O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

A perplexidade



Sobre os
Cinéphiles de Louis Skorecki

Por Axelle Ropert

Para quem conhece Louis Skorecki como crítico de cinema no Libération, é um efeito de surpresa que guarda a visão, doze anos depois de seu lançamento, dos Cinéphiles. Que crítico? Aplicada à Skorecki, a distinção de Julien Gracq entre o romancista míope para quem "os menores objetos do primeiro plano vêm com uma clareza por vezes miraculosa (...) mas para quem tudo que está longe é ausente" e o romancista presbíope que "só pode capturar os grandes movimentos de uma paisagem" é a ocasião de uma anomalia ótica: nosso crítico é presbíope e míope, passando constantemente de visões recapitulativas que atravessam a história inteira do cinema à simples listas de detalhes singulares, o filme em jogo nunca sendo apenas o lugar onde se acelera esse vai-e-vem que o ultrapassa. O que existe entre o míope e o presbíope? Skorecki cineasta, precisamente, ele que adota um ponto de vista mediano no Les Cinéphiles, entre o close-up e o plano de conjunto. Um plano americano, em suma. Mas há também o tom que modula a altura da visão: nas crônicas, voluntariamente definitivo, aqui, pelo contrário, uma maneira de falar pacientemente na retaguarda de todo discurso. Como filmar os cinéfilos se nada deles quer ser dito?

Uma nota escrita dez anos depois de Les Cinéphiles ilumina talvez esse pequeno paradoxo, ou ao menos o reitera: "Os filmes, nunca repetiremos o suficiente, são feitos para se esquecer" (sobre Expresso para Berlim de Jacques Tourneur). O que descrevemos quando nos apegamos aos esquecimentos? Sem dúvida nada além desse movimento de recuperação da memória pelo qual os filmes se encontram ainda mais fixos, capturados, à medida que são deixados no seu movimento natural de fuga. É um trabalho sem fim, um pouco absurdo talvez, mas que explica essa obstinação vivificada pela urgência da tarefa que caracteriza as crônicas de Louis Skorecki. Se o crítico estabelece esse paradoxo e o experimenta nos seus textos, o filme lhe dá uma versão propriamente cinematográfica obedecendo a uma equação inevitável: os filmes são feitos para se esquecer, logo os cinéfilos serão amnésicos. Os dois Louis podem então se encontrar nessa fórmula de Alain, "A força de imaginação consiste em dar a uma lembrança muito simples uma força de doença".

Se o espanto é o começo da filosofia, como nos ensinam na escola, é um outro sentimento que inaugura a cinefilia: a perplexidade. Sem família, sem casa, sem dinheiro, sem estudos, disponíveis, ligeiramente atordoados, os cinéfilos emergem de uma catástrofe chamada "cinema" que os deixa destruídos diante desse mini-desastre do qual eles lutam ainda para contar todos os efeitos e sequelas. Os cinéfilos foram abalados, e permanecem abalados. A força ficcional do filme vem da transformação desse acidente em estado permanente. Esses sobreviventes, ainda sob o efeito de deflagrações de efeito retardado, travam uma curiosa guerra para se levantar, mas também para prolongar esse estado: eles vivem exclusivamente fora, no limiar das portas, dos cinemas, dos imóveis, como sobre a iminência de suas lembranças.

As garotas esvoaçantes respondem com dificuldade às perguntas que os garotos fazem, insistentes mas nada além disso. As discussões são flutuantes, como se as opiniões não se ligassem entre elas, como se importassem pouco os gostos do interlocutor. O que mantém esses garotos juntos é um senso muito gasoso da conversação na qual a evocação dos filmes só se produz por fragmentos. A cinefilia é um estado de esquecimento que dá essa graça muito particular ao filme, toda na suspensão dos gestos, dos olhares, das palavras ancoradas nos bastidores às lembranças dessas salas escuras deixadas para sempre na sombra, bocas de sombra precisamente. Esta maneira de guardar as pausas, os silêncios incongruentes nas conversas provoca uma comicidade raramente ouvida no cinema, especialmente a partir das aparições de dois primos saídos diretamente de uma Narbonne muito eustacheana, comicidade atribuída a essa curiosa mistura de enorme desânimo, habitualmente reservado aos dândis, e de enorme inocência, habitualmente reservada às crianças. A comicidade vem aqui dessa tensão, que obriga a parecer bem, entre a riqueza da experiência cinematográfica e a pobreza da experiência vivida. Nós rimos ao vê-los tão orgulhosos, nós tememos ao vê-los ameaçados pelo necessário assalto da existência: "O cinema ou a vida!".

A essa intimação, Skorecki responde de maneira delicada e generosa inventando um dispositivo formal muito belo. De um lado, o espaço exterior das discussões com esses primeiros planos dos jovens a quem a fixidez formal dá uma íntegra obstinação mal lançada pelos olhares em fuga, fora de campo. Do outro, o espaço interior dos apartamentos onde a opacidade dessas discussões nas quais nada se troca tenta domesticar, em abraços furtivos e anônimos, esses corpos nus filmados em movimento, esse movimento que eleva a ingratidão ao esquecimento, à carícia. Entre os dois, uma circulação vibrante de valores (a vida? o cinema?) que reorganiza no interior da experiência cinefílica de tímidos momentos existenciais e interrogativos.

Uma cena de interior oferece uma hipnótica panorâmica que vai do dedo esticado de um jovem à cicatriz no peito nu de um outro, gesto que tropeça sobre essa pergunta três vezes repetida: "O que é isso?". Esse questionamento de humor klossowskiano que transforma uma cicatriz em possível falsidade ou impostura, essa luz balthusiana que aureola a cena de uma doçura intrigante, esse senso garreliano da pose, inventam, eles três, um retrato emblemático da juventude masculina.

Da juventude masculina? Les Cinéphiles é um retrato do jovem quando cinéfilo e um retrato do cinéfilo quando jovem (e é preciso fazer um dia, em resposta, um retrato da cinéfila quando jovem sobre um modo outro que aquele da histeria lvovskyana ou da defloração breillatiana - "braillatienne [1]" como diz Michel Delahaye, num sábio lapso). O laconismo dos discursos é próprio também da timidez desses jovens, a rigidez das silhuetas todas preocupadas pelos filmes é o sinal de sua estranheza, como sua reticência diante das garotas é o inverso do medo que elas provocam, mesmo se "todas elas têm alguma coisa", assim como afirma o mais novo do bando. Eu encontro aqui um sentimento muito francês da adolescência, caro à linhagem da "ene-erre-efe[2]" ridicularizada por Truffaut, entre a severidade paulhaniana das poses, o sentimento de impotência à la Louis-René des Forêts e a auto-aversão leirissiana. Essa reversibilidade completa das atitudes da cinefilia e daquelas da juventude duplica a emoção, uma emoção ao quadrado de certa forma, quando à solidão da cinefilia se junta, no acaso de uma cena, a dificuldade da idade do homem.

Nesse mesmo artigo sobre Expresso para Berlim, Louis Skorecki acrescentava: "Os filmes vivem suas vidas sem nós. Nós tricotamos para eles apenas os desfechos que nos convêm. Os happy ends, nada além dos happy ends." E quanto ao desfecho dessas vidas de cinéfilos aqui encenadas? "Eu sei que eu sou feio" diz um sósia de Daney jovem no fim do filme, durante um desnudamento perturbador que se afasta tanto da crueldade teatral de um Jean Eustache quanto da simplificação ingênua, sulpiciana, de um Garrel, em benefício de um sentimento inédito, uma sensação de derrota suavizado por esse suplemento de fragilidade concedido aos personagens.

