O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Ana




Por Serge Daney 

Muitos bons cineastas nesse pequeno país (Portugal). Hoje, António Reis e Margarida Cordeiro nos dão, com Ana, uma suntuosa meditação. 

Nada está perdido. Fora dos caminhos rebatidos da mídia e da lembrança batida de filmes canonizáveis e pré-canonizados, ainda se encontram alguns aerólitos. Um por ano, não é nada mal. O ano 82 foi aquele de Sayat Nova de Paradjanov, 1983 bem poderia ser, do lado das surpresas fulgurantes, um ano Ana. Inclassificável, o segundo longa-metragem de António Reis e de Margarida Cordeiro. Magnífica, essa viagem ao mundo calmamente esburacado de nossas percepções, entre a precisão do sonho e a imprecisão do acordar, tudo sob a vertigem do presente. Talvez não seja suficiente a quantidade de filmes que nos fazem sussurrar, encantados, “onde estou?”. Menos por medo de estar perdido, desorientado, que para reencontrar a emoção do adormecido que, ao acordar, não sabe mais de qual plano ele sai, em qual plano “cama” ele acaba de descansar, em que mundo ele desperta. Pela gratidão por esse momento desorientado e o prazer de se dizer, formulação arcaica de uma emoção arcaica, “onde estou?”. Pelo verbo “ser” que vem antes dessa palavrinha superestimada: “eu”. Pelo despertar. 

Onde estamos nós, então, em Ana? Em Portugal, visto que os autores do filme são portugueses. Mas esse pequeno país é ainda muito grande. No norte de Portugal, na região de Miranda do Douro, onde Reis e Cordeiro já filmaram, há alguns anos, este outro filme magnífico e inclassificável que tem por nome Trás-os-Montes. Ali e em nenhum outro lugar. Ali e em todos os lugares. Porque a força de Ana, que desencoraja de antemão todas as classificações preguiçosas, é justamente esta. Faz tempo que um filme não nos recorda com tal evidência que o cinema é ao mesmo tempo uma arte do singular e do universal, que as imagens flutuam melhor quando elas lançam sua âncora em algum lugar. Ana-ficção? Ana-documentário? Esta distinção é realmente muito grosseira. Ficção documentada? Também não. 

A ficção é colocar-se no centro do mundo para contar uma história. O documentário é ir ao fim do mundo para não ter que contar. Mas há ficção no documento como há insetos nos fósseis rochosos e há documento na ficção pela simples razão de que a câmera (é mais forte que ela) registra o que colocamos na frente dela, tudo o que colocamos na frente dela. Ana-fim do mundo? Ana-centro do mundo? Há uma cena estranha neste filme. Na morada familiar onde vive Ana (e onde ela morrerá), um homem (seu filho) fala interminavelmente, como um acadêmico de férias que testa sobre um público familiar o seu curso de volta às aulas. Ele fala daquilo que conhece: intersecções estranhas entre seu país (aquela parte de Portugal) e a antiga Mesopotâmia, entre duas culturas de pescadores, duas maneiras de se mover na água. “O que é a Mesopotâmia?”, pergunta uma criança. O pai poderia dizer: é a porta ao lado. Os cineastas poderiam dizer: é o plano seguinte. Já em Trás-os-Montes, a mesma questão era feita (por outra criança): “Onde é a Alemanha?”, ela perguntava ao pai, trabalhador imigrante. Lá, dizia o homem. E sentíamos que para a criança, “lá” começava ao lado, na próxima curva do rio. Era o fim do mundo e o centro do mundo. Era uma criança. E em Ana, quando Reis lê – off – um poema de Rilke sobre o plano de um menino doente que se agita em seu sono, não se trata de um coquetismo, mas da ideia de poeta (Reis escreveu poesias, elas foram publicadas) de que existem rimas naquele mundo terreno. Reunidas, abraçadas, entrelaçadas. E que o cinema é ainda assaz local (e não provincial) e assaz universal (e não esperanto) para permiti-las surgir. É por isto que Ana pode desorientar: fazendo desaguar o Eufrates no Douro, ele nos faz perder o Oriente[1], de verdade. 

Filme de poeta, mas também de geólogos, de antropólogos, de sociólogos, de todos os “lógos” que quisermos. Reis e Cordeiro são portugueses, mas não de Lisboa (é uma capital muito provincial), e nem mesmo do Porto, eles situam seus filmes nesse Norte de Portugal para onde os turistas nunca vão (imbecis, eles correm em rebanho para o Algarve). Paisagens magníficas e desertas que devem ser vistas como ruínas suntuosas. Campo que é filmado como uma cidade. Em Ana, as árvores, as estradas, as pedras, as casas quase possuem um nome. Tudo se entrecruza, nada é anônimo. O filme é um alvoroço sereno, o ruído do vento enche e esvazia os planos como um mar. Há vazio no coração do todo de sensações como há um vazio naquela parte de Portugal. Os filmes de Reis e Cordeiro tomam nota de uma situação curiosa: o êxodo ocorreu, depois a imigração: os homens se foram, as crianças são entregues às suas brincadeiras e os velhos à guarda dos lugares. Não há supervisão dos pais, mas há supervisão dos avós, todo um jogo de olhares furtivos e ternos, surpresos e sérios. 

