Por Miguel Haoni
A cena de abertura de Jejum de amor (Howard Hawks, 1940) é uma carta de intenções do seu autor. Hawks foi um dos maiores observadores da natureza humana. Compreendendo o “humano” enquanto espécie e a sua “natureza” do ponto de vista biológico, o diretor privilegiava, em suas cenas, a pura expressão dos desejos. Quando o crítico Jean-Claude Biette escreveu a propósito de O inventor da mocidade (1952) – outro filme que põe a nu este interesse de investigação – “A mulher (ou o homem) é um animal realmente estranho” [1], ele expõe uma ideia recorrente ao espectador diante dos filmes de Hawks.
Compreender o ser humano na qualidade de animal é compreender a aventura de sua dupla função: social e natural. Em Jejum de amor, Hildy (Rosalind Russell) está dividida entre a sociedade e o mundo. A sociedade é o casamento com Bruce (Ralph Bellamy) e a paz doméstica desejada pela personagem. O mundo é a “sua” natureza selvagem e o pertencimento a esta selva urbana, meio ambiente do jornalismo, encarnado no gestual simiesco de Walter (Cary Grant).
Segundo o histórico texto de Jacques Rivette, “Gênio de Howard Hawks”: “Hawks não se interessa por sátira ou psicologia; a sociedade não importa mais aos seus propósitos que os sentimentos; diferente de Capra ou McCarey, Hawks está preocupado somente com a aventura do intelecto. Quer ele oponha o velho ao novo, a soma de conhecimento do passado à outra de formas degradadas da vida moderna (Bola de Fogo, A Canção Prometida), ou o homem à fera (Levada da Breca), ele permanece com o mesmo tema da intrusão do não-humano, ou de um avatar mais cru da humanidade, numa sociedade altamente civilizada.” [2] Isso quer dizer que a pressão interior é sempre maior que a pressão exterior e na luta entre essas duas forças, Hawks expõe tanto a fragilidade do tecido social, quanto a arbitrariedade do contrato civilizacional.
O que acontece a partir da primeira cena e em toda a duração do filme é o esforço de Walter para convencer Hildy de que a escolha racional é uma idiotice e mesmo uma agressão contra a sua verdadeira natureza. É necessário, nesta lógica, refundar o pacto ameaçado entre o indivíduo e a sua verdade. Isto já tinha sido desenvolvido em A levada da breca (1938) e o reencontraremos mais tarde em Bola de fogo (1941) e no lado cômico de Hatari! (1962). Trata-se do grande tema das comédias de Hawks.
Nestes filmes, a luta do personagem secundário é para trazer de volta o protagonista a ser quem ele é. Existe aqui um sentido ontológico, igualmente destacado no texto de Rivette, que termina com as seguintes palavras: “Ele prova o movimento ao andar, a existência ao respirar. Que o que é, é.” [3] As coisas são o que são e é preciso lhes encarar e lhes respeitar no seu sentido original. Frontalmente.
Este sentido aparece na mise en scène de Hawks como um ritmo, uma respiração. Biette no necrológio do diretor escrito em 1978 para a Cahiers du cinéma, escreveu: “A força de Hawks, é o seu senso do concreto, do pequeno detalhe que constitui o funcionamento do todo, e a justeza do tempo de seus filmes" [4]. O tempo, o ritmo, o funcionamento das engrenagens do movimento são a força estética destes filmes.
Quando Hildy se despede de Bruce e marcha em direção ao escritório de Walter, atravessando o corredor de maneira altiva, a rapidez cria uma harmonia com a fauna da redação, Hawks faz transparecer, no ritmo do olhar que corre com a personagem, o pertencimento deste corpo a este espaço.
Depois das primeiras trocas de palavras com Walter, ele fecha a porta e eles se medem em silêncio, revelando uma equivalência inconcebível entre ela e o seu noivo. Eles são nesta cena, macho e fêmea da mesma espécie. Todo o diálogo que se segue compõe um balé da mise en scène, uma dança do acasalamento cuja beleza se depreende das noções de eficácia, precisão e funcionamento. Rivette escreveu a respeito disso: “A fascinação que ele impõe não é de modo algum a da ideia, mas aquela da eficácia; o ato nos retém menos por sua beleza que por sua ação mesma no interior do universo que o contém. Tal arte impõe-se uma honestidade fundamental, ao que testemunha o emprego do tempo e do espaço; sem flashback, sem elipse, a continuidade é a regra; nenhum personagem se move sem que o acompanhemos, nenhuma surpresa que o herói não partilhe conosco. A disposição e o encadeamento de cada gesto têm força de lei, mas de uma lei biológica, que encontra sua prova mais decisiva na vida de cada ser vivo; cada plano possui a beleza funcional de um pescoço ou de um tornozelo; sua sucessão, suave e rigorosa, reencontra o ritmo das pulsações do sangue; o filme inteiro, corpo glorioso, animado por uma respiração resiliente e profunda." [5] E é nos silêncios que podemos entrever a profundeza dos sentimentos escondidos no fluxo das palavras.
[1] BIETTE, Jean-Claude, "Le cinéma descend du singe" ("O cinema veio do macaco"), Cahiers du cinéma, n°391, janvier 1987.
[3] RIVETTE, Jacques, Op. cit.
[5] RIVETTE, Jacques, Op. cit.