O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

"Meus Queridos Espiões" (Vladimir Léon, 2020)

Por Gabriel Linhares Falcão

Para além da máxima “todo documentário é uma ficção”, podemos nos aprofundar e perceber que alguns verbos intrínsecos a composição prática do documentar revelam componentes de ficção presentes na realidade (na vida, na mente, e onde mais quisermos ir). Investigar, rememorar, contar, narrar, apresentar, visitar, entrevistar, refletir são alguns exemplos de ação que nos remetem a necessidade de um interlocutor, que mesmo quando realizadas solitariamente, em pensamento, pressupõem um outro imaginário a receber essas ideias enquanto ouvinte ou até mesmo agente, formulando assim desejos ficcionais.

Vladimir Léon, já no início de Meus queridos espiões, revela, ao introduzir o filme, que espera encontrar os mistérios da família que excitam sua imaginação desde a infância. Narrador, protagonista e diretor francês do filme, decide abrir o baú sobre o passado de seus avós russos, deportados da França nos anos 1930 por suspeita de “atividade política perigosa”. Eram eles espiões soviéticos? A memória da família não responde essa pergunta. Documentos, cartas e fotos, não clareiam em nada a história, mas foram deixados em uma mala organizada pela família como se demandassem uma investigação futura. Pelo menos este é o sentimento de Vladimir, que convida seu irmão Pierre Léon, cineasta ficcionista de marca maior, para dividir e comungar junto com ele os papeis de protagonista e condutor, ajudando na atividade documental do irmão-diretor nunca presa a esquemas fáceis de classificação.

No caso de Meus queridos espiões, investiguemos as indicações concisas já presentes no título: a troca de cartas e a espionagem. Da primeira, ficamos com o contar, comunicar, esconder, inventar, relatar, registrar. Claro, é necessário aqui o tal interlocutor imaginário, que assume no processo de escrita o papel do referido destinatário distante. Do segundo, ficamos com o observar, aproximar, investigar, descobrir, falsear, revelar, além dos verbos presentes já na primeira parte, utilizados agora a serviço de um poder ou ideal maior. Claro, é necessário aqui que o interlocutor não perceba o espião por completo, para que assim algo passe despercebido.

Os irmãos partem de uma dúvida acerca de seus avós, e já na primeira conversa com os amigos franceses alguns questionamentos ramificados escapam de suas palavras enquanto certeza, por impulso ficcional. “Você agora está afirmando?”, Léon questiona o outro Léon. Com a dúvida e o impulso debaixo dos braços, seguem em jornada para a Rússia em busca de arquivos, conhecidos, locais e histórias, almejando antes de tudo a verdadeira reposta.

Os entrevistados confirmam o nevoeiro cultural a respeito dos passados de suas famílias. A lição difundida no período stalinista em que era melhor não investigar suas origens ecoa até hoje. Prisões, exílios e mortes têm justificativas imprecisas e duvidosas. A Rússia se apresenta receptiva, porém impenetrável, tão clara quanto vigilante. Em poucos dias, a dupla é apresentada na TV local, Pierre é entrevistado inofensivamente e conta mais sobre sua família e o projeto do filme francês. Se havia da parte dos irmãos alguma pretensão espiã ficcional em sua empreitada, esta foi por água abaixo. Suas caras estão estampadas publicamente. Esta abordagem por parte da televisão, seria uma receptividade planejada para que algo passe despercebido? Uma aproximação para se observar mais de perto? Por que um filme independente ganha tanto destaque?