E a história? Há uma, se quisermos. Mas não somos obrigados a querer. Ana é o nome de uma idosa que permaneceu em sua morada, ereta como um emblema. O rosto é marcado e altivo, o corpo é pesado e digno. Ana é um pouco mais que um símbolo. Não o símbolo da terra ou de raízes ou de qualquer confusão camponesa. Ana é também uma mulher e adoece. Mas ela não cai. Há um momento admirável em que, vestida com um grande casaco de arminho, ela atravessa a campina com a elegância silenciosa de um personagem de Murnau. O Magnificat de Bach, que escutamos então, está à altura da beleza desta caminhada. A velha senhora, de costas, grita um nome: Miranda! O sangue chega-lhe à boca, ela olha suas mãos avermelhadas, ela sabe que vai morrer. Miranda é o nome da pequena cidade mais próxima e é o nome de uma vaca que se perdeu e é reencontrada no plano seguinte. Sempre há várias coisas a se responder para uma palavra. Há risco de morrer gritando sozinho no campo. 

[1] NdT: Jogo de palavras: Oriente / orientação. 

Ana foi publicado originalmente no jornal Libération, no dia 8 de junho de 1981, e republicado na coletânea Ciné Journal (Volume II, 1983-1986). Tradução: Luiz Fernando Coutinho.

Longe das leis




Sobre Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Cordeiro 

Por Serge Daney 

Perto do final do filme, um homem ensina a seu filho – um menino – os rudimentos da pesca. O barco desliza sobre a água calma, a câmera enquadra as margens que são rochosas, salientes e calmas também. Uma voz (aquela da criança) se faz então ouvir. Ela diz: “Alemanha...”. Voz off – mas ela não afirma, não interroga, antes se aventura, sonha alto. Depois, no mesmo tom: “Espanha...”. O que a imagem indica, de fato, é a Espanha ali próxima, atrás da tela de montanhas. Mas a voz que diz “Espanha” não fala mais alto do que a outra, não a corrige. É que a Alemanha também está aí, na enunciação da criança. Mais tarde no filme, a rima se cumprirá: leitura de uma carta que envia um pai, da Alemanha justamente, para onde ele imigrou. Não se trata, portanto, de um ou de outro, mas dos dois países ao mesmo tempo, reduzidos cada um a uma palavra. Há a Espanha que é o off da imagem, para lá do olhar, e a Alemanha que é o off do som, para cá da voz. Uma zona de sonho e de angústia as separa e as liga: é o que chamamos de “plano”. 

O afastamento é o tema do filme que António Reis e Margarida Cordeiro fabricaram na província de Trás-os-Montes (de onde o filme retira seu título) em 1976. No duplo sentido de estar longe (exílio) e do ato mesmo de se afastar (perda de visão, depois esquecimento). O afastamento, nos dizem aos poucos Reis e Cordeiro, é a história desse Nordeste de Portugal. É a dominação distante, incompreensível e incompreensiva da Capital (Lisboa) sobre o Trás-os-Montes. A tal ponto que as Leis, ditadas pela Capital, não chegam aos camponeses, que por sua vez se questionam: elas existem realmente? Cena-chave do filme em que Reis traduz em dialeto um trecho de A Muralha da China de Kafka, cena-chave por vermos o problema se instalar tragicamente, no real, em 1976. Afastamento que acultura a província, corta seus laços com o passado celta e pagão, torna folclore as migalhas da cultura popular sob a forma de cartões postais. Afastamento dos camponeses dos campos cultivados e das pastagens, primeiro em direção às minas da região (cena magnífica onde Armando, a criança do pião, visita a mina desativada, pingando de chuva), depois em direção à América (o pai, nunca visto, subitamente retorna da Argentina para logo partir), por fim em direção à Europa das usinas e das cadeias de produção, França, Alemanha. 

O afastamento (ou seu oposto: a aproximação) que interessa os autores de Trás-os-Montes se produz no hic et nunc do presente. Não se trata de desempoeirar desoladamente o que está enterrado, de lamentar o tempo que passa ou de exibir os tesouros que não o são para ninguém (senão para um público necrófilo, do tipo “Conhecimento do mundo[1]). Trata-se de uma operação mais exigente: chamar atenção para o que no plano (zona, eu insisto em lembrar, de sonho e de angústia) remete para além e construir assim, pouco a pouco, o que poderíamos chamar de “estado fílmico de uma província”. E para isto, Reis e Cordeiro partem não do fato da existência oficial de Trás-os-Montes (aquele dos mapas de geografia ou da burocracia de Lisboa), mas do contrário: da escavação, do rasgamento de cada “plano”, como aquele rio já citado que cava seu leito entre a Espanha e a Alemanha e que deságua, então, em Portugal. 




O afastamento não é somente um tema (sobre o qual podemos tagarelar, demonstrar sabedoria, fazer críticas apressadas), mas também a matéria do filme Trás-os-Montes. A surda enunciação de cada plano profere a mesma pergunta: haverá graus no off? Pode-se ser mais (Alemanha) ou menos (Espanha) off? Em outras palavras: qual é o estatuto – a qualidade do ser – do que sai do plano (do que o plano exprime e do que ele expulsa)? 

