O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

"Foi Deus quem mandou" (Larry Cohen, 1976)


Por Luiz Fernando Coutinho

"God told me to. Nova Iorque. Catolicismo. Atiradores em massa. Terrorismo. Burocratas. Alienígenas. Grandes angulares onívoras. Trucagens de luz. Filtros. Espaço urbano. Arranha-céus. Metrô. Asilo. Departamento de polícia. Narrativa detetivesca. Mídia. Jornalismo. Discurso médico. Diferença sexual. Intersexualidade. Patologização da intersexualidade. Monstruosidade da intersexualidade. Ameaça da norma católica. Contra-ataque. Deuses. Duplos. Sisters (De Palma). Ficção científica. Horror. Sociologia. Estratos sociais. Religião. Crença. Crucifixos. Casamento. Amantes. Prostitutas. Freiras. Harlem. Repressão. Identidade. Ambiguidade. Aborto. Pais e filhos. Filiações monstruosas. Nudez. Câmera na mão. Entrevistas. Documentário. Andy Kaufman. Homossexualidade. Drogas. Tráfico. Abduções. Estupro. Virgens Marias. Hippies. Contracultura. Homens no poder. Febre. Suor. Poros. Cicatrizes abertas. Flashbacks mirabolantes. Fragmentação da ação. Psicose. Facas. Snipers. Desfiles. Fumaça dos bueiros. Subterrâneos. Fogo. Realismo. Abstração. Manipulação da mente. Desfoques. Histeria coletiva. Possessão. Vontade de Deus. Ansiedade. Instabilidade. Paranoia. Manifestações de rua. Zonas escuras. Caminhos sem saída. Filmagem em externas. Precariedade técnica. Revolução. Poesia. 89 Minutos, 1976".

"All The Beauty and The Bloodshed" (Laura Poitras, 2022)

Por Waleska Antunes

Em 1981, Anne Charlotte Robertson decide filmar a sua própria vida. A câmera se volta a ela e é possível ver uma miríade de eventos diversos do cotidiano: uma visita a um familiar, um gato, um dia de inverno, o que há na geladeira. Apesar de costumeiro e bastante simplório, os vídeos são entrecortados com o voice-over de Robertson: os comentários vão desde piadas inofensivas até relatos de sua incessante luta contra a depressão, os problemas de auto-imagem, os internamentos no hospital psiquiátrico, o isolamento auto imposto, os surtos psicóticos, os remédios e a dor das diversas perdas. A esse esforço, foi chamado de Five-Year Diary, um filme de 36 horas que levou 16 anos para ser feito.

A história das artes, assim como a história do mundo, é sincrônica: Ao mesmo tempo, quase geograficamente no mesmo lugar, Nan Goldin se tornava uma das principais artistas do underground americano com o mesmo impulso: documentar a si mesma para entender os seus arredores. Nan trabalha em um outro meio, a fotografia, porém as questões, quando não as mesmas, eram semelhantes às de Robertson: como tentar entender o mundo sob a ótica do efêmero e do brutal?

Usando isso como ponto de partida, é possível dizer que o impulso documental de Nan Goldin (e, consequentemente, de Robertson) em se botar à frente como forma de questionamento do mundo era produto do seu tempo nos anos 70 e 80; Artistas como Yvonne Rainer, Chantal Akerman, Carolee Schneemann e Sophie Calle o fizeram, de maneiras diferentes e em diferentes expressões artísticas – o que é esperado. O pós-guerra, a desilusão e o impulso da segunda onda feminista dão a essas obras uma espécie de reverberação e uma constante busca de um individualismo perdido ou que foi continuamente massificado nos anos 50 e 60.

O que não é esperado é que, dentro dessa polifonia de expressões, todas foram reunidas em um grande grupo: a performance. O performático, por si só, não é demérito algum; no entanto, como é possível considerar performático o que é visceral – e logo, único? Como acreditar que, ao documentar a própria vida, não há tanta verdade quanto na ficção?

Essa é uma maneira inicial para pensar All The Beauty and the Bloodshed, de Laura Poitras. A vida de Nan Goldin é um prisma de muitas faces e no meio delas, o ativismo e a vida se interligam. Como ela diz no início, uma história pode ser contada de diversas formas, mas a memória real é algo que, irremediavelmente, é da ordem do vivido.




