a) Estamos no inferno: diabos na forja, diabos num cartório, diabos no forno: diabos que trabalham, diabos que brincam. Surge um táxi e dele escorrega uma fileira de animais: patos, galinhas, gansos, cabras, cães, ovelhas + dois homens. Um sujeito cai, um buraco se abre: petróleo! Um sopro bem dado, um fumacê danado: táxi destruído! Alô, projecionista! Volta a fita!
b) Estamos em Paris: do topo dum prédio haussmanniano, desce a câmera até parar num rosto de mulher loira que nos olha — que já nos olhava: antes que soubéssemos que estava ali, ela já nos olhava. É uma esquina movimentada: gente vai, carros passam, gente vem. E a loira nos olha, e a loira nos sorri: brinca e se maquia. Os passantes não entendem: não sabem se olham para a mulher ou se olham para a câmera.
Apesar de cenários tão diferentes entre si (e aqui deixa claro o autor que não interdita — pelo contrário: endossa — associações espirituosas entre o inferno e Paris) e de tempos narrativos tão aparentemente divergentes, o que salta da tela, em ambos os casos, é a mesma entidade: a liberdade.
A) LIBERDADE: O DESCARAMENTO
De 1941, fruto da Universal Pictures, é o Hellzapoppin’ (o Pandemônio, título em português que recebeu; Um estouro de inferno, como eu gostaria que se chamasse): originalmente um espetáculo de revista da dupla Olsen e Johnson, chega ao cinema pelas mãos de um grande estúdio. Piadas, esquetes, danças, malabarismos: no pandemônio a liberdade é calculada. 1) Uma queda 2) abre um buraco 3) que libera o jorro de petróleo. Ou: 1) a câmera acompanha Olsen e Johnson, 2) vê uma mulher bonita perto da piscina e nela se demora: 3) os dois percebem que a câmera não os acompanha mais e chamam-lhe a atenção para que ela siga em seu movimento original, como já fora ensaiado: como manda o script.
A dupla aqui (em constante brincadeira com o tempo — música, piada — e o espaço — palco, plano) quer se livrar da narrativa: do roteiro. “Todo filme precisa de uma história! Nunca houve um filme sem história!”, afirma o diretor do filme dentro do filme já anunciando qual será o inimigo principal desse pandemônio: a noção de uma história bem-estruturada. Rocambole que se enrola e se desenrola constantemente durante seus 80 minutos de duração, é um estouro de inferno para todo mundo que compunha a intelligentsia da época: o Rosebud do Orson Welles, as coreografias do Busby Berkeley e o universo temático dos musicais de Astaire e Rogers tampouco escapam da mira hellzapoppiniana — This is Hollywood, we change everything in here: o mote, dito como ameaça logo no início do filme, é usado neste pandemônio a favor de seus próprios intentos: como sempre na comédia, o sujeito que recebe uma rasteira vai passar a perna em quem o sacaneou.
B) LIBERDADE: A AUTONOMIA
Um cartaz escrito à mão anuncia que o filme a seguir é ganhador do grande prêmio no festival de Toulon em 1974. Tela preta: uma voz masculina, de espanhol que tem o francês como língua adicional, lê os créditos. Começam as intrigas de Sylvia Couski. Ou não: até que Sylvia e seus planos astutos surjam na tela ou sequer sejam mencionados, o filme já nos terá levado a uma praça parisiense para que sentássemos e trocássemos olhares, já nos terá feito admirar a loira que já nos admirava, já nos terá mostrado o jogo de sedução (cores, texturas) entre uma travesti e um sujeito deambulador. Num constante vai-e-vem/acelera-e-freia narrativo, Arrieta opera como Sterne no Tristram Shandy (Pandemônio avant la lettre): o que torna único um relato não é o êxito duma mera cronologia plena, mas sobretudo o controle das durações.
Todavia não se deixe enganar pelo que acaba de ler: Les intrigues não se trata de um elogio ao rigor da mão pesada do autor, muito pelo contrário — vejamos a própria tramoia de Sylvia Couski: ela quer que seu novo namorado invada o ateliê de seu ex-marido, escultor em processo de montagem de uma exposição, e roube a sua principal escultura a fim de que o artista precise exibir em seu lugar a modelo que deu origem à obra (a loira que antes já vimos atravessar a rua, provocar a câmera, perturbar o trânsito): a troca de uma escultura (visão estilizada da realidade filtrada pela sensibilidade do criador) pela exibição da mulher cujos traços lhe são a gênese (a objetividade da beleza sem o filtro do artista).
= LIVRE: SOLTO
A ficção é testemunha de seu tempo
liberta!
absolvida!
quando os corpos dos atores
testemunham o chão que pisam
testemunham o chão que pisam
— mesmo que não tivéssemos James Stewart ou Grace Kelly
ainda assim teríamos uma Janela indiscreta