Supomos que nossa resposta seja esta (dela depende toda uma fruição do cinema): no off, não há graus. Quando você está distante, mesmo à porta ao lado, no cinema, você está perdido para sempre. Assim se poderia resumir, a partir de uma fórmula tipicamente obsessiva, o que é a dialética do in e do off no cinema moderno. E seria necessário acrescentar, para que a indeterminação seja total: e se você voltar, o que me prova que você é você mesmo? 

O “vestido sem costura do real”, com o qual Bazin sonhava, é sempre recortado pelo enquadramento, pela montagem, por tudo que escolhe. Mas mesmo remendado (revestido) com um contracampo que lhe dá ponto, ele é habitado por um horror fundamental, um mal-estar: o que o plano A exibia e o plano B escamoteou pode muito bem retornar no plano C, mas travestido, sem que se possa provar que não foi transformado em outra coisa. Tudo o que passa pelas bordas do off é suscetível de retornar outro. Mesmo narrativos ou representativos como eram, pessoas como Lang ou Tourneur (seguidos hoje por Jacquot ou Biette) filmavam tão somente porque esse outro, essa dúvida no seio do mesmo, era possível, gerando horror ou comicidade (cf: Buñuel, para quem este era o motivo principal). Pareço esquecer o filme de Reis, mas não. Para comprová-lo, pensemos na espantosa última cena do filme, onde um trem fura a noite, seguido, poderíamos dizer forçosamente, pela câmera que nem sempre o distingue da escuridão e que não cessa de redescobri-lo (fort/da), seja sob forma de fumaça (para o olho), seja sob forma de apito (para o ouvido). 

Para ele, já não há graus nem de afastamento temporal e nem de afastamento espacial. Também não há mais memória recente e nem memória distante. Tudo o que não está ali está, a priori, igualmente perdido – e, portanto, é este o ponto importante, igualmente a se produzir. Ruptura com uma concepção linear, gradualista da perda (de vista ou de memória) em benefício de uma concepção dinâmica, heterogênea, material. Pois produção quer dizer duas coisas: produz-se uma mercadoria (pelo seu trabalho), mas produzem-se provas (quando necessário). Cinema = exibição[2] + trabalho. É assim que, apesar de sua erudição, Reis e Cordeiro se comportam incansavelmente como se houvessem acabado de aprender o que eles comunicam a um espectador também totalmente ignorante. É preciso levar Reis a sério quando ele fala, em sua entrevista, em “tábula rasa”[3]. E ele não tem certeza de que essa atitude seja, no final das contas, preferível àquela que consiste em trabalhar a partir do conhecimento ou do suposto conhecimento do espectador, quando não a partir de uma doxa comum (geradora, como toda doxa, de preguiça saciada, particularmente devastadora nas ficções de esquerda). Inclino-me antes a pensar que o melhor – não importa em qual lado estamos da câmera – é colocar em prática o ditado mizoguchiano: lavar os olhos entre cada plano. 

[1] NdT: Organização francesa fundada em 1945 que produz e distribui filmes “postais” de diferentes partes do mundo. 
[2] NdT: Exhibition, em francês, pode se referir tanto à exibição no contexto cinematográfico quanto à apresentação de documentos a autoridades judiciárias e executivas. Daí a relação com as “provas” (pièces à conviction) na sentença anterior. 
[3] NdT: Entrevista publicada na mesma edição da revista Cahiers du Cinéma em que consta o texto em questão. 

Loin des Lois foi originalmente publicado na revista Cahiers du Cinéma nº 276, maio de 1977. Tradução: Luiz Fernando Coutinho.

Eis a questão




Sobre The Assistant (2019) 

Por Miguel Haoni 

A olho nu, podemos ver duas estrelas européias em torno das quais gravitam os filmes da nova onda feminista hollywoodiana: no polo positivo, Agnès Varda, no polo negativo, Chantal Akerman. A primeira é visível durante as festas do dia, nas praias utópicas, entre as heroínas positivas. A segunda não é visível quase nunca: sol noturno, Chantal Akerman foi uma artista violenta, selvagem, livre demais, que nunca facilitou a vida de quem tentava domesticar o seu cinema. Segundo os registros, seu momento de maior visibilidade foi com o filme Jeanne Dielman, de 1975, que mostra três dias na vida de uma dona de casa que se prostitui. Esse filme eclipsou parcialmente os outros e é, na trajetória de Akerman, um pouco a árvore que esconde a floresta. Muito se disse e se fez a partir dele, o que é compreensível: os frutos dessa árvore continuam saborosos. Em 2020, por exemplo, Jeanne Dielman apareceu em carne e osso nos dois últimos episódios da minissérie Mrs. America e foi também o espírito que assombrou o filme The assistant. O dia na vida da assistente de produção Jane (Julia Garner) é o espelho dos três dias de Jeanne (Delphine Seyrig). A câmera fixa que escancara o espaço da personagem mas preserva todos os outros, a frontalidade na observação dos deslocamentos e procedimentos completos de uma mulher que não para de trabalhar, o microfone que amplifica os detalhes de tudo, principalmente do confortável e sufocante silêncio do ar-condicionado são as três portas pelas quais o velho filme entra no novo. E a eles soma-se a presença desses travellings laterais lentos, longos, fantasmagóricos, através dos quais percorremos mais uma vez o território akermaniano. 