Um dos grandes impulsos, tanto de Laura Poitras quanto de Nan Goldin, é o esforço documental; seja vindo de Poitras, que constrói uma mise-en-scène de maneira mais analítica e pautada numa espécie de retomada de um cinema vérité como cerne do seu fazer (principalmente, no que tange às jornadas políticas de suas matérias filmadas como Edward Snowden em Citizenfour, sendo o whistleblower americano em fuga, quanto Julian Assange em Risk, expatriado em uma embaixada), quanto vindo de Nan Goldin, utilizando da própria vida como matéria primordial de sua obra, ambas as intenções podem parecer díspares ao longe, mas algo as une: a necessidade de entendimento de um processo, seja esse processo fílmico, memorialístico ou político perante o mundo.

Ao mesmo tempo, o processo memorialístico estabelece um limite: Nan conta a vida de sua própria irmã, uma rebelde, que enlouquece e se suicida. Sua maior fonte de inspiração ao se rebelar contra o mundo era uma figura misteriosa, mesmo assim, quando tudo se torna doloroso demais para ser dito – e, nessa altura, coisas terríveis foram ditas em voz alta – ela diz chega. O maior ato de alteridade de um bom documentarista é saber a hora de parar. E Poitras interrompe, sem vermos o rosto de Nan, como se estivéssemos resguardando um luto de alguém que acabamos de conhecer intimamente.

O delinear das duas narrativas, entre Nan ativista e Nan memorialista se entrelaçam de uma maneira bastante natural – tal como todas as memórias, o seu valor é a interligação poderosa entre os fatos – e a maior fortuna (e um trunfo de Poitras, se comparados aos documentários supracitados que trabalham unicamente com filmagens contemporâneas) é o acesso aos documentos, fotos e imagens de arquivo que complementam e preenchem as lacunas deixadas – tanto pelos que partiram quanto pelos que ficaram. Nan ficou, mas ela mostra o custo: sua luta contra a indústria farmacêutica de opioides e o próprio sistema de saúde americano (luta essa que vem de anos e, no excerto sobre a epidemia de AIDS nos anos 90 – um trecho muito tocante e assustador sobre as vozes revoltadas de pessoas como David Wojnarowicz que se tornaram espectros reféns de todo tipo de preconceitos) mostra exatamente como o inferno é cheio de boas intenções: uma família inteira dizimou uma nação com opioides e depois depositou o dinheiro em grandes galerias de arte, como se toda a arte do mundo fosse capaz de esconder tanta coisa horrível.

E se na performance (e nesse caso, como um grande demérito) dos Sackler reside toda a hipocrisia do mundo refletida em uma instituição e uma fachada falsa, Nan nos mostra que a arte mora em ser quem se é, de maneira frontal, muitas vezes nua, muitas vezes doente, muitas vezes insana.

E nessa instituição, a beleza e a grandeza residem juntas, mesmo que dolorosas.

Uma equipe muito especial

Por Miguel Haoni

Dois ou mais atores no mesmo quadro, filmados do joelho para cima numa duração suficiente para que se possa ver – ao mesmo tempo – os gestos físicos, as expressões do rosto, as conexões entre os personagens e a dinâmica entre estes personagens e o cenário. Nem muito perto, nem longe demais. É preciso encontrar a distância certa, estabelecer o ponto focal e a partir dele, as coisas podem começar a acontecer. Nos piores casos isso produz uma forma acadêmica, nos melhores isso é o veículo de um estilo sublime. Por trinta anos, Hollywood achou esse ponto e fincou nele a sua bandeira, transformando o plano “americano” na sua unidade gramatical. Com o tempo, porém, eles perderam o que tinham encontrado, de forma que às vezes é mais fácil encontrar a herança do classicismo hollywoodiano nas séries de TV do que nas salas de cinema.

Existem algumas exceções. Uma delas é de 1992, quando Penny Marshall (cineasta vinda da TV) adaptou para o cinema uma dramatização da história da Liga Americana de Beisebol Profissional Feminino. Não que o filme retome sistematicamente o plano americano (apesar da sua abundância) nem que ele se sustente no classicismo da encenação (também recorrente), mas ele nos faz lembrar que essas técnicas são meios e que os fins sempre estiveram do outro lado. Ancorado nas regras das comédias dramáticas de grande orçamento da Hollywood dos anos 90, a lição de cinema de “Uma equipe muito especial” é muito antiga: antes de tudo é preciso ver. Ver corpos e rostos ocupando um espaço, ver as faíscas entre eles. Ver tudo isso ao mesmo tempo.