Os órgãos estatais como a sede da antiga KGB e a Direção Geral de Segurança Nacional em pouco ou nada ajudam. É subentendida nas respostas uma queima de arquivo. Memoriais que investigam o horror do período stalinista e defendem os direitos humanos na Rússia são qualificados como “agentes estrangeiros” por Vladimir Putin por conta de seus financiamentos internacionais, termo que remete à Guerra Fria. Após uma série de tentativas inconclusas de adentrar um passado blindado, os dois irmãos parecem ser aos poucos e transparentemente qualificados pelo Estado ao papel de espiões. Aqueles que querem saber demais. Civis inquietos. O pessoal é negado pela política. Por motivos de força maior, o filme é constantemente relegado à categoria de ficção, para que a espionagem dos avós pareça uma invenção dos netos, agora “agentes estrangeiros”. Os irmãos Léon precisam, por fim, ir contra seu impulso inicial, esquecer os desejos ficcionais da imaginação excitada e seguir com aquilo que se torna sua maior força enquanto cineastas: o documental. Mesmo que cada vez mais longe da verdade por trás de suas linhagens.

A utopia do passado contra a distopia do presente






The Watermelon Woman (Cheryl Dunye, 1996)

Por Samy Benammar

“Sometimes you have to create your own history. The Watermelon Woman is fiction.” Assim se conclui o filme cult de Cheryl Dunye invertendo a percepção da narrativa e confirmando, como davam a entender os indícios disseminados no filme, que esse personagem, essa Watermelon Woman, figura libertadora da história das mulheres negras no cinema, lésbicas ainda por cima, era apenas uma construção, um arquivo fabricado do zero. Nessa frase, de uma simplicidade desconcertante, se condensa a potência de uma obra em que se misturam imagens de uma ficção onde a cineasta se põe em cena e o falso documentário que ela desenvolve partindo de uma cena deslumbrante. Ao pé da árvore, a Watermelon Woman que vem reconfortar a mulher branca é evidentemente relegada ao lugar de serva quando, contudo, sua candura, sua postura e sua mão serena colocada sobre o ombro invadem a tela. A cineasta que vê esse filme na televisão de tubo da videolocadora onde trabalha se apaixona por essa cena mas se dá conta de que sua ídola não foi identificada nos créditos, exceto por um apelido que nega sua identidade, transformando-a em um objeto intercambiável. No decorrer dos movimentos de Cheryl, a história entretanto se desenrola, a Watermelon Woman se torna Fae Richards e a fantasia prossegue através de um romance que ela teria tido com a realizadora Martha Page. Uma fronteira frágil se constitui entre o filme e sua produção porque essa escolha de inventar uma atriz negra dos anos 1920 e de chegar a criar documentos artificiais é o resultado de uma pesquisa infrutífera nos arquivos do congresso, onde as mulheres negras são apenas arquétipos, personagens funcionalistas e sem intimidade.

Se o letreiro final de Watermelon Woman é tão perturbador é que, diante dele, eu sinto um desejo de resistência: afirmar que uma pesquisa satisfatória permitiria fazer ressurgir verdadeiras imagens, que foi por falta de recursos que Cheryl não conseguiu encontrar uma fonte real à qual se apegar. Eu repenso então nas minhas aulas de cinema, na minha memória se sucedem os irmãos Lumière, Murnau, Méliès, Gance, Keaton, Vidor, Eisenstein, minhas notas sobre o cinematógrafo são cobertas de nomes e a única figura negra que se encontra ali é a tinta, o resto foi apagado. Eu me obstino, tento perceber entre os quadros da universidade um fragmento de Micheaux, uma migalha, mesmo que seja apenas uma cena de Within Our Gates (1920), mas a realidade é bem aquela de Cheryl Dunye: eu vi tão pouco desses raros filmes de uma outra época, na qual isso que se chamará de “race film” já era apenas uma página anedótica, um pedaço esquecido da história do cinema, nunca reconhecido pelos grandes pensadores, os grandes estúdios ou os grandes professores, relegado a algumas salas de periferia para que as pessoas negras tenham seus filmes e deixem Hollywood em paz.