***

"Isso, que achavam ridículo, me tocava porque eu encontrava ali sentimentos nus, que a racionalização não mordia, e um gosto de aventura." (Jean Paulhan)


[1] NdT:Jogo de palavras com o adjetivo "braillard", que significa "gritante".

[2] NdT: NRF, Nouvelle Revue Française (Nova Revista Francesa)

L'ahurissement foi originalmente publicado na revista La Lettre du Cinéma n°16, inverno de 2001, pp.8-11. Tradução: Miguel Haoni.

Uma estreia na vida




Por Pierre Eugène

Quando uma ideia exterior lhe atingir, por mais emergente que seja sua reputação, pergunte-se: qual é o corpo que está lá embaixo, que viveu lá embaixo?

Henri Michaux

Dos cerca de vinte filmes realizados pela empresa de produção-distribuição-restaurante Diagonale, fundada em 1976 por Paul Vecchiali, Cécile Clairval e Pierre Bellot, encontram-se cinco longas-metragens que são os primeiros de seus autores: O Teatro das Matérias (1977), de Jean-Claude Biette, As Belas Maneiras (1978), de Jean-Claude Guiguet, Simone Barbès ou a Virtude (1980), de Marie-Claude Treilhou, Cauchemar (1980), de Noël Simsolo, e Beau temps mais orageux en fin de journée (1986), de Gérard Frot-Coutaz. Os três primeiros, que permanecem inesquecíveis para mim (o filme de Simsolo é esquecível, o de Frot-Coutaz é um pouco menos surpreendente), por fim se impuseram como um ponto de inflexão discreto, mas determinante, no campo de força da cinefilia, contradizendo a sua modéstia econômica de origem, o parco reconhecimento de seus contemporâneos e os eclipses de visibilidade mais ou menos longos impostos pelas leis do mercado [1]. Dizer que amo esse trio de filmes milagrosos revela imediatamente, creio eu, como se dá a minha relação com o cinema: não tanto pelas demonstrações de habilidade dos autores, sua correção moral e suas preocupações sociais; ainda menos pelo acabamento das obras, cuja arte sem falhas é animada pela vontade de finalizá-la, onde a compactação dos roteiros e a plenitude visual dissimulam o medo do que está faltando; de forma alguma, enfim, pelas tentativas de companheirismo dos filmes que me designam, me asseguram, me destinam à força de cotoveladas e direcionamentos para um lugar nítido em uma intriga à minha medida. Não admiramos esses filmes de Biette, Guiguet e Treilhou: nós os amamos. Não de uma só vez, frequentemente nem mesmo da primeira vez, mas através de um sentimento incômodo que se elabora com a duração, passando pelas zonas obscuras, pelos recantos escondidos e pelos buracos de ar desses filmes e que se dobra num átimo ao desejo de revê-los.

Retomando-os, revisitando periodicamente uma cena, um plano, um gesto, valendo-me de sua profundidade inesgotável de detalhes, eu acabei pouco a pouco por sentir o olhar que os conduz e por adivinhar a segurança incômoda e terna, ligeiramente ansiosa, daqueles que fazem sua estreia. Biette me toca quando, como que para exorcizar seu medo, ele começa seu filme com um final silencioso, mergulhado na noite artificial, interior, de seu Teatro das matérias. Seu filme se abre sobre uma dupla cartela langiana, de verdadeiros pedaços de papelão que anunciam que esta é a “Últimas” apresentação de Pelléas et Mélisande no Teatro das matérias, cartela essa que sinaliza, com suas informações a serem decifradas em cascata, a atenção e o humor que serão exigidos neste filme que se anuncia. A câmera passa então para a senhora no vestiário (Denise Farchy), que é forçada a se encolher para sair por baixo da prancha que bloqueia o balcão. Ela sai desajeitadamente atravessando um quadrado escuro sobre um fundo vermelho, como se estivesse passando por um buraco de rato. Chega Hermann (Howard Vernon), que desliga e guarda a irrisória pequena árvore luminosa colocada sobre o balcão, adicionando um pouco de tristeza à quietude do fechamento. Segundo plano: a câmera está à espreita na escuridão do teatro, esgueirando-se atrás de Hermann enquanto ele fecha duas portas, deixando tudo cada vez mais escuro, até ganhar velocidade e entrar na luz da terceira porta, ainda aberta, que revela uma mulher (adormecida, morta?), Dorothée (Sonia Saviange), deitada sobre um lance de escadas, como mais uma pista nesse rébus de estreia. Com esse plano, Biette transfere o medo do escuro dos seus primeiros passos para o espectador: eu avanço em sua ficção e me agarro cegamente num espaço ainda não delimitado, procurando identificar as questões do sentido. À semelhança do balcão bloqueado, esse filme labiríntico nunca cessa de me apresentar as luzes como pistas falsas, becos sem saída ou pontos cegos. Mesmo o fim é cerrado nesse filme que brinca com cores opacas: o início vermelho e preto torna-se a contraparte do branco terrível da derradeira imagem, quando a câmera abandona Dorothée, seus três amigos e seu lanche de crepes à leveza de uma flauta de L'Arlésienne, de Bizet, para voar em direção a uma janela aberta com vista para uma parede cega. A imagem se congela e os créditos verdes fluorescentes (bastante feios) deslizam rapidamente pelo branco cremoso da parede, um branco sem destino, um tipo de inverso do “branco das origens”, que aparenta obliterar o futuro imaginário dos personagens.

As fachadas de Biette por muito tempo me interrogaram (seu próximo filme se encerra com um belo afresco em trompe-l'oeil), até que eu compreendi sua função: tornar impossível de imaginar uma continuação, proteger os personagens. O Teatro das matérias é uma pirâmide fechada por dentro. Podemos muito bem mergulhar e voltar a mergulhar nela à vontade, mas não guardaremos a ilusão de que suas figuras continuarão a viver suas vidas imaginárias fora dos limites do filme, que poderemos levá-las conosco como mitemas, que o destino delas nos pertencerá. Os personagens de Biette pertencem apenas à sua ficção. No meio de inúmeros detalhes, objetos, senhas acumulados por esse filme em que tudo parece estar infinitamente ligado, os personagens me fazem pensar nas peças daquele jogo de xadrez bastante específico que Brecht apelou para que fosse: “um jogo em que as posições não são idênticas a elas mesmas; em que a função das peças se modifica quando elas ficam estacionadas por um tempo no mesmo lugar: elas se mostram mais eficazes ou mais fracas. Do jeito que está, ele não evolui; tudo permanece igual por muito tempo [2]”. Jamais se pode dizer que um desses personagens se mantém igual a si mesmo: preso em um novelo de relações, alterando a função de acordo com o lugar, sua valência só é válida em situação. Daí a distância particular entre esses personagens e o espectador, que impede a identificação ao mesmo tempo em que provê uma surpresa permanente em relação às suas capacidades.

Essa defesa altiva da autonomia dos personagens, atrelada às características morfológicas e vocais dos atores, persiste como a constante admirável dos filmes da Diagonale. Cada um deles me fez atravessar “a incrível variedade dos tipos humanos” (como Biette disse sobre A Última Gargalhada, de Murnau), convocando esses atores e atrizes únicos e loucamente banais, que percorrem uma gama de fisionomias e de idades, com os quais é certo que você cruzará de um filme para o outro. Muitas vezes discretos na imagem, esses atores têm sua própria voz inimitável. Como os de Duras, Straub, Guitry e Godard, esses filmes desenvolvem progressivamente uma sensibilidade particular aos timbres, aos silêncios e às variações de intensidade das vozes, aos ecos e às rimas, à entonação entrecortada, mordaz ou desajeitada dos sotaques (Howard Vernon em O Teatro), os gracejos (Ingrid Bourgoin em Simone Barbés) ou os pelos na língua (Emmanuel Lemoine em As Belas Maneiras), as dificuldades de dizer coisas ou de se fazer entender, os monólogos impenitentes e as canções que surgem sem aviso prévio, com a importância fundamental da música, sua capacidade de comover no palco, no toca-discos ou no rádio do carro.