A luz principal vem da era de ouro. A linha grosseira é a mesma da comédia musical. Geena Davis e Lori Petty, são cowgirls: jovens fazendeiras do Oregon, elas são filhas da América profunda e trazem no seu drama a herança dos faroestes, o desejo pela paz doméstica versus o chamado do dever, o irmão mais forte que se retira heroica e silenciosamente das páginas da história. Madonna e Rosie O’Donnell são as novaiorquinas: jovens operárias, dançarinas, garçonetes, prostitutas, telefonistas, atrizes, secretárias. Filhas da velocidade e da crise econômica, suas raízes são ainda mais profundas e distantes, remontando às comédias ligeiras e aos núcleos cômicos nos melodramas dos anos 30. Mas mais importante que o retrato individual é a pintura do grupo: em torno das quatro existe uma constelação de personagens flamejantes, que deixam um rastro vivo independente do tempo que ocupam na tela. É na dinâmica física e verbal entre as atrizes que o filme ancora sua principal beleza, fazendo reviver filmes esquecidos como The wild party (Dorothy Arzner, 1932) Three on a match (Mervyn LeRoy, 1932), Ladies they talk about (Howard Bretherton, William Keighley, 1933) Stage Door (Gregory La Cava, 1937), Marked Woman (Lloyd Bacon, 1939), The women (George Cukor, 1939). Todo um gênero sacrificado no momento em que Hollywood decide tomar parte no esforço pela redomesticação das mulheres, elegendo a ambição feminina como o oitavo pecado capital.

“Uma equipe muito especial” é também a alegoria desta geração perdida, a das americanas brancas que provaram o gosto emancipatório do trabalho e que, com o fim da segunda guerra mundial, tiveram que abandonar os seus postos e retornar às cozinhas. O mundo do beisebol, o mundo do cinema (ou simplesmente o mundo) é dominado pelos homens. É preciso jogar com as regras deles, mas também passar o contrabando, ocupar os espaços, penetrar no sistema, aproveitar as brechas. Como escreveu a cineasta feminista radical Michelle Citron, no texto de 1988, “Women’s Film Production: Going Mainstream” ao refletir sobre a escolha de “virar comercial”: é preciso celebrar a chegada de uma geração de cineastas feministas que, vindas do underground (mas não só) começam a cavar uma pequena trincheira em Hollywood.

Penny Marshall foi uma delas. Seu filme é um produto muito bem acabado do seu tempo, um tempo em que o cinema hollywoodiano virou drasticamente na direção da infantilização do público. Mas o que normalmente é um defeito, aqui é uma virtude: no filme existe também uma luz secundária, vinda da infância, uma janela para o ambiente escolar, para a hora do recreio, quando as meninas brincavam de vôlei, elástico ou aquilo que na minha cidade chamavam de “cemitério” ou “queimada”. Sentado à boa distância, esta era a única ocasião em que eu me interessava por esportes. O filme respira esta mesma tensão, essa desaceleração no tempo, a energia deflagrada pela iminência de uma briga épica entre duas meninas da sexta série. Muitas vezes esquecemos, mas é nesse pátio que nascem os atletas. “Uma equipe muito especial” nos permite ver isso. Ver tudo isso ao mesmo tempo.

Madonna - revista de cinema, n° 2


Acesse a revista Madonna pelo link ou clicando na imagem acima. 

Editores: Leodoro Camilo Fernandes, Letícia Weber Jarek, Luiz Fernando Coutinho, Miguel Haoni, Victor Cardozo.

Colaboraram nesta edição: Amanda Lana, André Capriotti Schaefer, Catalina Sofia, Evandro Scorsin, Leodoro Camilo Fernandes, Letícia Weber Jarek, Luiz Fernando Coutinho, Miguel Haoni, Natália Marchiori, Paula Mermelstein, Rafaela Marques, Victor Cardozo.

Projeto gráfico e diagramação: Pedro Alencar.

Nossas redes sociais: letterboxdinstagram e facebook.