E depois eu penso na textura, nas imagens em vídeo de baixa qualidade que nos levam de volta ao tempo do VHS. Essa jovem cineasta e seu material rudimentar, emprestado por uma amiga, me remetem inevitavelmente a uma nova acessibilidade da imagem até então confinada a certos orçamentos hollywoodianos ou a alguns cineastas experimentais que roubam pedaços de película 16mm. O rosto de Sherley, esse nome dado a todas as mulheres cujo retrato servia de imagem de referência para a colorimetria das películas Kodak, se sobrepõe então àquele da Watermelon, provocando um contraste insuportável entre a bem visível e real Sherley e a invisível ficção de Fae. Foi só nos anos 90, especialmente através da televisão em que novas tecnologias do vídeo são desenvolvidas para calibrar a imagem dependendo da cor da pele que ali aparece, que a Kodak Gold foi comercializada adaptando enfim os padrões químicos do 35mm à diversidade dos rostos que devem ser representados. Até então e até na sua matéria prima, o cinema apagava certos traços em benefício de outros e é ainda mais perturbador imaginar que essa tomada de consciência intervém tão tarde, no momento em que Cheryl Dunye realiza suas primeiras pesquisas.





Eu acredito que é necessário, aliás, dar um pouco de espaço ao sujeito que produz esse comentário, porque Cheryl nos lançou, me lançou, uma mensagem direta nesse letreiro final que traz o filme de volta ao humano que o produziu, àquele que o recebe, que é interpelado, convidado a seguir o combate. Então eu me autorizo um pequeno desvio no comentário para falar um pouco de mim. E se eu não compartilho a cor de Cheryl, nem a da Watermelon Woman, se esse filme marcado tanto pela identidade negra quanto lésbica me escapa por certos aspectos, pois só poderíamos imaginar, pensar uma opressão que nós mesmos não sofremos e a dor dos outros não nos pertence. Contudo eu me reconheço também nesse rosto porque vindo de uma imigração algeriana, eu tenho apenas poucos traços da história do meu cinema (esse “meu” soa tão justo quanto falso). É a mesma coisa para as populações chinesas da América e seus “race films” que também não tiveram direito a um cuidado arquivístico até os anos 1980. Então eu não posso me impedir de compreender esse filme como uma chamada geral, não apenas por todas as Fae Richards que nunca existiram mas também todos os estrangeiros cuja tez se afastava um pouco demais daquela de Sherley.

No vazio desses documentos ausentes, as palavras de Susan Sontag em Regarding the Pain of Others se carregam de sentido. Ela sinaliza ali a ausência do museu da escravidão, em 2003, no território americano e evidencia o problema comparando-o ao grande número de museus da Shoah. Essa constatação surpreendente de uma história recente melhor documentada que uma passagem mais antiga e mais fortemente ancorada na América faz com que ela formule a hipótese de que ainda hoje a constituição americana repousa sobre a exploração desses corpos sub-representados, tanto no cinema quanto em qualquer lugar. Aliás, essa memória é perigosa demais para o equilíbrio social porque ela põe em dúvida o poder vigente (ao contrário do holocausto que permite criticar os bárbaros da Alemanha nazista sem questionar a América de hoje). Isso era verdade em 2003, ainda mais em 1996 e o problema, tendo em vista os acontecimentos do ano 2020, é ainda, talvez mais do que nunca, atual. É por esta razão também, que na falta de um arquivo oficial, The Watermelon Woman construiu seu próprio museu, certamente falso mas que preenche o vazio deixado pelo apagamento, faz sobreviver uma fantasia no pesadelo da história.