Entramos no filme ainda de madrugada e o sol só o iluminará com muita dificuldade. The assistant é opaco, resistente, demora a mostrar suas garras. Alguém atento, mas que não leu a sinopse, leva pelo menos uns dez minutos para descobrir que o escritório é de uma produtora de cinema, e mais uma boa meia hora para saber que o personagem do chefe é uma referência à Harvey Weinstein, o megaprodutor e criminoso sexual, acusado por mais de 80 mulheres, e sentenciado pelo Estado de Nova York a cumprir 23 anos de prisão. Avançamos cautelosamente num mundo escuro, frio, seco, violento: o nosso mundo. A violência aqui não explode, ela corrói tudo lentamente, de forma quase invisível, como um ácido muito fraco. É a violência do torturador, que não pode nunca matar a sua vítima, e que o tempo inteiro “equilibra” o jogo com um elogio, um ligeiro gesto de solidariedade, acendendo e apagando a vela da esperança. Neste kafkiano escritório, reina o silêncio, a voz humana não entra, mas de lá saem, ironicamente, filmes, obras de arte. 

Ambientado numa fábrica de imagens, The assistant é, porém, marcado por duas invisibilidades complementares. A primeira é a de Jane, a assistente “insignificante”, apesar de presente em todos os planos do filme. A segunda é a do chefe, função sem nome, voz sem corpo, que nunca aparece apesar de onipresente. Tudo no escritório acontece em função dele, das necessidades do seu corpo. A máquina lhe cobre e protege, como o casco da tartaruga. Do outro lado, Jane é o coelho, ágil e eficiente, que repete “I’ll fix it” antes de resolver tudo (ou quase). Entre o corpo mórbido do chefe, que se põe de pé graças à injeção de altas doses de Alprostadil, e a alta performance de Jane, verdadeira atleta do cotidiano burocrático, existe um abismo. E apesar dos esforços, ela não cabe neste mundo. Ela é mesmo fisicamente impedida de entrar nele. Mulher entre os homens, “feia” entre as belas e , acima de tudo, humana entre as máquinas, Jane é quase um corpo burlesco. Nas suas mãos os equipamentos funcionam mal, ela está sempre atrapalhando, interrompendo o trabalho dos outros. Durante a limpeza, quando coloca uma rosquinha na boca, num gesto não calculado, ela é flagrada por um superior. Corpo burlesco num filme de horror. 

Humana, demasiado humana, Jane esquece o aniversário do pai, mas telefona e conversa com ele no fim do dia, tenta ser babaca com o motorista do chefe, mas não consegue e acaba pedindo desculpas. É esta humanidade que lhe impede de se integrar num mundo escrito muito torto em linhas muito certas. Humanidade não, sororidade. Não precisamos ter medo das palavras: trata-se aqui de feminismo. Pois é depois de conhecer a nova assistente, ex-garçonete que veio tentar a vida na cidade grande, e que será comida pelo ogro, que Jane procura o RH, e vai olhar no olho, pela primeira vez, do abismo das ilusões. As palavras não chegam a sair, mas o gestor entende tudo, antecipa tudo, como a enorme caixa de lenços, presente desde o começo da cena, esperando pelas lágrimas que certamente virão. E é diante das intermináveis fotos de atrizes que saem da impressora, rostos sem nome, sem história, "desperdícios de tempo”, que a questão se impõe: “Me Too or not Me Too?”* Perto de Akerman e longe de Varda, o filme não declara as suas intenções, mas engaja o espectador de forma incontornável. Sim, há algo de podre no reino do cinema e The Assistant devolve a questão ao adormecido cinéfilo. Cabe a nós, que gritamos como crianças mimadas sempre que alguém chama John Ford de racista, responder sempre: no meio de tantos horrores, é realmente isso o que nos atinge? 

* Pierre Léon, “L’homme invisible était une femme”, Cahiers du Cinéma n°771, dezembro de 2020, p. 53.

Um filme como os outros




Sobre O preço da verdade (2019) 

Por Miguel Haoni 

Era uma vez, num mundo não tão distante, uma cidade onde os diretores de cinema eram contratados para fazer filmes. Qualquer tipo de filme. Na Hollywood dita clássica, para cada “autor” que entrava na História da Sétima Arte, uns 20 artesãos anônimos, filmmakers tarefeiros, preparavam o terreno. Cada Nascimento de uma nação, Cidadão Kane ou Um corpo que cai era gerado, não apenas pelo gênio de seus realizadores, mas também por um contexto, um sistema, uma multidão silenciosa de filmes pequenos e médios que alargavam as estradas da criação. Essa era a época do star-system, na qual os atores e atrizes sustentavam a ponte entre as plateias e os filmes. Reis e rainhas no tabuleiro da indústria, eles descobriam diretores, escolhiam as histórias, punham a máquina para funcionar. Era a época também das encomendas, dos produtos que chegavam na mesa dos cineastas praticamente prontos: roteiro, elenco, equipe técnica, trilha sonora, tudo definido. Sobrava então ao metteur en scène, a mise en scène. Dizem que era uma época de ouro, o auge da arte cinematográfica, na qual a criação individual nascia apesar das pressões industriais. Reza a lenda, que nessa época, um diretor chamado Jacques Tourneur fez unicamente filmes de encomenda - à exceção de O testamento de Deus, seu único projeto pessoal –, pôs seu talento técnico a serviço das ordens do estúdio. E nesse gesto, fez também alguns dos filmes mais belos do mundo. 