O corpo a corpo da realidade

Os rapazes da Nouvelle Vague filmaram seus amigos e amigas na plena horizontalidade da idade, os cineastas pós-68 saíram em busca da desaparecida figura do proletário; mas para a Diagonale, que nos finalmentes desses seventies vivem o luto da grande noite das utopias sem classes, será esta parte desprezada da pequena burguesia, aquela que não tem nada de notável, a classe média pobre supostamente sem histórias, mal capturada na ficção e na vida real e mais “rebaixada” do que todas as outras, sem responsabilidade nem respeitabilidade próprias, sendo geralmente evocada e representada apenas em sua massa. O belo denominador comum das produções da Diagonale, na esteira de Vecchiali (que, por sua vez, conecta-se com o cinema francês dos anos 1930), é o amor, um por um, desses personagens “médios”, esquecidos pela ficção. Onde mais eu poderia ver, se não lá, Denise Farchy, pequena boa mulher, cuja voz trêmula, alta e articulada, me comove tanto como a senhora do vestiário em O Teatro, a pobre vendedora de jornais em As Belas Maneiras, ou a peregrina perdida em Lourdes, l'hiver de Treilhou? Não é uma questão de “representar” uma classe na tela para fins de decoro político, mas pura e simplesmente de mostrar pessoas que são amadas na vida e que como tais já são portadoras de ficção. “Antigamente, observa Guiguet, no cinema, os personagens secundários que encarnavam tão bem os pequenos ofícios, toda essa gente que compunha o fundo popular, estavam lá para insuflar vida ao romanesco; eles eram a garantia da realidade. Essa é uma realidade que está morta. Mas o que pode substituí-la? [3]”.




Em As Belas Maneiras, Guiguet tem sua resposta: Emmanuel Lemoine (Camille). O primeiro plano do filme “introduz” seu ator que faz sua estreia, expondo orgulhosamente seu rosto de frente. Ele planta seus olhos nos do espectador, depois vira a cabeça de perfil (para que se veja distintamente a cicatriz que lhe corta o rosto), avançando sozinho ao longo da plataforma da Gare de l'Est, de onde acaba de chegar, o passo sobrecarregado por uma pequena bolsa, como a Marnie de Hitchcock, último viajante a cruzar sem ver o balé laborioso de três faxineiros de trem. Emmanuel Lemoine, que dava seus primeiros passos em Paris, que estreava nesse filme e no cinema, nunca havia atuado antes. Seu papel estava previsto para uma jovem, mas Guiguet, por tê-lo encontrado, por tê-lo amado, transformou seu filme que, em suas palavras, tornou-se “uma imagem da burguesia confrontada pela face, pelo corpo, pela realidade de alguém que não pertence a este mundo”. Guiguet havia pensado originalmente em chamar seu filme de “Os trabalhos e os dias”. O corpo atarracado de Emmanuel Lemoine é pesado como a vida laboriosa, proletária, que o moldou e que só conheceremos por fragmentos, tal como a misteriosa cicatriz em seu rosto. Camille até oferece uma boa explicação (ele sofreu um acidente de carro embriagado e o cirurgião, insatisfeito por ter sido acordado à noite, costurou-o mal de propósito), mas ela continua banal, insuficiente. As marcas e a constituição de suas experiências passadas carregam de uma aura particular esse corpo, que é observado de canto de olho pelos outros personagens quando ele fica nu ou sai com roupas muito justas. Todos aqui têm sua cota de mistério, mas a de Camille é inexplicável, pois está nesse corpo que insiste em se destacar de todas as estruturas morfológicas de sua época, que fascina por sua “classe” paradoxal nesse ambiente burguês: “O corpo de Camille é real sem ser atual, sem estar na moda, é ideal sem ser abstrato. Sua aparição cria as vibrações necessárias para sobressaltar e despertar as estruturas romanescas da história. Ele é aquele que reanima e regenera". Como com Biette e Treilhou, mesmo que os filmes sejam escritos, compostos e dialogados previamente (Treilhou, que morreu de medo antes da filmagem, havia previsto sua decupagem plano a plano [4]), são os seres e as coisas amadas, depois extraídas da realidade que dão corpo ao filme: não a história, um “tema” ou uma ilusória narrativa de significação. “Eu não precisava de muita imaginação para levar a trama adiante, disse Guiguet, a realidade concreta conduziu por si mesma o curso das coisas”.

Mas não se trata apenas de Camille: As Belas Maneiras abre e fecha com dois rostos-telas, dois semelhantes avanços solitários. Ao final do filme, ao término da caminhada parisiense de Camille à qual ele nos atrelou, vemos a procissão de seu corpo suicida na prisão onde ele estava encarcerado, com o rosto velado de Hélène (Hélène Surgère), grande burguesa que o contratou como empregado doméstico, que jogou com a amizade dele sem jamais deixar seu habitus, que o vampirizou à sua maneira, sem realmente percebê-lo. Nas filmagens, recorda Guiguet, “às vezes, só por diversão, eu colocava lado a lado um retrato de Hélène e um retrato de Emmanuel, era incrível o que eles me contavam; eu sentia o quanto essas duas faces animadas, movidas por suas respectivas energias, iriam enriquecer a substância do filme ao lhe dar uma realidade nova, singular, absolutamente livre, irrefreável”. Se os filmes de Biette, Guiguet e Treilhou guardam para mim a força maravilhosa do imprevisto, é porque eles são o reflexo dos encontros de seus autores com esses seres retirados da realidade, que os filmes reencenam. Não se trata de improvisação, mas sim de capturar ou provocar uma energia primordial, aquela do deslocamento inevitável e imprevisto que decorre de todos os encontros. Ficção em termos de fricções individuais, O Teatro, Simone Barbès e As Belas Maneiras são construídos a partir de encontros sucessivos entre indivíduos singulares para os quais – assim como para mim, que os observo – é sempre a primeira vez. Estamos em um estado semelhante de expectativa redobrada, que é o de descobrir e ouvir o outro, com esses embaraços, esses silêncios e essas dissonâncias inerentes à indecidibilidade do encontro, tudo isso faz com que, quando estamos cara a cara com o outro, nunca saibamos realmente se estamos com ele. Se a própria natureza da posição espectatorial é deslocada, então esses personagens que estão sempre ao lado das coisas que observam também são espectadores.