A questão aqui é menos de estudar em detalhe todas as pistas que questionam o lugar dos afro-descendentes na história do cinema, mas talvez simplesmente de evocá-los, evidenciar a multiplicidade de questões complexas que dizem respeito tanto à técnica da imagem quanto a seus atores, tanto aos estúdios de produção quanto aos cineastas, sem encontrar o responsável pois, como Cheryl Dunye propõe, parece necessário em algum lugar acompanhar a acusação de um pouco de humor, de esperança sobretudo. E se podemos discutir mais profundamente Watermelon Woman, e toda a sutileza de sua proposição – o personagem da artista branca por exemplo é tanto criticado pela sua aristocracia quanto valorizado pois seu olhar externo estabelece um diálogo com Cheryl -, eu prefiro aqui me deter sobre esse letreiro final cuja potência reside na autenticidade, na transparência e na presença bruta de uma realizadora que rompe, durante alguns segundos, o contrato da ficção estranha de seu filme. Ela vem então nos falar, no silêncio dos créditos, através de algumas letras sobre um fundo negro, de urgência e esperança.

Durante essa época, em 1996, o homem branco persegue sua Missão: Impossível para salvar o mundo da destruição, proteger Oklahoma de um Tornado e São Francisco de ataques terroristas. Quando ressurgem as narrativas catastróficas com Independence Day no topo da fila, Hollywood constrói o horror do futuro, a enésima guerra contra a qual a potência americana nos salvará para restabelecer a ordem precedente. De novo e sempre a invasão, uma luta que por muito tempo foi conduzida contra aqueles que são chamados de aliens, um termo que se traduz tanto por extraterrestre quanto por estrangeiro, alguém que não pertence à população estabelecida – aquela que deseja que nada mude. Um simples escorregão é suficiente para iluminar o silêncio ao qual uma parte da humanidade já está submetida, quando não se trata mais de preservar o mundo, mas de mudá-lo, as narrativas não se voltam mais em direção ao pior que poderia nos acontecer mas àquilo que já foi produzido. Nalgum lugar eu também me construí uma ficção na qual Cheryl Dunye, além de si, se constitui em Will Smith do passado, enviando uma mulher numa viagem no tempo para restabelecer a ordem entre os fotogramas e permitir oferecer alguns arquivos para decantar os germes de uma história voltada para o futuro. O dia da independência está no passado, as guerras foram perdidas mas a Watermelon Woman, como um fantasma, parece murmurar, no desvio de um letreiro final, que a ausência, o apagamento suportado por tanto tempo deve ser um motor e não um freio para as câmeras do futuro, aquelas que ainda têm todo o tempo para escrever sua própria versão do cinema.

L'utopie du passé contre la dystopie du présent foi publicado originalmente no site "Panorama-Cinéma" (Watermelon Woman, The - Critique (panorama-cinema.com)) no dia 31 de dezembro de 2020. Tradução: Miguel Haoni.

Resposta a “C.N.C”



Por Pascal Kané

Que Skorecki, no texto precedente[1], veja na escolha dos autores operada pelos Cahiers apenas reflexo culturalista, submissão à imagem de marca imposta por esses filmes, seria certamente uma tese admissível (mas sem ser, de resto, totalmente nova, já que integrada a um certo número de textos que se reportam a esses autores), se aquilo em nome do que essa tese é formulada operasse na atual produção cinematográfica algum corte, constituísse um suporte metodológico (ou ético) a partir do qual se tentasse repensar o que deveria ser, o que deve ser hoje – pois hoje, talvez mais do que nunca, isso nos falta – uma crítica de cinema viva. Em vez disso, o texto, em nome de uma certa verdade cinéfila, estabelece somente uma lista diferente de vencedores e indica uma direção: seria na televisão, mas em suas zonas mais obscuras, que “algo da lucidez alucinada da cinefilia de ontem”, que um retorno mínimo à paixão pelo cinema, seria possível.

Essas posições, deliberadamente polêmicas, mas muito coerentes, evidentemente convocam um debate. Debate histórico, certamente, já que a cinefilia desde então perdeu seu sentido, mas que abrange, na verdade, questões muito atuais (não somente em relação a este ou aquele cineasta do presente, cujos procedimentos são justificáveis, mas em relação à revista, da qual a cinefilia constituiu o núcleo formador de um certo número de colaboradores).