Olhando em retrospecto, muito depois do fim daquela época, podemos talvez reconhecer que a arte não se fez apesar da indústria, mas graças a ela. E no meio da crise criativa braba que afeta o cinema hollywoodiano nos dias de hoje, procurar uma ou outra resposta no passado talvez ajude. Depois de um ano sem blockbusters, seria justo esperar que Hollywood ressuscitasse os filmes pequenos. No meio de uma paisagem desertada de personagens interessantes, os atores (e principalmente as atrizes) precisaram se desdobrar na dupla função de produtores. Este ano, veteranas (Charlize Theron, Cate Blanchett) e novatas (Elisabeth Moss) tiveram que passar novamente pelas mesas de negociação antes de entrarem nos sets. Podemos esperar que as estrelas tenham mais sorte na sua busca por bons realizadores, artigo, realmente, em falta no mercado. Por fim, esperamos também que mais e melhores encomendas cheguem aos escritórios dos diretores. 

É uma lista de Natal exigente, mas um filme recente conseguiu entregá-la: O preço da verdade. Trata-se de um projeto do ator Mark Ruffalo, que, encantado pela história do advogado Robert Bilott e da sua cruzada contra a megaempresa de produtos químicos DuPont, resolveu levá-la às telas, contratando para isso o cineasta Todd Haynes. Depois de um curto prólogo, em 1975, em que três jovens se divertem tomando banho em águas contaminadas, somos jogados no presente da ação, 23 anos depois, no qual, sem nenhuma preparação, uma reunião de advogados é bruscamente interrompida pela visita não anunciada de um fazendeiro, Wilbur Tennant (Bill Camp). Sem ser convidada e sem pedir licença, é a própria história do filme que invade a primeira cena. A partir daqui, ela será a protagonista. 

O que o Sr. Tennant coloca nas mãos de Bilott é uma coleção de filmes antigos, fitas VHS com registros dos pesadelos vividos na sua fazenda nos últimos anos, graças ao despejo irregular dos dejetos químicos da grande fábrica vizinha à sua propriedade. Tudo o que o fazendeiro mostra para o advogado faz retornar ao primeiro plano um horror reprimido sob a placidez da paisagem americana, que macula, de forma incontornável, a superfície excessivamente limpa do filme. A partir daqui O preço da verdade acompanha as aventuras do advogado e mais uma vez, Hollywood nos conta a história de um homem forte, a lutar sozinho contra tudo e contra todos, enfrentando ventos e marés, disposto a qualquer sacrifício pela vitória dos bons princípios. Ao lado, uma esposa, ambiciosa mas resignada, que começa resistindo mas depois aceita o seu papel no legítimo jogo, de amá-lo e repeitá-lo, na saúde e na doença. Em algum momento, evidentemente, ela saberá se impor e reclamar seus direitos. Já vimos essa história mil vezes. Então como é que um filme fundamentado em clichês tão constrangedoramente paquidérmicos pode ser bom? Uma voz do passado poderia responder: o filme não é bom apesar dos clichês. Ele é bom graças a eles. 

Country roads, take me home 

O preço da verdade é um filme completamente convencional. E é preciso entender que o conjunto de convenções, normas e regras que cercam um período artístico, uma escola ou uma produção nacional não são, a priori, inimigos da criação. No caso hollywoodiano, as sempre mutantes regras do jogo ofereceram uma larga margem de manobra para o nascimento de diversas estéticas, mais ou menos livres. Além disso, um clichê não vira clichê à toa. Os motivos recorrentes, sedimentados na memória coletiva, servem como atalhos emocionais, linhas retas de comunicação entre as origens e os destinos criativos. Caminhos mais curtos, mas não menos belos. Tomemos por exemplo, o percurso de Robert Bilott (Mark Ruffalo), o herói da história. Ele começa o filme resistindo em tomar parte na luta da comunidade, numa cidade controlada pelos donos do dinheiro, cujo vilão oferece a ele um lugar seguro ao seu lado, mas abaixo. Para demovê-lo é preciso apelar para a memória afetiva, falar da avó, da terra-natal, das lembranças da infância. Só assim ele pode acessar dentro de si o fio de humanidade que lhe dará a força necessária para enfrentar os inimigos. Essa é a descrição sumária dos faroestes que Anthony Mann realizou com James Stewart no anos 50. Billot trabalha num escritório rico, mas veio da pobreza. Quando, ainda na primeira parte do filme, Phil Donnelly (Victor Garber) lhe chama de caipira no meio de um jantar elegante, Billot recebe o último impulso que precisava para a reconciliação consigo mesmo, através do encontro com suas raízes. A partir dali, o caipira declara a sua guerra. 