Mulheres, Mulheres, um farol

O que eu sentia confusamente com esses filmes, até compreender melhor, foi que eles prolongaram, guiaram e ecoaram a energia de um encontro mais antigo, que ultrapassou a esfera privada dos cineastas para se tornar a força motriz de sua ficção: Guiguet com Emmanuel Lemoine e Hélène Surgère, Biette com Howard Vernon e Sonia Saviange, Treilhou com Ingrid Bourgoin, os três com Martine Simonet, Paulette Bouvet e tantos outros... É preciso evocar o encontro de Guiguet com Hélène Surgère, que aconteceu durante as filmagens de Mulheres, Mulheres (1974), de Vecchiali, do qual ele foi assistente. O filme foi produzido antes da Diagonale e foi aí que tudo começou. Mais tarde, Guiguet escreveu As Belas Maneiras para Surgère, enquanto Biette viu nele “a possibilidade de ir em direção a um cinema que integraria o prazer da representação, dimensão que faltava ao cinema que amávamos no início dos anos 1970. Essa dimensão existe no filme, através dos atores, que se tornam o conteúdo e as propostas expressivas e estilísticas do filme [5]”. Mulheres, Mulheres, filmado em quinze dias a partir de um roteiro co-escrito com Noël Simsolo é mais outra coisa que um filme de Vecchiali. Para mim, é um dos mais belos filmes do cinema, o exemplo mais profundo, o mais comovente e, ao mesmo tempo, o mais simples quanto à potência do cinema impuro. Sua beleza se vale da pobreza de seu preto e branco fervilhante e, portanto, exato, que reconcilia Lumière e Méliès, o cinema francês dos anos 1930 e a Nouvelle Vague, Corneille e os palhaços, Demy e Beckett. Uma ode às atrizes e à sua capacidade de envolver ficções em torno de si mesmas, Mulheres, Mulheres faz de Hélène Surgère e Sonia Saviange aquelas que representarão todas, as “duas faces [...] desse Janus mítico da comédia e da decadência [6]”. O filme retrata duas atrizes desempregadas que vivem juntas em um modesto apartamento repleto de fotos de velhas estrelas, com vista para o cemitério de Montparnasse. Duas perdedoras sublimes que se divertem mutuamente atuando como um truque para enganar a morte, bebem muito, sofrem com a falta de dinheiro e com uma melancolia insondável. Duas mulheres sozinhas e sem filhos, um casal ilegível (companheiras, irmãs, amantes, viva e fantasma?) cuja vida em dupla não cessa de mudar ao longo das cenas através de uma série em cascata de composições ternas e sádicas, de jogos de cena e dramas íntimos, de caretas ambíguas e fases de desespero, tudo animado por um motor trágico ao estilo de Cocteau. E é aí que está o milagre, a ideia genial desse filme, inventar o phármakon de uma certa melancolia. No meio da desclassificação, do tédio, do alcoolismo, da nostalgia e do fracasso, nas profundezas da maior ociosidade, as duas mulheres são capazes de fazer emergir uma louca animação para criar: ficção, vínculos humanos, uma onda de palavras e imagens mais ou menos disfarçadas – um festival alegre e desolado, íntimo e desamparado, triste até a morte e insolente, prosaico e mítico.




O excerto de Albert Camus que abre o filme (“sim, acredite em mim, para viver na verdade, faça teatro”) faz eco à frase sem resposta de Hélène Surgère que seria (Pierre Léon dixit) o grito de guerra dos cineastas da Diagonale e daqueles que neles se inspiraram: “Tudo é verdade!”. Vitalidade desesperada de uma crença na ficção, sua capacidade de desenvolver a criação no próprio coração do fracasso, de abrir janelas imaginárias entre os muros mais estreitos. Crença na ficção, mas sempre carregada pelos corpos. O filme foi imaginado por Vecchiali e Simsolo como uma reação à Salut l'artiste de Yves Robert, mas também em torno dos fracassos de Saviange e Surgère em encontrar papéis. No centro de Mulheres, Mulheres está uma figura que é ao mesmo tempo trivial e metafísica: a atriz desempregada. Qual é o poder criativo de uma intérprete? E o que resta dele quando ela, notadamente em sua maturidade [7], não está mais praticando seu ofício? O que faz uma comediante diante da ferramenta sem uso que é seu próprio corpo, seu pobre corpo, e de uma demanda por atenção que ultrapassa o simples narcisismo para tocar na existência mais material: atuar para comer, para viver? Mulheres, Mulheres responde sempre dialeticamente, oscilando sem parar entre Sonia e Hélène, entre a vida e a morte, a crueldade e a alegria, a tragédia e o ridículo, a realidade documental e o mimodrama, até os angustiantes gritos de dor de Sonia, agonizando, ao fim do filme, que são imitados por Hélène entre risos e lágrima

E é por isso que “todos atores!” será o outro grito de guerra da Diagonale e dos que virão depois: saber que a ficção transforma a vida, que ela nem mesmo precisa de um cenário de cinema ou teatro para existir, simplesmente um terceiro – e ainda assim: no filme, Hélène pode estar sonhando. A genialidade de Mulheres, Mulheres está em sua capacidade de deslocar o foco criativo do diretor-roteirista para as intérpretes, elas mesmas en abyme no papel de “cafonas” (a palavra é de Vecchiali) que desistiram de atuar ou não se “realizam”. Trabalho do negativo interminável que encontra energia no coração da ociosidade, a criação entrelaçada à esterilidade, a atualidade no seio da melancolia.

Herança dos espectadores

Se eu evoco esse filme ambíguo, com um acabamento tão imperfeito quanto refinado, é porque ele se tornou um "filme-farol", "um clássico secreto" (Biette), uma matriz da qual outros herdaram imediatamente. Ao organizar uma retrospectiva de Vecchiali em Veneza logo após ter visto o filme, ao dar às duas atrizes um papel em Salò e fazê-las reencenar literalmente uma cena de Mulheres, Mulheres, Pasolini estava reconhecendo sua dívida com Vecchiali ao inscrever o carnavalesco no centro de sua adaptação de Sade. Fazendo seu primeiro longa-metragem, Biette e Guiguet dividiram a dupla, recuperando cada qual uma parte da energia dramática de Mulheres, Mulheres. Em vez de herdar as formas ou o propósito, eles herdam os corpos, dessas duas atrizes e de seus poderes de figuração, que se tornaram estrelas B após esta espécie de screen test constituído pelo opus princeps vecchialiano e seu trabalho com o negativo.




Em Simone Barbès, redescobri de Mulheres, Mulheres (filmado a poucos metros acima no bairro) o “tudo é verdade!” lançado por Simone e a aparição de Sonia Saviange em desespero gritando de embriaguez, de amor e de loucura na rua de Gaîté. O filme tira da obra vecchialiana a confiança dada aos atores, com a obstinada e irreverente Ingrid Bourgoin, que interpreta Simone com seu humor tipicamente parisiense. Como com Guiguet e Emmanuel Lemoine, Treilhou encontrou-a em um de seus locais de trabalho, um cinema pornô em Montparnasse que será o primeiro dos três interiores pelos quais atravessará a sua heroína durante sua noite (o segundo é uma boate lésbica, o terceiro é um carro que a levará dos Grands Boulevards até sua casa no Canal de l'Ourcq). Eu amo como nesse filme, à semelhança de Mulheres, Mulheres, percebe-se rapidamente a topografia de cada um dos espaços fechados. No saguão do cinema pornô do qual não se vê mais nada, Simone e Martine (Martine Simonet) conversam com os clientes, repreendendo-os e brincando com eles, entrando e saindo das salas em um jogo de Fort-Da que deixa escapar os gemidos fora de campo desses filmes invisíveis que atraem esses homens. Simone Barbès é um filme de câmara tanto quanto O Teatro e As Belas Maneiras, um kammerspiel que reconstitui a vida material ao isolá-la em um interior abafado, mas que ainda assim permanece sendo um lugar “público” aberto a encontros. Já mencionei a força dos corpos nesses filmes, mas estou igualmente fascinado por seus locais singulares e pela maneira como eles os apreendem, essa hospitalidade que possuem e que parece repetir en abyme o da casa Diagonale, fundamentada na abertura intuitiva de Vecchiali [8].