Como veremos, a cinefilia não é simples: ela seria, antes, dupla. Skorecki, na verdade, se expressa em nome de um aspecto da cinefilia contra um outro. Está na hora, portanto, de restabelecer essa dualidade histórica, e não mais passar complacentemente por um certo obscurantismo e um certo terrorismo cinéfilo (segunda tendência que o artigo acima não deixa de reviver, e que pode conduzir a propostas tão extravagantes, tão privadas de sentido quanto dizer que Jacques Tourneur é o maior cineasta do mundo, ou a alucinar perpetuamente, em tal ou tal detalhe de mise en scène invisível para o neófito, toda a “verdade” do cinema). Seria melhor reconhecer, nessas atitudes demasiadamente apaixonadas, uma incapacidade manifesta de falar verdadeiramente do cinema, de produzir algo em matéria de uma visão, em vez de reproduzir dessa maneira estéril e finalmente masoquista uma fascinação pelo objeto – fascinação que hoje sabemos ter sido a palavra-mestra dessa cinefilia (é nomeadamente da mais antiga, da mac-mahoniana, de que falo).

Essa cinefilia atinge seu grau de exposição mais perfeito e definitivo com o artigo de Michel Mourlet, “Sobre uma arte ignorada” (Cahiers nº 98), o qual expõe a vaidade de todo trabalho crítico, de todo ponto de vista. Ele escreve, particularmente: “A absorção da consciência pelo espetáculo se nomeia fascinação: impossibilidade de se arrancar das imagens, movimento imperceptível rumo à tela de todo o ser tencionado, abolição de si nas maravilhas de um universo onde até mesmo morrer se situa no extremo do desejo. (...). O movimento, domínio específico de nossa arte, deve se adensar de um jogo ou se encher de uma graça tais que ele impede a irrupção da consciência crítica no encadeamento dos atos filmados[2]. Que fique claro: não é o “anti-brechtismo” sistemático de Mourlet (!) que é criticável (o brechtismo teria sido provavelmente liquidador), é que, ao negar a distância às obras, ele abole todo ponto de vista presente e, portanto, toda possibilidade de aferir algo delas (o que ele postula, no fundo). Também a “mise en scène” (cf. acima), cuja função habitual de máscara e de revestimento, em Hollywood, opera através das figuras tão diversas quanto a elipse temporal, a narrativa em primeira pessoa, o controle e domínio da profundidade de campo, nunca é analisada como tal, mas é sempre referida a um Mistério em torno do qual giraria toda a magia do cinema. É o que reproduz o artigo de L.S., quando ele vê na “cinzelagem de um detalhe”, na “iluminação de um gesto”, a única marca verdadeira de um autor. Ora, essa magia, ao contrário, residia na perfeita integração das diferentes fases produtivas entre si: daí a importância do produtor, e particularmente na obra de certos cineastas (como Jacques Tourneur, justamente).

As proposições e pressupostos de Skorecki vão muito no sentido da reprodução dessa fascinação da qual, em última instância, os cinéfilos não souberam fazer nada, antes de serem varridos por uma crítica política (pois a política não deixava de produzir algo, ela, e em todos os campos).



A cinefilia mac-mahoniana nunca foi, a meu ver, uma escola crítica, em função de uma “política dos autores” que a cegava para tudo que fosse estranho a seus critérios (e que fazia Mourlet escrever, por exemplo, que “podemos predizer sem grande perigo de ser desmentidos que Welles, Kazan, Visconti, Antonioni e outros senhores atuais se tornarão intoleráveis em vinte anos”, sendo, ao mesmo tempo, “desde sempre aos mais sensíveis” (op. cit.)).