No cinema clássico, James Stewart encarnava o americano por excelência. Seus personagens eram sempre muito carismáticos, mas com uma dose suficiente de neutralidade para que os espectadores pudessem se projetar neles. Mark Ruffalo passa, com o corpo pesado e o ar cansado, obsessivo mas ligeiramente ausente, pelos melhores momentos de Stewart: além de Anthony Mann, lembramos de Frank Capra (o defensor da virtude que luta, sozinho e exausto, contra o sistema), Alfred Hitchcock (a testemunha ávida de ficção, o investigador fóbico, enlouquecido pelo seu caso) e John Ford (o homem civilizado que precisa revisitar as regras do oeste selvagem para se reconciliar com a História). As flores mortas cultivadas por Sarah Bilott (Anne Hathaway) tem alguma coisa de crepuscular, lembram o cactus rosebud no túmulo do homem que matou o facínora. No meio do longo esclarecimento que o advogado apresenta para a sua esposa (e através dela para o espectador), uma complexa montagem paralela mostra, entre outros, o episódio do nascimento de um dos filhos. Num plano curto, uma porta se fecha para Bilott, separando-o de sua família. Ninguém dirá “Let’s go home” para este cowboy solitário. E não é à toa que os créditos subirão sob o canto melancólico de Johnny Cash. 




Mas apesar do respeito às convenções históricas, e mesmo carregado de nostalgia, é no tratamento dos clichês contemporâneos que o filme mostra a sua melhor face. Se O preço da verdade é, por todas as razões dramáticas mencionadas, um arquetípico “filme de Oscar” ele é ainda mais convencional do ponto de vista formal. A fotografia dominada pelos filtros azuis e amarelos, no contraste entre interior e exterior, espaços quentes e frios são as novas regras de um certo anonimato estilístico. Lá onde James Gray, por exemplo, imprimia seus dramas, aqui essas luzes aparecem como uma forma acadêmica, mas não menos sedutora. As soluções dramáticas de decupagem são também arquibatidas. O filme é estruturado em três atos principais: no primeiro o personagem é engajado na história, no segundo ele encampa a investigação e no terceiro o filme vira para os tribunais, com as ascensões e quedas do herói. Nos três um motivo cênico se repete: a inversão entre as consequências e as causas da ação dramática. É o que garante o suspense na cena do ataque da vaca louca, ou a surpresa na cena em que o advogado local protocola o processo contra a DuPont. É também o que imprime o sentimento de medo na cena em que o personagem hesita em dar a ignição no carro. 

Uma passagem, porém, retém um pouco mais a atenção. No meio do filme, exausto e desesperançado, Bilott observa os seus filhos brincando, fora de foco e de campo. Um golpe do acaso revela a capa de um livro infantil no qual se lê a palavra “Teeth”. Corta para o flashback de uma cena vista no início do filme, as meninas andando de bicicleta, e um detalhe é revelado em câmera lenta: um sorriso com os dentes pretos. A cena volta para o presente. Campo-contracampo: lento zoom na capa do livro, lento zoom no rosto do ator que vai se iluminando gradualmente enquanto uma ideia nasce (ao mesmo tempo em que a música vai crescendo). Corte brusco, explosão musical: Bilott corre pro telefone, liga para o técnico e descobre que um dos efeitos do consumo excessivo do flúor é o escurecimento dos dentes. Voilà: a DuPont contamina a cidade através da água. E de novo: já vimos essa cena mil vezes. É quase um passo a passo no protocolo do cinema comercial contemporâneo das cenas de “descoberta por acaso” ou de “nascimento da ideia”. Mas quando esta cena entra neste momento do filme, nada disso importa. É um pouco o que acontece nas passagens aludidas no parágrafo anterior: uma arte do tempo, quase culinária, de inserir os ingredientes certos na hora certa. Como disse um velho amigo a muito tempo atrás, “não se trata aqui de cinema novo, mas de cinema de novo”. E ainda bem. 

Ainda estou aqui 

Podemos atribuir a força de O preço da verdade ao “gênio do sistema”, a este encontro entre alguns talentos com as condições ideais para o seu desenvolvimento . Mas também não podemos ignorar que o filme tem um diretor e esse diretor se chama Todd Haynes. Como obriga a Política dos Autores. Confesso, porém, que o esforço de enquadrar o filme no percurso estilístico de Poison, Velvet Goldmine e I’m not there me interessa muito menos do que ver esse filme por suas virtudes próprias, produto de uma encomenda, impessoal, no qual o diretor me parece ter humildemente posto a sua expertise técnica a serviço da história. E onde as partes mais interessantes não são necessariamente as mais originais. Pensando em Malmkrog, o filme mais original que eu vi neste duro ano de 2020 (apesar de ter lido aqui e ali sobre uma suposta filiação à Manoel de Oliveira ou aos filmes mais hostis de Rohmer, A inglesa e o duque e Agente triplo, proposição que não me convence absolutamente), com o seu dédalo discursivo, sua estrutura ambiciosa, seu rigor no agenciamento espaço-temporal, seu trabalho árduo com as durações que me deixaram absolutamente indiferente, talvez a aparente falta de originalidade de O preço da verdade, seja na verdade menos vício do que virtude. Uma arte escondida, ancestral e ainda hoje ignorada. 