O que se ressalta nos lugares habitados desses filmes, é sua intimidade, a maneira como eles acolhem diretamente as relações entre as personagens num modo interior. Nos locais desses filmes, sempre é possível conversar, aproximar-se ou, no máximo, simplesmente observar-se. Não é o caso de Rivette (sempre um pouco em pânico quando se trata do toque e do rosto), na errância nos exteriores de Ponte do Norte, com seus personagens “pontos no mapa”, um filme essencial para compreender a mudança político-urbanística que se produziu ao fim dos anos 1970; mesmo se naquela época, as problemáticas de Rivette e de Biette, Guiguet e Treilhou eram mais ou menos as mesmas: como ocupar seu tempo, sobretudo quando não se pertence aos critérios sociais da nova sociedade dos anos 1980 que se prepara e que não terá mais nada de popular. Treilhou, que ganhou o Avance sur recettes por Simone Barbès, sentiu bruscamente sua “mudança de status social [9]”, uma “entrada no sistema”: “Isso me atormentou por muito tempo, levei muito tempo para aceitar isso emocionalmente”. Eu também reconheço nesses filmes a consciência difusa da marginalidade: onde vigia, sem fazer alarde, a “deusa homossexualidade” (como disse Barthes). Eu sei até que ponto o flerte visual no canal Saint-Martin em O Teatro ecoa a arte da decifração cuidadosa que requer o filme; eu sinto a perturbação que o filho de Hélène tem por Camille em As Belas Maneiras, e sinto que essa perturbação não é unilateral, que ecoa a ambiguidade do estupro na prisão; eu reconheço esse espaço de trocas, de olhares e de derivas que é o espaço noturno da boate lésbica de Simone Barbès, e a acuidade implicada em sentar-se no banco como a heroína. Essa atenção aos sinais discretos, aos olhares de lado, às vestimentas e aos esconderijos, a toda uma economia hieroglífica e secreta do flerte, aos corpos diferentes, eu sei que isso também vem daí. Eu também sei que a AIDS, as evoluções morais e as tecnologias tornarão quase ilegível tal escrita, cortando vidas diferentes e fornecendo-lhes acesso a uma visibilidade de via dupla, empowerment e normalização.




À força de escrutinar os filmes da Diagonale, acabei por encontrar um outro ponto em comum, a priori irrisório: em todos eles há fotos na parede. Isso pode ter vindo de Godard, mas isso passa em todo caso por Vecchiali [10] e assume todo o seu significado em Mulheres, Mulheres, com essas fotos de estrelas do passado que revestem o apartamento de Sonia e Hélène. As imagens aparecem na montagem por meio de bruscas inserções, elas vêm julgar os personagens e até parecem, ao final do filme, estarem cruelmente contra a pobre Sonia agonizante. Ao encontrar semelhantes imagens penduradas nos apartamentos de Dorothée e Hermann em O Teatro, no quarto do filho de Belas Maneiras e no apartamento burguês de sua mãe (do qual ele fugiu), ornado com tapeçarias antigas que são representações bigger than life. Ezra Pound escreveu: “Você testa uma imagem por seu poder de resistência. Se você conseguir colocá-la na parede por seis meses sem ficar entediado, então ela é provavelmente uma imagem para você, pessoalmente [11]". Eu vejo nessas imagens um tipo de teatro da memória, abrindo janelas nas paredes dessas salas obscuras, mostrando a coleção de referência, a herança que observa a ação presente, a partir das paredes – tal qual o espectador. O espectador vem “do futuro”, as imagens na parede são um olhar do passado. Entre os dois está o que os cineastas da Diagonale tentaram “salvar” de uma sociedade que estava entrando em uma nova fase (o que ainda não era apelidado de capitalismo tardio): salvar corpos, jeitos de falar e de se mover, relações humanas e o burburinho que eles amavam, mas também as obras de arte, a fim de vê-las e ouvi-las de novo de uma maneira diferente. Se os filmes de Biette, Treilhou, Guiguet e Vecchiali são tão importantes para mim e se eles são ótimos filmes, é porque foram feitos por espectadores. Pasolini escreveu que “o espectador, para o autor, nada mais é do que outro autor [12]". Pode-se inverter a fórmula, dizendo: “o autor, para o espectador, não é outro senão outro espectador”, sem trair o resto de sua proposta: “O espectador não é aquele que não compreende, que se escandaliza, que odeia, que ri; o espectador é aquele que compreende, que simpatiza, que ama”. Vecchiali permitiu que seus espectadores amorosos se tornassem autores, bem como em Mulheres, Mulheres ele ofereceu esse status a duas intérpretes desempregadas. Autores, Biette, Guiguet e Treilhou se tornaram, mas como cineastas (para usar a terminologia biettiana [13]), aqueles que, de bom grado, “se oferecem a nós como alimento” – porque amar é ser despossuído. Ao fazer isso, eles se aproximam do que Biette admirava em Ernest Bour, que se doava à orquestra “de uma maneira tão exclusiva que os ouvintes não advertidos, ou melhor, os ouvintes habituados a serem levados pela mão pelo maestro, se sentem(-tiam) abandonados, sozinhos, sozinhos com a música". Biette, Guiguet e Treilhou, sem deixarem de ser espectadores, ensinaram-me a me tornar um e a alcançar no fundo da casa Diagonale essa intimidade tão particular, essa solitude de atenção ociosa que é a única qualidade do homem que vai ao cinema.

***

[1] Após a morte do produtor Jacques Le Glou, esses filmes permaneceram por um tempo nas mãos daqueles que os haviam comprado no catálogo e esperavam (em vão) obter rendimentos superiores aos de seus potenciais espectadores. O filme de Biette está on-line desde o verão de 2020 na plataforma Henri da Cinemateca Francesa, enquanto os filmes de Guiguet, Frot-Coutaz e Treilhou se beneficiaram de uma bela restauração feita pela La Traverse e, para os dois últimos, de uma edição em DVD.

[2] Walter Benjamin, Essais sur Brecht, trad. Philippe Ivernel, La Fabrique, 2003; nota do diário de 12 de julho de 1934.

[3] Entrevista com Serge Daney e Serge Toubiana na ocasião do lançamento de Belas Maneiras, Cahiers du cinéma, nº 298, março de 1979.

[4] Entrevista com Tifenn Jamin e Raphaël Lefèvre, Répliques, nº 7, 2016.

[5] Entrevista com Jean Narboni e Serge Toubiana, Poétique des auteurs, Cahiers du cinéma, 1988.

[6] Segundo Pierre Léon, que evoca esse filme que lhe é tão caro em Jean-Claude Biette. Le sens du paradoxe, Capricci, 2013.

[7] “O que me ajudou a deixar a juventude para trás e entrar na maturidade? Mulheres, Mulheres e Réquiem para uma Mulher”, disse Hélène Surgère no Le Monde (30 de maio de 1985).

[8] Marie-Claude Treilhou: “Vecchiali, como ele diz com frequência, aceitava as pessoas pelo que elas eram, não porque tivessem talento cinematográfico ou tivessem estudado. Ele te aceitava se gostasse de você, se sentisse algo a seu respeito. Foi assim que ele aceitou o roteiro de Simone Barbès ou a Virtude”. (Répliques, nº 7, 2016).

[9] Ibid.

[10] Ver, sobretudo, a Lettre d'un cinéaste realizada por Vecchiali em 1983 para o programa “Cinéma, cinémas” na Antenne 2, descrevendo a sua jornada de trabalho, que termina com as fotos que revestem o seu escritório-quarto.

[11] Crítica de Ezra Pound sobre A Roda, de Abel Gance, na revista americana The Dial, em fevereiro de 1923, citada e traduzida por Sébastien Denis em um livro futuro sobre Pound e o cinema (coleção “Le cinéma des poètes”, Nouvelles Éditions Place).

[12] Pier Paolo Pasolini, L'Expérience hérétique, trad. Anna Rocchi Pullberg, Payot, 1976.

