ela. Mas não é dizer muito que o cinema é a arte do movimento. Somente ele faz da mobilidade um fim, não uma busca por um equilíbrio perdido. Observe dois dançarinos: nosso olhar não se satisfaz senão quando o jogo de forças se anula. Toda a arte do ballet não é senão a de compor figuras, aqui o movimento mesmo é o simples efeito do princípio da inércia. Pensemos agora em Harold Lloyd gesticulando do alto de seu andaime, no gângster que espera o instante no qual uma distração do policial lhe permitirá apoderar-se da arma que o ameaça. Estabilidade, movimento perpétuo, tantas violências feitas à natureza. A mais realista das artes, ingenuamente, as ignora.
Nanook, o Esquimó é o mais belo dos filmes. Era necessário um trágico que estivesse a nossa altura, não do destino, mas da dimensão mesma do tempo. Sei que o esforço do cineasta tende, há cinquenta anos, em rebentar os limites deste presente onde ele nos encerra de antemão. Todavia, resta que sua destinação primeira é a de dar ao instante um peso que as outras artes lhe negam. O patético da espera, que alhures resulta grosseiro, nos lança misteriosamente ao coração da compreensão mesma das coisas. Pois nenhum artifício, aqui, é possível para dilatar ou encolher a duração, e todos os procedimentos que o cineasta julgou frequentemente no dever de empregar – por exemplo, o da “montagem paralela” – voltaram-se rapidamente contra ele. Mas Nanook nos poupa dessas artimanhas. Não citarei senão a passagem onde se vê o esquimó agachado no ângulo do quadro, à espreita do bando de focas adormecido na praia. De onde vem a beleza deste plano, senão do fato que o ponto de vista que a câmera nos impõe não é nem aquele dos atores do drama, nem mesmo o de um olhar humano, ao qual um elemento, em detrimento dos outros, teria chamado a atenção? Cite um romancista que tenha descrito a espera sem, de alguma maneira, exigir nossa participação. Mais que o patético da ação, é o mistério mesmo do tempo que constitui aqui a nossa angústia.
Ao contrário das outras artes, que vão do abstrato ao concreto e, fazendo desta busca do concreto sua finalidade, nos escondem que seu fim último não é o de imitar, mas de significar, o cinema nos lança aos olhos um todo do qual será permitido desprender um dos múltiplos significados possíveis. Tal sentido, é da aparência mesma que nos é necessário extrair, não de um além imaginário do qual tal aparência seria tão-somente um signo. Concebemos que o real aqui é matéria privilegiada, pois tira sua necessidade da contingência mesma de sua aparição, tendo podido não ser, podendo agora apenas ser, visto que foi. Pela primeira vez, além do poder de exprimir, o documento acede à dignidade da arte. Entrevemos uma das consequências de tal condição, a mais perigosa de todas: que o cinema não se distinga em pintar os sentimentos antes que estes nasçam de nossa relação incessante com as coisas e, coisas eles mesmos, não sejam mais que o movimento ou a mímica que eles nos ditam, a cada instante. E qual é o melhor juiz da autenticidade do gesto que sua eficácia? Não é mais a paixão, mas o trabalho, isto é, a ação do homem, que o cinema escolheu como tema.
Nanook constrói sua casa, caça, pesca, alimenta sua família. O importante é que nós o sigamos nas vicissitudes de sua tarefa da qual aprendemos lentamente a descobrir a beleza. Beleza que esgota a descrição e mesmo o canto. Pois, ao contrário dos heróis épicos, é no curso da luta que nosso homem é grande, não na vitória como coisa dada. Que arte, até hoje, soube pintar a ação abstrata a esse ponto de intenção que lhe dá um sentido ou do resultado que a justifica? Tomei como exemplo, de propósito, um documentário, mas a maior parte dos filmes, os grandes como os piores, não tratam eles, em seus melhores momentos, daquilo que está em vias de se fazer, não de veleidades, triunfo ou arrependimentos? Carlitos penhorista, Buster cozinheiro ou mecânico, Zorro, Scarface, Kane, Marlowe, o sedutor ou a mulher ciumenta, tantos artesãos, hábeis ou canhestros, que julgamos ao trabalho.
No extremo oposto de Flaherty, situarei Murnau. Que eles tenham outrora colaborado no mesmo filme, Tabu, não parece, em absoluto, resultado de um malicioso acaso. Sabemos que, antes de rodar Aurora, Murnau tomou o cuidado de construir todo um mundo, do qual seu filme não é senão o documento. O desejo pela trucagem nasce de uma necessidade ainda mais exigente de autenticidade. Logo que se trata de exprimir algum transtorno interior, e não mais de agir, o ator trai a si mesmo, liberto da limitação das coisas, e sua máscara tem de ser modelada na massa de uma nova matéria. Pobre aparência de um rosto se não sentimos todo o espaço pesar sobre cada uma de suas rugas. O que significaria o brilho do riso ou a crispação da angústia, se eles não encontrassem seu eco visível no universo?