Voltemos um pouco, então, a esses critérios mac-mahonianos, muito velados no artigo de Skorecki. O primeiro mal-entendido concerne a noção de autor: não se trata de forma alguma do cineasta que escreve um roteiro antes de filmá-lo, mas, ao contrário, praticamente exclusivamente, do diretor de roteiros que são escritos por outros e que são propostos por um produtor. Os autores eleitos, então, são, paradoxalmente, os que menos o são; os que deixam o funcionamento da máquina hollywoodiana o mais intacto possível, de forma que possam provocar o sentimento de que se apropriam dela em sua totalidade. Junto às justificações dadas (amor pela mise en scène pura, isto é, justamente por aquilo que os literatos da crítica de cinema da época deixavam escapar), a cinefilia mac-mahoniana se baseava, na verdade, em uma fascinação pela máquina hollywoodiana, em que a mise en scène, totalmente integrada às outras fases produtivas, representava o momento de exposição privilegiado – momento onde nada deveria ser atribuído a uma determinada vontade (“toda ruptura da impassibilidade do cinema com fins expressivos trai precisamente esses fins”, sempre Mourlet)[3]. Daí esse ódio ao Autor, isto é, àquele que converte a maquinaria a seu favor ou que quer se opor a ela, o que explica tanto o famoso panteão mac-mahoniano quanto o desprezo no qual couberam a quase-totalidade dos grandes cineastas, de Rossellini a Hitchcock, de Eisenstein a Renoir (uma exceção importante foi Lang, porque ele foi, de fato, o único a se identificar com o conjunto da máquina cinematográfica como seu Criador).

Foi essa vontade contemplativa que isolou o mac-mahonismo e lhe retirou toda produtividade, impedindo-o de compreender para onde se dirigia o cinema no final dos anos cinquenta: cegueira a tudo que não era mise en scène pura (isto é, “integrada”), mas também ignorância grosseira diante de porções inteiras da história do cinema. Essas deficiências graves acabaram dividindo a cinefilia, abrindo-a a uma abordagem mais culta e, sobretudo, mais operatória, que foi a dos Cahiers (e outros) a partir daquele momento. Skorecki cita apenas Douchet, mas Rivette, Rohmer e Truffaut são aqueles em que pensamos primeiro (todos ansiosos para tocar no essencial da questão), sem falar de Bazin, que, justamente por ser um crítico e um teórico, permaneceu muito distante da cinefilia pura (além disso, é notável que continuemos a encontrar genialidade em Bazin, quando uma boa parte de suas escolhas críticas foi abandonada nos Cahiers. Mas a crítica, mesmo positiva de um filme ruim, pode resguardar mais inteligência do cinema do que a mais inteligente escolha de filmes).

Para que a cinefilia pudesse desempenhar um papel na história do cinema, ou seja, para que ela se tornasse uma escola crítica e uma escola de diretores, foi preciso, então, que outras considerações – concretas, políticas no sentido mais amplo – interviessem. Foi preciso que a cinefilia fosse confrontada a um presente, a um desejo de cinema.

Desse novo aspecto da cinefilia, igualmente autêntico, Skorecki não fala. Seu artigo parece reter (além da famosa inteligência do cinema) apenas seus aspectos menos recomendáveis e mais irritantes, como essa incapacidade de sustentar qualquer escolha que seja compensada por uma hiper-valorização maníaca de alguns autores e alguns filmes (Tourneur e outros para ontem, e para hoje uma escolha interessante que gostaríamos de saber o que lhe sustenta para além do fato de não conceder aos seus fabricantes o estatuto de autores). Pois é precisamente na eleição que tudo sempre foi jogado: há uma certa cinefilia que nunca foi mais do que atribuir estrelas, estabelecer rankings, derrubar quadras de ases
[4]. Paradoxais e terroristas, esses gostos foram suficientes para distinguir o cinéfilo dos espectadores em geral. É por isso que o cinéfilo detestava toda norma de produção diferente, toda forma de marginalidade no cinema (cinema experimental, correntes emergentes como o neorrealismo, Godard, como o diz muito bem L.S., etc). Ele precisava se situar no mesmo terreno que o grande público para tornar sensível a distância de sua visão, e a cinefilia antiga, no fundo, não é senão a valorização dessa distância: pequena perversão cuidadosamente cultivada, e tornada cega à sua natureza parasitária, como o diz Skorecki novamente.