[13] “Qu'est-ce qu'un cinéaste?”, Trafic n°18, primavera de 1996, depois publicado pela P.O.L. em 2001 em um livro com o mesmo título.

Un début dans la vie foi publicado na revista Trafic n°120, inverno de 2021 (pp.83-91). Tradução: Ezequiel Antônio da Silva Stroisch.

Anthony Mann




Por Raymond Bellour

Os roteiros de que se serve Anthony Mann talvez sejam os mais belos porque badalam justamente na hora da aventura individual. Essa é a maior verdade do western em sua tragédia inacabada.

Os heróis, em Mann, buscam incansavelmente, presos entre duas épocas: o futuro que os atrai e o passado que os cativa. E persiste a esperança, violenta, de uma conciliação possível com a qual o filme sonha o tempo todo, sem conseguir estabelecê-la. O sonho dos heróis, todavia, não se desvia na direção da comunidade épica cuja ideia, muitas vezes, lança uma longa e nostálgica sombra sobre o faroeste. Ele se edifica, muito pelo contrário, sobre a ideia impossível de uma harmonia individual; nada diz isso melhor do que a imagem do rancho ilusório que ao final de cada provação em O Preço de um Homem e Região do Ódio transmite aos olhos cansados de Stewart um lampejo cortante e ao mesmo tempo terno, que se aproxima aparentemente de uma imagem de infância. Harmonia ferida, rejeitada em sua própria essência, ilusão de uma paz coletiva e natural, em seu sentido bucólico – Godard muito justamente apelidou Mann de “o mais virgiliano dos cineastas” –, para o único prazer da alma pessoal. E apenas uma vez quase realizada, ainda que no momento exato de sua explosão, em Lance Poole, com a calma encantadora de “Sweet Prairie”, em O Caminho do Diabo; uma outra vez encarnada, com sua bela violência e seu anacronismo, por um Rousseau de carne e osso construído como um atleta, Victor Mature em O Tirano da Fronteira. Mas se tratavam justamente de indígenas, e de um homem tão desconhecido quanto uma parábola. Porque tal harmonia contradiz a verdade mesma, histórica, da alma americana, conquistadora, que experimenta o tempo como uma odisseia tumultuada e incerta de conquista e de perigo. O rancho é uma imagem: ele supõe uma imobilidade sonhadora, ou pelo menos uma vida tranquila, onde o movimento, a progressão, estabelecem uma conciliação perpétua. Uma única vez o homem americano, ao menos como Mann nos mostra, pôde pensar em tal equilíbrio – disfarçado, é verdade, de citadino cortado da vida natural –: Yancey Cravat em Cimarron - Jornada da Vida. Mas ele se afasta imediatamente do equilíbrio logo no primeiro terço do filme, fugindo para a aventura; daí essa estranha impressão de um filme do qual Mann se abstém apenas para reaparecer na última cena, quando seu herói retorna, trinta anos depois, morto.

Pois um só tempo, de fato, permanece possível: o presente da ação. Levado para um futuro temido, que ele ama por suas únicas ligações com a transparência ilusória de um passado natural, o herói de Mann é o homem do presente. Sobre o sonho delirante, difuso, de uma harmonia, edifica-se a aventura singular, real e violenta a ponto de tirar o fôlego. Vamos chamá-la de romanesca. E os filmes de Mann, é verdade, retêm muito da ideia de aprendizado para que não pensemos na educação romântica do bildung. Mas o romance, o verdadeiro, aquele que encena Wilhelm Meister ou Rastignac, elabora-se, apesar do acontecimento, sobre períodos de paradas, de reflexão, sobre a interioridade psicológica, feita de idas e vindas e de constantes distanciamentos. Delimitar em Mann a exata tonalidade do romanesco demanda que invoquemos primeiramente uma tradição puramente aventureira do romance, em que a retirada é apenas um farsa, uma maneira disfarçada de ação, e que, sobretudo, reconheçamos a comovente e terrível solidão do herói, preso pelo desespero de sua luta abstrata e infinita no mundo de um Oeste legendário ainda meio verdadeiro e do qual suas mãos detêm apenas a sombra. Então aparece a dupla impossibilidade da epopeia: a respeito deste mundo, de início, onde a comunidade do senso e do ser é ilusória, porque o Oeste não é a Grécia nem mesmo a Itália das Geórgicas; a respeito do herói, em seguida, para quem, por mais desorientado que seja, esse mundo ainda pode parecer o da comunidade épica, mas da qual tudo o separa, agarrado como está à sua própria natureza, e sobre a qual não tem nenhum controle a não ser o rigor de sua própria aventura, a qual o separa dela no instante em que ele a alcança, e que se mostra nisso perfeitamente trágica.

Pois Mann não agencia senão os motivos para a ação permanente. Ele ignora essa alternância um tanto mágica de tempos fortes e fracos que fazem o charme e o gênio de Hawks, a suave descontração de Ford, a igualdade brutal e um tanto desapegada de Walsh. Incessantemente, ele faz de seu herói o local de um problema constante; não há, com Mann, um verdadeiro repouso; viva ou escondida silenciosamente, a ação, tanto quanto a aventura de um homem, estabelece-se plano a plano, por um olhar, um gesto, uma expectativa, uma parada mesmo, que nunca estabelece a liberdade do tempo, mas, bem ao contrário, uma inquietação da ação presa em suas próprias ciladas. Veja Stewart, sempre atento, e que não conhece um só instante de paz. Calmo, sem dúvida, em nome da discrição, da eficiência, mas sempre possuído de uma angústia nervosa que é mal escondida por seus grandes braços lânguidos e sua cabeça inclinada. O olhar busca constantemente. Violento é o momento da peripécia, mas sua coloração, sua possibilidade estão presentes em cada plano. Tomado pelo acontecimento, o herói de Mann não está livre até a última cena.




Mas de onde vem esse sentimento de irremediável nostalgia, mais ou menos reprimido, e que explode por vezes com tanta emoção? Da encenação, ou mais precisamente, do jogo de câmera. Observadora e seguidora fiel, ela edifica pacientemente a aventura gestual, assegurando no reconhecimento preciso de cada ato a linearidade lógica da narrativa; mas de súbito sonha, toma literalmente conta do campo, acaricia, demora-se um pouco demais, levanta-se ou aproxima-se, congela-se, ganha vida própria, e esses são os belos movimentos, quase sempre em exteriores, sobre este ou aquele momento da paisagem, deslizando pelo topo da colina, pela grama pesada e pelas copas das árvores, espiando o movimento da água ou, igualmente, este ou aquele gesto, que parece quase de outro tempo. Trata-se apenas de uma ilusão, é claro, porque a história avança silenciosamente, e um clarão é suficiente para remediar o tempo. Mas é uma ilusão vívida, física, enraizada no espaço e agarrada aqui e ali, como se fosse uma metáfora, àquilo que está mais distante, algumas linhas, ditas clandestinamente, quando não pensamos mais nelas, e que respondem, com tanta habilidade, ao destino do roteiro. É a lacuna que liga a epopeia da ação àquela epopeia impossível da vida natural e da paz de espírito. E isso, os impulsos, as precipitações, a vida subitamente pessoal de uma câmera basta para instaurar. Do dramático puro, passamos ao lírico; dessas duas impossibilidades nasce, rica em todos os seus poderes, a trágica profundidade romanesca, sobre a lenda ilusória de um herói e a face de um ator.