Com a metáfora, reencontramos decerto o canto. Toda a arte, se quisermos, consiste em nomear cada coisa com um nome que não é o seu. Mas, livres do intermédio das palavras, saboreamos o estranho prazer de fazer de Aquiles ao mesmo tempo guerreiro e torrente, deus e cataclismo. Para que acoplar dois termos que só a imperfeição da linguagem nos obriga a isolar?
Pastor-promontório,
sóis-molhados,
terra azul como uma laranja, o esforço da poesia moderna foi o de sacudir a inércia primitiva da palavra; mas, providos agora do direito de dizer tudo de tudo, de que nos serve utilizá-lo? Viva, portanto, o cinema que, pretendendo apenas mostrar, nos dispensa da fraude de dizer! Poema-cinematográfico, poesia descritiva, o mesmo contrassenso. Não importa mais cantar as coisas, mas sim fazer com que elas cantem por si mesmas.
Durante Nosferatu, deixamos por um instante o país dos fantasmas para acompanhar a lição de um biólogo que explica aos seus alunos o poder aterrorizante de uma dessas plantas em forma de hidra que se alimenta de insetos. Perdoaremos ao maior dos cineastas por ter, através deste artifício, indiscretamente entregue a chave de sua simbologia. Assimilar a ideia à ideia ou mesmo a forma à forma, como queria Eisenstein, repugna à arte do movimento e a figura que nos fascina sobre a tela ou na pedra esgota aqui o nosso olhar, se ela dura. O movimento é o ser de cada coisa, condenando-a a sua função, absorvente ou radiante, sórdida ou nobre e, como na Bouche d’Ombre, implicando um julgamento moral. Duas direções privilegiadas, centrífuga ou centrípeta, dividem o mundo e a cada espécie atribuem sua amplitude. A morte é dissolução, o mal domínio, a vida crescimento, a pureza germinação. A ideia jorra do signo ao mesmo tempo em que o funda, como a tendência o ato.Que retórica de nossos poetas foi mais convincente? Solicitado por nosso canto, o universo, até aqui mudo, se decide enfim a responder.
O tema do desejo é cinematograficamente um dos mais ricos. Pois exige que a nossos olhos seja exposta a completa distância que, no tempo ou no espaço, separa o observador de sua presa. A espera desfruta dela mesma e o brilho terno de um pescoço ou, como em Ouro e Maldição de Stroheim, o resplendor do ouro colorem-se, para o desejo impotente, de uma sedução sempre nova. Algo que, espectadores, não deixamos de sentir frente a essas imagens impalpáveis e fugitivas que fixam nosso olhar, ao mesmo tempo realizado e desapontado. Todavia não tem o cinema outra ambição que a de embalar o deleite moroso de uma humanidade a quem a natureza revelou cedo demais os seus segredos? Há outras relações que a arte da tela se revela de partida menos apta a pintar. Não mais aquela dos corpos, mas de cada vontade, uma ao pé da outra. Não mais Creonte ou Antígona tomando o hemiciclo como testemunha de sua sinceridade. A mentira, antes, nos solicita; mas não basta que do engano apenas o acontecimento seja o juiz. É da própria hipocrisia que traz sob a máscara que o farsante tira seu poder. Tartufo não abusa senão de Orgon e talvez sua fascinação não seja assim tão potente, visto que ele não o engana totalmente. Que homenagem mais bela a Molière que o rosto hediondo de Jannings suando falsidade por todos os poros: Onofre, a resposta mesquinha de um crítico invejoso.
Mas por que, dirão, recusar a penetrar o coração do homem? A agitação em nosso rosto não é o signo de alguma comoção interior que ele trai? Signo, sim, mas quão arbitrário, visto que nega a força da falsidade e estreita ao extremo os limites desse mundo invisível ao qual ele se vangloria de nos remeter. Remontar cada um de nossos gestos à intenção que eles supõem equivale a reduzir o todo do pensamento a algumas operações sempre idênticas, e o romancista teria o direito de sorrir diante das pretensões de seu irmãozinho que batiza com o nome de linguagem essa álgebra elementar. Ir do exterior ao interior, do comportamento à alma, esta é, sem dúvida, a condição de nossa arte; mas amo que, nesse desvio necessário, longe de turvar o brilho daquilo que dá aos olhos, ela o aviva e, assim livre, a aparência dela mesma nos esclarece.