Me parece que a televisão desempenha, nesse sistema de Skorecki, um papel mais ou menos análogo ao do cinema clássico para os cinéfilos de então – a questão tornando-se mais complexa hoje, visto que não se trata mais simplesmente de salvaguardar essa perversão, mas de atualizá-la: a produção cinematográfica atual não podendo mais desempenhar esse papel, já que o “Autor” tornou-se preponderante nela, mesmo nos filmes mais ordinários e menos pessoais, era preciso recorrer à televisão, onde não são os autores, de fato, que constrangem a maquinaria: mas por trás do apagamento do autor na televisão, já não é mais tão difícil, hoje, discernir o lugar que ocupam outros poderes, os quais não podemos mais fingir ignorar, como nos dias áureos de Hollywood.

Com uma grande diferença, no entanto: a fantástica máquina hollywoodiana era fascinante como tal; o dispositivo televisivo, por outro lado, é execrável, e se a televisão ainda pode fascinar, é precisamente porque a máquina não pára, justamente, de derrapar (e os efeitos de verdade, de surgir). Aí está o único ponto comum: desfrutar da televisão também implica um ponto de vista perverso e Skorecki sabe bem disso.


[1] O texto de Kané, publicado na mesma edição de Contra a nova cinefilia, vem logo após o texto de Skorecki (N.d.T).

[2] Os trechos em português de Sobre uma arte ignorada são retirados da tradução feita por Luiz Carlos Oliveira Jr. (N.d.T).

[3] Skorecki não se engana, aliás, quando diz preferir os filmes entravados de Losey àqueles ditos “livres” (o argumento seria também ainda mais forte com Preminger que realizou grandes filmes no início de sua carreira – Whirlpool, Angel Face, até Anatomy of a Murder -, e que se perdeu em seguida, pouco a pouco, num estilo paranoico e estreitamente ideológico. Mas essa evolução era inelutável, e a liberdade concedida aos diretores correspondia a uma nova forma bem geral de conceber o trabalho de cena...

[4] Prática retomada pelo famoso “Conselho dos dez” dos Cahiers: opondo alguns críticos conhecidos da equipe dos Cahiers, era precisamente o gosto dessa última (ah, tão intuitivo e original, apesar dos seus pontos cegos) que se sobressaia, e que justificava a meu ver essa prática numa revista que não passava seu tempo a celebrar cultos (como Présence du cinéma por exemplo, da qual Skorecki, a propósito de Tourneur, oferece involuntariamente um modelo, baseado em citações banais e paradigmáticas do autor, divinizadas em seguida por seus turiferários).
Quanto às atuais distribuições de estrelas nas revistas de cinema, elas não têm mais o mesmo status: todo paradoxo e agressividade cinefílica desapareceram, são apenas resumos de pontos de vista, digestos de subcultura.

Réponse a “C.N.C.” foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, nº 293, outubro de 1978. Tradução: Luiz Fernando Coutinho.

"Propriedade" (Daniel Bandeira, 2022)

Por Leodoro Camilo-Fernandes

O carro é a fortaleza onde, subitamente encastelada, Teresa precisa suportar as investidas dos camponeses em revolta. De frágil vítima da violência urbana a ardilosa sinhá, sai da clausura em que estava no seu apartamento à beira-mar (recuperando-se da violência) e logo volta a ver-se encerrada em outra redoma, em outra violência: seu carro novo, blindado, seu escudo, sua arma, seu túmulo. A propriedade é o sarcófago do rico.