Durante a já mencionada explicação que o advogado deu à sua esposa, Bilott descreve o momento em que descobriu, durante a exaustiva análise dos documentos, a história de Bucky Bailey, a criança deformada cuja mãe trabalhava na linha de produção da fábrica durante a gravidez. Este personagem nasce em O preço da verdade como uma ideia comunicada. Numa cena chave, na parte final do filme, Bilott submete o então atual presidente da DuPont à apresentação exaustiva dos relatórios da própria empresa sobre os riscos da sua produção. Em determinado momento, a montagem aproxima três ocorrências de uma das figuras retóricas centrais do advogado: “You see that? You see that? You see that?”. Evidentemente, ele não viu nada. Quando a sessão é encerrada, Bilott saca a sua última carta, a foto de Bucky bebê. Saímos do texto para a imagem e o efeito é muito mais forte. Algumas cenas à frente, num posto de gasolina, um homem pergunta o placar do jogo. É o Bucky Bailey em pessoa! O verdadeiro, agora adulto, com a força da sua presença, seu olho deformado e seu bom-humor desarmante. E o verbo se fez carne, saímos enfim da fotografia e entramos no cinema. Quando, no último plano do filme, Mark Ruffalo responde à provocação do juiz: “I’m still here”, podemos ouvir nessa réplica um pouco da voz desse cinema. Um cinema antigo, invisível, que às vezes parece morto. Só às vezes.

“O traidor”: condenado à penitência




Por Camille Nevers 

Através do destino do mafioso arrependido Tommaso Buscetta que desencadeou um processo maior denunciando seus antigos aliados da Cosa Nostra nos anos 80, Marco Bellocchio assina um afresco magistral sobre a decomposição de um mundo sem valores. 

Neste grande filme que é O traidor, dois gêneros, um político e outro intimista, fazem um pas chassé: um filme de tribunal e um filme de “família” alternam-se e misturam-se. Em um filme de família, a abertura coral é signo de romanesco e de tragédia emboscados, maneira de atestar que, tão logo terminada a grande reunião (esse falso “teatro” libera o anfitrião dos lugares), a discórdia e a guerra se abaterão. O traidor começa, como não poderia deixar de ser, durante essa festa à guisa de trégua fingida: a festa de Santa Rosália, protetora e padroeira de Palermo, esse 14 de julho à siciliana. Os diferentes clãs da Cosa Nostra, corleoneses e palermitanos, abraçam-se, dançam, bebem, medem-se dos pés à cabeça em uma virilidade requirida, posam para a foto de grupo, uma arma sob a jaqueta depois dos fogos de artifício. Estamos na aurora dos anos 80. 

O traidor abre-se logo a uma sutileza desconcertante que não o abandonará mais, a essa espécie de polissemia no tapete — Marco Bellocchio, grande cineasta jamesiano[1]. Isso por causa da indiscernibilidade do sentido das palavras, de sua periculosidade: o voto de fidelidade ao meio que compromete para sempre, pela vida e pela morte. Esse duplo sentido constante, essa indecisão, recobre pouco a pouco o desenrolar dos fatos até alcançar uma ambivalência moral de envergadura: daí o sentido relativo de termos como “padroeira” e “chefe” (capo dei capi) da cidade, “honra”, “lealdade”, “traição”, “justiça” ou “família”, conferindo valores sucessivos e contraditórios ao bem e ao mal, cuja potência de evocação é função da variável de ajustamento de uma consciência moral: a de Tommaso Buscetta, o traidor leal. 

Vingança fria 

Toto Riina, corleonese, está prestes a decretar o massacre dos chefes de famílias rivais de Palermo para assentar seu poder absoluto sobre a Cosa Nostra. “A segunda guerra da máfia” que ensanguenta a Itália dos anos 80 (em torno de mil mortos) é declarada por ele, assim como é ele quem capitaneia o assassinato de edis do polo antimáfia que trabalham no encarceramento de 475 mafiosos e na sustentação do maxiprocesso em Palermo a partir de 1986, entre os quais, eminentemente, o assassinato deplorável do juiz Falcone, outro personagem central, assombrado, do filme. Bellocchio e seu grande ator Pierfrancesco Favino[2] se dedicam a fazer com que esse Buscetta, aquele por quem o escândalo vem, saia do anonimato de pano de fundo dos ditos “arrependidos”. A chama que permitiu acender o grande fogo é ele e é ele o assunto do filme, seu estranho herói, não Riina, o personagem-título: o Traidor. O homem honrado não cumpre seu voto, trai os traidores — ambivalência da ideia de traição —, devota-se a uma nova “causa” à qual se mostrar fiel, por coerência moral e não por arrependimento, como ele se defende: a luta contra o crime, inclusive de Estado, a justiça pública prestada, que é também o único meio de sua vingança fria, de se fazer justiça em memória de seus filhos que ele tem remorso de ter abandonado e que foram executados durante seu exílio no Brasil. 