Com A última gargalhada, Murnau aborda um tema assaz ingrato, uma pura relação de alguém consigo mesmo, que é a importância que cada um dá aos seus fracassos ou triunfos, e não sei que falsa vergonha que nos impede sempre de nos compadecer com o sofrimento moral, quando ele altera até mesmo a própria máscara. Saibamos logo que o propósito do autor não foi o de provocar nossa piedade mas, supondo-a suficientemente viva em nós, de esgotá-la abarrotando-a, como faria com alguma má inclinação, crueldade ou desejo. Assim a arte nos liberta de todos os sentimentos, mesmo os bons, e justifica seu imoralismo devolvendo à ética o que lhe pertence. Admito que nosso prazer seja condenável se nasce do enternecimento ou de nosso sarcasmo, mas esses dois sentimentos muito humanos não têm absolutamente parte na fascinação que exerce em nós o destino tragicômico de nosso porteiro. Citem-me uma obra, romance, pintura ou filme, que tenha mais deliberadamente negado a nos tomar pelas entranhas, servindo-se tão-somente do prestígio dos efeitos mais tangíveis da emoção? Acrescento àqueles que censurariam na atuação de Jannings certo parti-pris de estatismo, que a imobilidade traduz aqui um estado de tensão dolorosa, não de equilíbrio. Uma familiaridade demasiado longa com as artes plásticas nos conduzira a assimilar a alegria ao repouso, a infelicidade à desordem. O que o pintor ou o escultor não obtêm senão por astúcia ou violência, “ a expressão”, é dado ao cinema como fruto de sua própria condição. Caberá, para torná-la mais intensa, nem sempre acelerar o ritmo, mas abrandá-lo até o limite insólito da fixidez.
Aurora nos leva ainda mais longe no coração desse mundo íntimo onde os sentimentos, amor e ódio, felicidade e tristeza, desejo e renúncia nutrem-se de si mesmos e morrem de seu próprio excesso. E, contudo, nenhuma concessão às facilidades da elipse e do símbolo, uma espécie de harmonia preestabelecida parece atribuir a suas vicissitudes o ritmo das modificações do céu. No derradeiro desvio de nossa busca interior, encontramo-nos de novo face ao mundo. O cenário faz parte do jogo; se ele não consente senão raramente em se animar, não deixa de regular sempre, de alguma maneira, os deslocamentos dos personagens. À tirania dos limites do “quadro”, ele substitui suas leis. Não cedamos senão com cuidado às seduções da proporção áurea e da bela imagem. Qual fotografia igualará jamais a menor das frases? Por outro lado, qual dos mais belos versos de nossos poetas se vangloriaria de exaurir a magnificência desse mundo sensível que só o cinema tem o privilégio de oferecer intacto aos nossos olhos?
As imagens de Tabu brilham com todo o fulgor dessa beleza que elas nos entregam sem intermediários e o trabalho do fotógrafo é, através do excesso da arte, o de melhor mascarar seus ardis. Ele não trapaceia senão para aperfeiçoar um decalque que, baço, teria traído. Mas nada de ceder aqui à fantasia fácil das sombras, de envolver num mesmo halo esses objetos - palmeiras, ondas, conchas ou juncos - que os raios de sol marcaram com suas estrias inalteráveis. Vestidos de uma luz que é somente deles, eles se iluminam com suas diferenças e, sob sua casca múltipla, postulam uma polpa comum. Fascinado por seu modelo, o artista esquece a ordem que se gabava de lhe impor e, ao mesmo tempo, revela a harmonia da natureza, sua unidade essencial. O canto vira hino e prece; a carne transfigurada descobre aquele além de onde ela extrai vida. Não tenho medo de chamar de sublime essa fusão espontânea de sentimentos religiosos e poéticos.
E, deste reino dos fins onde nos encontramos agora, estamos em pleno direito de condenar a ambição louca de nosso tempo, impaciente demais em dominar o universo para conhecer dele outra coisa que uma substância abstrata e maleável, com a qual ele crê abrandar sua inquietude. Rompendo com a natureza, a arte moderna rebaixa o homem que se propôs a elevar. Evitemos seus caminhos, mesmo se ela nos seduz por meio de uma distante e problemática saudação. O cinema, instintivamente, repugna todo desvio perigoso e nos desvela uma beleza que tínhamos cessado de crer eterna e imediatamente acessível a todos. Estabelece na felicidade e na paz aquilo que fazíamos fruto da revolta e da ruptura. Descobre-nos de novo sensíveis ao esplendor do mar e do céu, à imagem mais banal dos grandes sentimentos humanos. Miraculosamente, o cinema sela o acordo entre a forma e a ideia e banha nossos olhos ainda jovens na pura e uniforme luz do classicismo.
A arte evolui pelo efeito de um impulso interior, não da história. Quando muito, sem nos alterar, nos arrasta para longe de nós mesmos, e se perde nos perdendo. Saboreemos portanto nossa chance: retenhamos ciosamente em nossas mãos um instrumento que sabemos ainda apto a nos pintar tal qual nós nos vemos. Que tal certeza, tão simples, nos reassegure e nos proteja de empreendimentos inúteis. Se algum cineasta ler estas linhas, talvez se surpreenda que eu louve em sua arte aquilo que ele mais deve ao acaso e privilégio de sua condição que ao fruto de paciente pesquisa. Mas de que serve repetir que o cinema é mesmo uma arte, isto é, escolha e perpétua invenção, não utilização cega da potência de uma máquina? As obras estão aqui, e o provam por si mesmas. Assim, meu propósito não era o de mostrar que o cinema nada tem a invejar das outras artes suas rivais, mas de falar daquilo que estas, por sua vez, poderiam lhe invejar.
Vanité que la peinture foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, n° 3, junho de 1951. Tradução: Eduardo Savella e Letícia Weber Jarek.