O patrimônio, a fim de que exista, precisa de defuntos: sem morto não tem herança. Propriedade, o filme, por sua vez, também empilha corpos: sem morte não tem revolta. Luta-se pela conservação: dum lado, do patrimônio; do outro, da possibilidade da subsistência. Duas narrativas: a primeira, o debilitado casal rico que vai à fazenda para espairecer e descobre devassada a casa; a segunda, o grupo de trabalhadores que acordam para a labuta e descobrem-se desempregados (sem terra, sem documentos). Mais uma entrada no rol das ficções da revolta: capital e campo, beira-mar e mata, dia e noite, dentro e fora, patrão e empregado, casa-grande e revolta.

Não se assuste, pessoa. O carro liga. Até aqui na casa-grande tem mosquito. Enquanto eles se batem, dê um rolê.

"O sol do futuro" (Nanni Moretti, 2023)

Por Victor Cardozo

Giovanni (Moretti) é um cineasta veterano italiano que faz um novo filme "a cada cinco anos". Durante a nova filmagem, ele se vê, mais uma vez, diante de um impasse existencial generalizado na vida e no trabalho. O seu filme, sobre um editor de jornal alinhado ao PCI (Silvio Orlando) dividido entre lealdade ao partido e solidariedade com os companheiros de uma companhia circense húngara diante da invasão da União Soviética à Hungria em 1957, patina em incertezas que vão da concepção à produção e distribuição, passando por descompassos criativos com os companheiros de equipe. Na vida familiar, Giovanni também sofre uma crise com a possibilidade do fim da sua união com Paola (Margherita Buy), sua esposa e produtora com quem tem uma parceria de 40 anos. O mundo à sua volta, na política, na história e na arte, parece também lhe escapar. A crise da individualidade não conformista, deliberadamente anacrônica e utópica, a rebelião contra a entropia, a obsessão apaixonada pela linguagem, a necessidade de acertar as contas com as questões do passado e da contemporaneidade italiana, tudo isso é sempre o ponto de partida em todos os filmes de Nanni Moretti, seja em 1973 ou em 2024. Mas aqui são os próprios ideais e sonhos que alimentam sua descontinuidade temporal que parecem tomar a frente. O presente invade o passado. Contemplando seu fim, o cineasta pode talvez encontrar seu começo.

"Foi Deus quem mandou" (Larry Cohen, 1976)


Por Luiz Fernando Coutinho

"God told me to. Nova Iorque. Catolicismo. Atiradores em massa. Terrorismo. Burocratas. Alienígenas. Grandes angulares onívoras. Trucagens de luz. Filtros. Espaço urbano. Arranha-céus. Metrô. Asilo. Departamento de polícia. Narrativa detetivesca. Mídia. Jornalismo. Discurso médico. Diferença sexual. Intersexualidade. Patologização da intersexualidade. Monstruosidade da intersexualidade. Ameaça da norma católica. Contra-ataque. Deuses. Duplos. Sisters (De Palma). Ficção científica. Horror. Sociologia. Estratos sociais. Religião. Crença. Crucifixos. Casamento. Amantes. Prostitutas. Freiras. Harlem. Repressão. Identidade. Ambiguidade. Aborto. Pais e filhos. Filiações monstruosas. Nudez. Câmera na mão. Entrevistas. Documentário. Andy Kaufman. Homossexualidade. Drogas. Tráfico. Abduções. Estupro. Virgens Marias. Hippies. Contracultura. Homens no poder. Febre. Suor. Poros. Cicatrizes abertas. Flashbacks mirabolantes. Fragmentação da ação. Psicose. Facas. Snipers. Desfiles. Fumaça dos bueiros. Subterrâneos. Fogo. Realismo. Abstração. Manipulação da mente. Desfoques. Histeria coletiva. Possessão. Vontade de Deus. Ansiedade. Instabilidade. Paranoia. Manifestações de rua. Zonas escuras. Caminhos sem saída. Filmagem em externas. Precariedade técnica. Revolução. Poesia. 89 Minutos, 1976".