Esse jogo sutil e enternecedor da câmera organiza-se em torno do ator principal, sobre o qual a obra repousa em sua totalidade. A ilusão, já tão forte em todo filme americano, alcança aqui seu ponto extremo, porque os outros atores, por mais importante que sejam seus papéis, não contam, por assim dizer: o herói é a equação da narrativa e da encenação. Portanto, seu físico, seu jeito, seu estilo de ser importam antes de qualquer outra coisa. É por isso que tudo o que foi dito acima se aplica principalmente aos cinco filmes que Mann fez com Stewart, esse personagem que ele e Borden Chase tiraram da comédia e moldaram literalmente para projetá-lo no Oeste. À uma direção que ele pretendia enquanto tal, ao desejo de uma tonalidade afetiva tão exata, Stewart correspondia magnificamente, com seu ar incerto e ferido, sua lógica, sua tenacidade, o clarão de seus grandes olhos marejados por sonhos e um senso da natureza física das coisas e dos eventos que nos fazem crer ao mesmo tempo na brutalidade do mundo e na sua estranheza.

Entretanto, O Homem do Oeste – mesmo que tudo de Mann se encontre aí de novo – parece ser de uma outra linhagem. Godard disse bem quando nos convidou a ver retrospectivamente em O Homem dos Olhos Frios o indício de uma evolução radical onde muitas vezes nos contentávamos em encontrar esquematismo. De fato, Anthony Mann, construindo após um primeiro ensaio com Fonda, todo o seu filme em torno de Gary Cooper, como fez por muito tempo com Stewart, não poderia deixar de mudar a natureza de sua imagem e sua intenção. Pois o ator, com ele, assegura a mediação perfeita entre a imagem e o roteiro, enquanto que para outros, por vezes – e exemplarmente no caso de Lang –, serve para mantê-los esquartejados. Ora, conduzindo um Gary Cooper envelhecido pelos caminhos de um Oeste desolado, ajustando a velocidade de sua câmera à marcha e ao olhar de um herói lendário em um momento no qual o western já questionava sua própria sobrevivência, Mann não podia fazer – queria – nada além de um belo filme depurado, todo em pontas secas, de um rigor em todos os sentidos admirável, que deixa nas bordas da alma atônita um gosto de morte cinzenta. Foi, antes de Cimarron, em que o Oeste desapareceu para dar lugar à América, antes de El Cid, em que Charlton Heston e a História festejaram suntuosas núpcias, o verdadeiro adeus de Anthony Mann ao faroeste. E eu não acredito que O Homem do Oeste seja mais ou menos belo do que O Preço de um Homem ou Região do Ódio: somente que eles são diferentes, e que preferir aquele um ou aquele outro é uma questão de atores e, para Mann, da história e da direção que eles pressupõem. Essa é a única razão, creio eu, que me faz gostar mais dos primeiros de seus filmes, onde se vê no belo e mutável rosto de Stewart, contra a água e a doçura de colinas floridas, a violência concreta que transforma um homem comum em presa do desejo furioso de viver o motivo de uma trágica nostalgia.

Anthony Mann foi originalmente publicado em BELLOUR, Raymond (Org.) Le western: Approches - Mythologies - Auteurs – Acteurs – Filmographies. Paris: Gallimard, 1993 (pp.276-279). Tradução: Ezequiel Antônio da Silva Stroisch.

Melhor é Impossível






Por Camille Nevers

A obra de James L. Brooks está ao mesmo tempo entre as mais raras e as mais prolíficas da Hollywood derradeira: somente seis longas-metragens em seus créditos, escritos, produzidos e dirigidos em 35 anos; mas também a criação e a roteirização de uma dezena de séries marcantes, incluindo The Mary Tyler Moore Show, Taxi e a mais estonteante e perene, Os Simpsons (que lhe assegurou uma liberdade financeira e artística, absolutamente crucial para esse autor ultraperfeccionista sob a fachada divertida), o que faz dele uma figura central na história da televisão americana; sem mencionar, via a sua empresa Gracie Films, as primeiras produções de cineastas como Danny De Vito, Wes Anderson e Cameron Crowe… Neste final do século XX e depois de ter conhecido seu primeiro sucesso arrasador em 1983 com Laços de Ternura, coberto de Oscars, que na França à época foi largamente incompreendido, Brooks duvidava: ele estava se recuperando do fracasso de Disposto a Tudo com Nick Nolte e uma garotinha, terceiro filme que nem mesmo chegou às salas da França e saiu direto para vídeo com o título La Petite Star (1994). Ele se preparava para um novo hit na comédia – ou, nunca se sabe, um mal-entendido – e um retorno ao sucesso dessa vez, criando com Jack Nicholson, seu ator fetiche e seu provável nêmesis, um dos personagens mais antipáticos e um dos mais memoráveis que a comédia americana já trouxe. Bastaria um crédito de abertura claro, sem rebarbas (nem música) com um cachorrinho que degringola na escuridão de uma rampa de lixo...

Inútil procurar: de 1998, Melhor é Impossível, não nos diz quase nada. Lançado na França em 18 de fevereiro (nos Estados Unidos ao fim de dezembro de 1997 como o filme de Natal que ele não é), ele poderia ser lançado amanhã, vinte anos depois, praticamente idêntico. Isso quer dizer que o quarto filme de James L. Brooks não é nem Quem Vai Ficar com Mary?, nem Três É Demais e tampouco Os Estragos de Sábado à Noite – as outras três principais comédias lançadas naquele ano. Estamos muito longe do efeito de lupa sobre o estado da comédia americana do final do século propiciado por elas, o avatar trash pós-Tashlin dos irmãos Farrelly, o autor’s touch de um Wes Anderson fresquinho (cujo primeiro filme, Pura Adrenalina, lançado dois anos antes havia sido produzido por um certo James L. Brooks), ou a cultura pop em sua paródia eurodance de Will Ferrell, o retardado imarcescível. Porque Melhor é Impossível é uma comédia romântica. E a comédia romântica é aquele gênero bizarro para o qual não há preocupação com a historicidade, a visibilidade se não a mais clássica, de atenção documental ao tempo em que se desenrola sua narrativa. É um gênero tão antissocial quanto Melvin Udall, personagem principal e retrato de um canalha, escrito sob medida para Jack Nicholson (que foi recompensado com um Oscar, assim como a sua parceira, Helen Hunt, magnífica). A comédia romântica de mãos dadas com um son of a bitch, vida de cão.

“Too much reality for a Friday night”