A sutileza de Bellocchio consiste, mais uma vez, em filmar seu monstro “de lado”, em autorizar-se um ângulo de viés, entre hagiografia e verdade histórica, contrafábula edificante e literalidade do ponto de vista: por meio da esposa do Duce em Vincere ou de Buscetta aqui. O retrato do traidor oferece um ponto de vista privilegiado sobre Riina e a Cosa Nostra ao mesmo tempo em que sobre a sociedade italiana, sua justiça, seus arcanos, seus caminhos e descaminhos administrativos, penitenciários ou judiciários, cujos detalhes, a vida carcerária, os coquetismos, as caras, o cineasta escruta com grande minúcia, destacando a relação inédita entre Buscetta e Falcone, que só têm em comum o fato de fumarem muito. Esse respeito grave entre inimigos cúmplices, dois homens cuja cabeça foi posta a prêmio, que fumam um cigarro após o outro durante sua protelação. O universo de Bellocchio, profundamente assombrado pela morte desde sempre, encontra, com O traidor, sua meditação mais atordoante, o mais belo dos filmes-tratados do cineasta: um tratado dos tormentos. 

O traidor é entregue ao fardo infinito de uma consciência criminosa. Seu único medo é feito de pura espera, a espera de seu castigo. O que há de impressionante no estilo de Bellocchio é seu falso naturalismo — não fingido: falso. Já que todo naturalismo estético provém do fingimento, da imitação mais “natural” possível de uma realidade relatada, representada e reproduzida. Mas então, o que é esse “falso natural” que torna o filme tão belo e cambiante, modulando sua tonalidade de modo tateante, sequência após sequência? Digamos que é esse algo de jamesiano de Bellocchio. Esse “fantástico naturalista”, esse gosto pelo claustro, pelo altar, pelas alcovas e confissões, pelas casas assombradas, pelas celas e penitências. Pelos buracos de fechadura e pelas imagens no tapete. Retratos opacos, mais cerebrais que psicológicos, ao sabor de diálogos brilhantíssimos, muito agudos, em que cada palavra é familiar, mas sua totalidade, indecifrável, sentido suspenso no enigma como nos lábios das personagens. Veja a figura magnífica de Totuccio Contorno, o ignorante raivoso que só fala siciliano, o único amigo que resta, ele também arrependido por ter se safado de sua execução. É a ocasião de cenas de tribunal babélicas, hilárias, com os olhares e as línguas dispersos como ao longo de todo o filme: italiano, romano, siciliano, português e a canção em espanhol. O traidor, como todo grande filme de família, segue o processo de uma dispersão. 

De jaula em jaula 

Bellocchio tem uma maneira genial de deixar “dias” entre os planos, os rostos, os tempos de sua crônica. Essa maneira de pôr a questão da montagem e da decupagem em termos de junções visíveis e de intervalos deixados, por uma qualidade de solidão, e de saber isolar os corpos, os olhares, as presenças postas. O traidor, sem satisfazer-se com uma virtuosidade sistemática, deixa ver os vazios entre as coisas inajustadas. Os saltos insensatos no vazio (a esposa de Buscetta segurada acima do vazio entre dois aviões) formam os traçados grossos e finos de um filme incessantemente renegociado. É o que há de mais fascinante, o tempo que o filme passa nisso, administrando esses pequenos enclaves, esses momentos curtos que são povoados apenas por esperas e deslocamentos, de um cômodo a outro, de um país a outro, de uma cena à seguinte: como o momento estonteante de repatriação do Rio no avião, todos esses homens esparramados, cochilando, ou mais tarde, após a paranoia no restaurante, a fuga de carro em direção a um novo exílio americano. Idem para os tempos passados entre sala de espera e sala de tribunal e retorno, de jaula em jaula dos mafiosos que fazem o circo. 




Filmar seu concidadão como um estrangeiro é a melhor maneira de captar à distância desejada seu território interior e seu país objetivo, sem folclore do em casa. Bellocchio precede Buscetta, arrasta-o através de países e línguas, ao sabor do cara-a-cara que se deve chamar de “cara-a-costas” (cenografia magistral no tribunal). É o retrato perfeito de um siciliano. E de sua resistência sem glória e sem desonra. É a prova de que, diferentemente do cinema francês, o cinema italiano existe, persiste, documentando sempre, resistindo a si mesmo e a sua pátria. Não uma mise en scène pura, puramente uma mise en scène: a liberdade conquistada de uma velhice relaxada, anárquica, nada a perder, desse cineasta que realiza um filme de gênio, queimando os olhos. 

[1] https://next.liberation.fr/cinema/2019/10/29/marco-bellocchio-representer-le-proces-comme-une-symphonie-du-desordre-et-de-la-provocation_1760424
[2] https://next.liberation.fr/cinema/2019/10/29/pierfrancesco-favino-calme-d-or_1760428

“Le Traître”, gibier de pénitence foi publicado no jornal Libération em 29 de outubro de 2019 (https://next.liberation.fr/cinema/2019/10/29/le-traitre-gibier-de-penitence_1760427). Tradução: Rafael Zambonelli.