Este é um gênero que consequentemente deixa de lado a questão do contemporâneo e do “reflexo dos tempos”, para se inquietar exclusivamente com a existência de seus personagens, pintando retratos que são tão humanamente e precisamente desenhados quanto o valor amplificado dos arquétipos (o autor amargo e obsessivo, a mãe corajosa, o artista gay afeminado). Ele modela em cada um a força de caráter e, portanto, a força progressivamente revelada dos sentimentos, ao sabor de não importa qual situação, incluindo a mais trivial, contanto que nos ensine algo sobre eles, sua condição, sua vida, seu estado de espírito: por exemplo, a sequência que põe em dificuldades a heroína que é obrigada a cuidar do filho, que vomita em cima dela, enquanto recebe um pretendente que está pronto para pular em cima dela, com a mãe no quarto ao lado, de fones de ouvido, tentando ser discreta, porque a promiscuidade é o terreno dos apartamentos baratos quando se exerce, como Carol (Helen Hunt), o ofício de garçonete e quando se tem um filho doente. Essa capacidade de levar os personagens a expressarem com o máximo de tato possível, a cada instante, suas preocupações, razões e sentimentos, elabora-se à custa de todo contexto naturalista e de todo ponto de referência temporal preciso, pois a comédia romântica está exclusivamente interessada em fazer valer uma realidade psicológica e uma verdade humana: e desprender a força sentimental de uma narrativa para conferir a tal verdade sua paciente exatidão, esse é o único objeto de sua mise en scène. No caso, é todo o motivo de Melhor é Impossível à medida de seu inabalável e insuportável personagem principal. Consequentemente, não há nada menos datável do que uma comédia romântica, porque não há nada menos datado. Ela está interessada apenas na tarefa infinitesimal e gigantesca de filmar o nascimento do sentimento (em Melvin) – por qual esforço sobre si mesmo um tal evento é absolutamente possível, pensável –, e sua reciprocidade eventual jamais adquirida (em Carol). Um sentimento dá lugar a outro, a um novo estado, assim como a misantropia do mau-humorado cínico dá lugar ao amor por essa mulher, o único “outro” que o tolera e que ele tolera também, mas um amor que ele é incapaz de exprimir. E está tudo lá, muito rapidamente resumido nesta incapacidade por parte do Melvin de se expressar, ou sempre mal ou sempre enviesado, assim como de pensar, bloqueado como está pelas saliências atrozes, exultantes e desagradáveis que tal enfermidade provoca nele – aquela tara insensível que em Brooks é sempre o déficit da fala – e o ódio por si mesmo enterrado sob o aspecto mais confortável do bastardo perfeito. A comédia romântica é o gênero mais filosófico que se tem no cinema, estritamente atormentada por uma ou duas questões morais que ela se dedica arduamente a expor de forma não muito direta, já que isso seria trair o raciocínio e as digressões necessárias, mas da mais justa possível. No filme, são Helen Hunt e Greg Kinnear que estão incumbidos do papel dessa justeza, por meio de seus olhares aterrorizados a Nicholson, espelhando a deformidade de sua alma. Como ele também é inteligente, ele acaba percebendo – como isso (uma bela mulher, um vizinho sensível ou um cachorrinho) o olha. É como se todo o talento de uma comédia romântica estivesse em se dedicar a uma reflexão conduzida de acordo com o ritmo exato dos personagens, à formulação de uma idéia, no encadeamento de situações lógicas e de etapas psicológicas, no pormenor, idéia que nos deixa como únicos juízes e fiadores da sua coerência e da sua validade. Na verdade, uma comédia romântica sempre nos pede para sermos inteligentes e o fato dela conseguir isso é sinal suficiente de seu sucesso.









“Con… science? How do you spell ‘conscience’?”

Seria uma pergunta feita no início, para a qual é necessária a duração, ou quase, de todo o filme, para ter uma resposta em eco tardio. Um debate interno, mas filmado a partir do exterior, com a necessária distância e recuo – fiel às anfractuosidades do espírito que se interroga, e logo se descobre, um pouco atônito, uma consciência. Cada cena, cada personagem e sua interação relançam concretamente e abstratamente a narrativa e seu tema, cada filme de James L. Brooks trata do combate de um ser com essa pergunta inesperada, essa espécie de desvio (de si mesmo) que se impõe a ele. Aqui, essa frase suspensa que Melvin, o autor misógino de literatura feminina, não é capaz de terminar de escrever por causa do maldito cachorrinho que entrou em sua casa: “Love is... Love is... Love is...”. Deixá-lo entrar em sua casa era deixá-lo entrar em sua vida, mas também em sua cabeça, nesse mundo milimétrico e limitado a ele mesmo, aos seus tiques e às suas manias. Além dele: o pânico. Melvin é o típico reacionário; ele só consegue existir em reação. O outro o horroriza, mas – ou porque – ele só existe através dele, em oposição a ele, fora disso ele não é nada além de uma acumulação de neuroses e de fobias. Incapaz da menor iniciativa, de dar um passo pra trás ou “pra fora”, rocha de ódio zombeteira que grita insanidades e não suporta sequer que lhe toquem. O filme utiliza genialmente a mola cômica (e depois romântica) de que justamente Melvin não encoleriza-se por ter de habitar um mundo fofo, meloso e levinho, de comédia romântica. Ter de coexistir com um maldito chick flick. Esse mundo que ele faz, contudo, existir nos livros dos quais todos os seus leitores, e leitoras, são fãs. Mundo que o sitia (de emoções indesejadas) e que ele quer a todo custo deixar de fora. Expulse o natural pela rampa de lixo e ele vai voltar pela escada, ou trotando como Verdell, o griffon de bruxelas. Mas para resolver a famosa questão sobre o que é o amor, ele vai ter, ainda assim, que entregar-se ao cachorrinho, o único ponto de vista do filme em contracampo neutro com Melvin, sua presença ridiculamente fofinha com seu olhar desprovido de julgamento moral. E o que faz com que Verdell se apegue ao homem que foi seu carrasco, apesar de tudo? Contrariamente ao que Melvin, em um acesso de empatia embaraçosa, queria demonstrar a Simon (Greg Kinnear), não são os pedaços de bacon que ele guarda no bolso – pois o experimento fracassa. Tem outra coisa, que Melvin prefere evidentemente evitar confrontar: é que Verdell se apega a quem se apega a ele e basta, é aquela besteira desarmante dos animais que só esperam ser amados para amar de volta. Melvin acabou, a despeito de si mesmo, encontrando seu mestre.

“Pay me a compliment, Melvin!”

Esperando o amor como em todos filmes de Brooks, Melhor é Impossível é um filme sobre o infortúnio e a tristeza diferentemente declinados pelos três belos personagens a bordo. O que há de mais precioso nesse cinema está no fato de que uma pessoa surpreendida pelo instante flutuante em que se põe a pensar é, em última instância, sempre alguém que volta a repensar. A mise en scène lhes dá tempo à reflexão e ao espectador tempo para seguir seu raciocínio. Isso é o que a língua inglesa nomeia como "second thought" – esse "segundo pensamento", difícil de traduzir em francês (senão por "à la réflexion") para descrever o movimento que faz um personagem mudar de ideia, reconsiderar-se: doze anos depois, esse seria o tema manifesto de Brooks em Como Você Sabe.

Melvin repensa – o que ele faz, o que ele diz. O que ele é. Tudo vem da frase imunda largada a Carol sobre o filho dela, cuja saúde ele sabe que está debilitada: e é esse plano que aguardava Brooks, o olhar de surpresa ferido de Helen Hunt face à face, Nicholson ocupado com a disposição simétrica de seus talheres de plástico, que levanta finalmente o olhar. Ele vê ela o olhando. Seu olhar. O plano em sua duração mostra com isso como ele repensa e como pela primeira vez ele acede a um clarão de consciência. Esse foi o início de uma longa convalescença, ao final da qual, à força de caretas e de esforços frustrados, Melvin recompensará o que ele havia lamentavelmente estragado, perdido e arrotado: desajeitadamente e pausadamente, não há outra maneira e ele não a cortaria, Melvin passará pelo ridículo, pelo enternecimento e pelo sentimentalismo – como todo mundo. Ele retornará na hora de comprar paletó e gravata em um longo desvio do restaurante, cena que é ainda mais magnífica por ser dispensável (dramaticamente, e essencial ao tempo de consciência impresso pelo filme), para conseguir finalmente fazer um elogio àquela que, no seu lindo vestido vermelho, espera. Para os sons of a bitch também existe uma saída, sim, uma recuperação possível, amorosa ou artística – o que em uma comédia romântica representa aproximadamente o mesmo. Essa é uma das melhores razões para rever em 2018 esse filme divertido e doloroso, esse belo filme vinte anos depois e idêntico. To be a better man.

Pour le pire et pour le meilleur foi publicado na revista Carbone em setembro de 2018. Tradução: Ezequiel Antônio da Silva Stroisch.